Negro é Lindo: Jorge Ben, Trio Mocotó e Arthur Verocai em um disco político!

Jorge Ben, Trio Mocotó & Arthur Verocai em Negro é Lindo, produziram uma peça singular na obra Benjorniana, de letras/arranjos sensacionais!

Capa Jorge Ben

Jorge Ben é um dos pilares mais importantes da música popular feita no Brasil pós-Bossa Nova. Dono de uma inventividade incrível, que trouxe tons muito singulares a nossa música ao unindo um ataque violento, inovador e insinuante no violão a composições herdeiras da complexa simplicidade do samba. Suas composições talvez se caracterizem por um simplicidade unida a temas alienígenas, excêntricos ao que comumente se produzia no samba e na “nata” da música popular.

Aliando por vezes uma abordagem diferente à assuntos comuns e em outros momentos inaugurando “letras” de um ineditismo total, Jorge Ben é dono de uma das obras fundamentais dos gênios negros de nossa cultura. Suas composições passeiam por temas como: amor, auto afirmação racial, temas cotidianos e lembranças da infância suburbana, mas também a filosofia de Santo Tomás de Aquino, Dostoievski, Alquimia, personagens históricos, futebol, mulheres.

Admirador do rock’n roll e da bossa nova, Jorge Ben estreia com “Samba Esquema Novo” em 1963, um disco que é ao mesmo tempo um herdeiro e um destruidor da veia “cool” buscada pela tchurma de Copacabana. A força do seu ataque ao violão e seu balanço torto a essa altura só encontrou pares na turma do Beco das Garrafas e o seu samba jazz, com JT Meireles e os Copa Cinco.

Tendo imprimido essa micro revolução na música brasileira em seu álbum de estreia e ao mesmo tempo alcançando amplo sucesso, o artista nunca se acomodou. Passeando por diversos gêneros e turmas da MPB, da Bossa Nova à Jovem Guarda, e sendo também incorporado pelos Tropicalistas, Jorge Ben é das poucas figuras da música brasileira, senão a única, a ser admirado, gravado e a ter participado dos três movimentos nesta época. Talvez uma de suas principais características seja justamente essa leveza, entrando e saindo de todas as estruturas com liso como um ponta de lança africano.

Depois de uma estreia acachapante, pulamos para 1968, um ano após o lançamento de O Bidu – Silêncio No Brooklin (1967) época em que Jorge colou por São Paulo e com sua veia irreverente tentou o que chamou de Jovem Samba, “sample” benjorniano da Jovem Guarda. E foi nesse período que o Babulina (apelido dado por seu canto de Be Bop A Lula) de rolê por São Paulo, conheceu o Trio Mocotó na boate Jogral, point da night paulistana na época.

Trio Mocotó

Grupo formado – um power trio único – por Nereu Gargalo (pandeiro), Fritz Escovão (piano, violão e cuíca) e Joãozinho Parahyba (bateria), os caras possuem (ainda estão na ativa) uma das formações rítmicas mais interessantes e inventivas já surgidas nas Universidade das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Logo um ano após esse encontro singular Jorge Ben & Trio Mocotó já estavam defendendo, em um Maracanãzinho lotado, o clássico Charles Anjo 45 no Festival Internacional da Canção.

Dessa parceria que muitos consideram a melhor da carreira do Jorge Ben, nasceriam três discos oficiais Jorge Ben(1969), Força Bruta (1970) e Negro é Lindo (1972), além do disco ao vivo lançado apenas no Japão On Stage in Japan (1972). Talvez seja possível afirmar que é nesse período de sua carreira que o cantor, compositor, instrumentista e arranjador forjou seu estilo mais pleno, seja como letrista mas também como instrumentista. Sua inquietude fez com que sua herança roqueira aflorasse durante esse período e talvez justamente pelo encontro com o Trio Mocotó, tornou o seu violão um instrumento rítmico, com uma pegada que ficou conhecida como samba-rock.

No entanto, toda essa grandeza e extensão criativa muitas vezes foi tomada como mero intuicionismo, uma forma racista de diminuir complexidades estéticas que não perpassam as bulas teológicas da branquitude brasileira. O seus amplos estudos em diversas áreas, suas incorporações singulares de sonoridades, línguas africanas, suas invenções cifradas estiveram por muitas décadas colocadas à margem do que a academia foi capaz de entender e ou elegeu como a verdadeira genialidade nacional.  

Até então, Jorge Ben já tinha trabalhado com arranjadores da estirpe de um JT Meirelles, do Maestro Gaya, com o Trio Luiz Carlos Vinhas, José Briamonte e Rogério Duprat, mas não sem motivos resolveu escalar um jovem arranjador, com pouca experiência profissional. Faziam apenas 3 anos desde que Arthur Verocai tinha abandonado o curso de Engenharia Civil para se dedicar profissional e integralmente a música. Mas apesar do pouco tempo como arranjador ele já trazia no currículo excelentes trabalhos.

Fez arranjos para o disco Ivan Lins, Agora (1971), mas também já tinha trabalhado com Erasmo Carlos em Carlos, Erasmo (1971), além de ter também arranjado Elizeth Cardoso, Gal Costa, Quarteto em Cy, MPB-4, Célia, Guilherme Lamounier, Nélson Gonçalves e Marcos Valle. Além disso, vinha desde os anos 60 compondo canções para diversos artistas e participado como autor dos festivais da época. 

Apenas um ano antes de lançar uma verdadeira obra prima – Arthur Verocai (1972)- o maestro se junta a Jorge Ben & Trio Mocotó para o delicioso disco que fechará com chave de ouro essa fase do artista. E é a partir dessa tríade que tentamos entender por que Negro é Lindo (1971) se fez um disco tão singular dentro da carreira de Jorge Ben.

Um jovem Arthur Verocai

Em um disco que se chama Negro é Lindo, Jorge Ben abre os trabalhos com uma linda homenagem a Rita Lee, mulher branca e loira. Uma prova inconteste de que o panfletarismo tão em voga nessa década nunca foi a praia dele e de que seja em aspectos ideológicos ou musicais, a transmutação e a mudança sempre foram valores importantes em sua caminhada. “Rita Jeep” abre o disco inclusive destoando também de uma certa linha musical que encontramos ao longo da bolacha, aqui com os ricos arranjos de cordas servindo ao ritmo.

Dentro de suas composições, as vezes de forma bem humorada, reveladora de uma profundidade única e acachapante trazendo certa lisergia muito bem dosada, Jorge Ben apresenta a existencial e questionadora “Porque é Proibido Pisar na Grama”. Uma composição de contornos muito bonitos nos arranjos e na letra e que propoem um dialogo interno dentro de sua obra com a faixa: “Descobri Que Sou Um Anjo”, presente no disco de 69, primeiro com o Trio Mocotó.

Jorge Ben com todo grande poeta utilizou imagens, signos recorrentes em suas composições, ora citando trechos de suas próprias músicas ora buscando continuações temáticas e aqui temos uma prova desse último procedimento: “Descobri que além de ser um anjo, eu tenho cinco inimigos“. Se na faixa de 1969, o eu lírico afirmava sua auto estima e recusava o retorno de um relacionamento que lhe fez mal, em “Porque é Proibido Pisar na Grama” temos um diálogo interno – procedimento muito comum na literatura – do eu lírico, onde o mesmo levanta-se questões e toma consciência de suas necessidades afetivas.

Mas atual do que nunca, em tempos onde busca-se pensar a masculinidade negra, Ben coloca uma questão que se tomada com o desdém racista que muitas é o traço ordinário da crítica: “Preciso saber urgentemente, porque é proibido pisar na grama?”. Ora, uma pergunta fundamental para a existências existências urbanas, um ato natural de querer estar com os pés em contato com a terra, está diretamente associada a necessidade de carinho, de diálogo com o outro, de subsistência e garantias de dignidade presente e futura.

Vale mencionar também o contraponto entre os arranjos de Rogério Duprat em “Descobri Que Sou um Anjo” e do Verocai, com ambientações que são muito diferentes entre si, mas que no diálogo interno mencionado se tornam complementares. A melodia e a harmonia da composição orquestral casando perfeitamente com o tom de questionamentos existenciais, criando uma espécie de drama musical. Descobrindo que é um anjo, mas que precisa ser mais durão, mas que quer saber também porque é proibido sentir a maciez de um gramado, Jorge Ben adianta a música  seguinte, criando um nexo com o personagem abordado a seguir.

Em plena ditadura militar Jorge Ben que foi execrado pela branquitude de esquerda por ser o autor de “País Tropical”, tem na terceira faixa do disco: “Cassius Marcelo Clay” um libelo político. Hoje, Muhammad Ali é em sua inteireza como homem e atleta é um símbolo enorme e fortemente associado às qualidades éticas e estéticas do povo negro em diáspora. Seu corpo, sua fala, sua malandragem, mas também seus posicionamentos políticos que encarnaram uma série incrível de características da cultura negra e passaram a influenciar pessoas, movimentos políticos e sociais, e também as artes.

Em “Cassius Marcelo Clay”, Jorge Ben em parceria com Toquinho, capta isso em sua poesia com a genialidade que lhe é peculiar e com uma agudez que denota o quanto ele estava atento ao movimento dos direitos civis nos E.U.A. Um herói negro, sucessor de heróis brancos, fantasiosos e porque não? representantes do status quo racista americano.

Se hoje Ali é visto como um precursor do Spoken World e do Rap, Jorge Ben associa-o em seus espetáculos no ringue à cadência das escolas de samba e aos esquemas táticos do futebol. Mostrando que um corpo negro é pensamento e ritmo, logo arte, assim como Alan Resnais & Chris Marker constataram no documentário Les Statues Meurent Aussi 1953. E meus amigos. que violão é esse que só o samba rock do mestre nos pode dar? Novamente aqui acompanhado de cordas porém, dessa vez sem a percussa do Trio Mocotó, com exceção de um solo de atabaque.                                                                                     

Outra grande qualidade da sua música é a forma e o quanto cantou sobre mulheres, alcançando em 10 anos (até este disco) dezenas de canções, com os mais diversos enfoques. Nomeando-as, localizando-as racialmente, construindo uma obra dentro da obra, que é um belo panorama das mulheres brasileiras e obviamente na sua maioria mulheres negras. Só aqui nesse disco, das dez canções presentes, metade são sobre mulheres. Loiras, morenas e negras, Rita Jeep, Cigana e Zula.

Neste disco, “Cigana” traz um tom mais brejeiro, de elogios doces, promessas de amor e de espera, calhando muito bem com o andamento cadenciado e o os backing vocals femininos de fundo. Uma tristeza não saber o nome de muitos músicos e nem das cantoras presentes neste disco. Já “Zula” tipifica uma mulher brasileira de origem Zulu, e a construção dos elogios pode ser lido num recorte racial muito interessante.  Ben canta: “É impossível imaginar, tudo que essa nega merece, tudo que essa nega tem, tudo que essa nega promete“. O que nos remete a como a integralidade do pensamento e dos afectos transmitidos na obra do Jorge Ben serve-nos de manual sentimental e político de formação.

Poucos discos como “Negro é Lindo” na história de nossa música carregam em tintas tão fortes questões que nos são caras como povo negro em diáspora até hoje, passados mais de meio século do seu lançamento. Dentro da própria obra do Jorge Ben tão marcada por calendoscópicos enquadramentos musicais e poéticos, a coesão presente aqui reúne com maestria temas espalhados até então, dando-nos um objeto estético vivo, integral, de swingue elegante sobre a vida do povo negro no Brasil.

Algo que pode ser reforçado pela faixa seguinte e que dá título ao disco: “Negro é Lindo”. De formação católica mas de evidente origem africana, sua mãe é etíope, Jorge Ben procede num estranho sincretismo abrangente em sua obra. A música que traz em seu bojo uma das frases de afirmação do movimento de direitos civis americano e dos Black Panthers: Black is Beautiful, é aqui atualizada a nossa realidade.

Com referências a Zambi, ao nosso Preto Velho, Dandara e falando ao final da canção em Mbundu, temos uma sinal bastante claro de respeito a uma das culturas que compõe nossa herança africana e as lutas históricas do povo negro brasileiro. Uma das canções mais significativas da obra do mestre Jorge Ben e uma pedra de toque do disco aqui em questão. Outra das maravilhosas e engenhosas participações singulares do Arthur Verocai com sua mão orquestral elegante, que é entoada de modo meigo em tom de oração pelo cantor e compositor.

E como acima dissemos, Jorge Ben tem uma farta quantidade de canções de afirmação racial e seria de se esperar que num disco que se chama Negro é Lindo, tivéssemos apenas variações sobre o mesmo tema. E é o que ele faz, porém torcendo quaisquer visões estreitas sobre raça, produzindo uma afirmação que incorpora a diferença como traço distinto de alteridade. A explosão rítmica de “Comanche”, tribo indígena da América do Norte nos leva a pensar as alianças históricas de resistência feitas em diáspora entre povos índigenas e negros.

Novamente, uma tristeza não saber quem comanda o trompete alucinado ouvido nessa canção. Porque além da swingueira do Trio Mocotó (Nereu, Escovão e Joãozinho Parahyba) segurando o groove com sua excelência já clássica, um flugelhorn literalmente duela durante toda a música com o órgão comandado (imaginamos) por Fritz Escovão.

Em 1974, três anos após o lançamento deste disco, seria fundado um dos clássicos blocos de índio do Carnaval de Salvador com o nome Comanches do Pelô, o que nos mostra um certa sincronicidade e identidade na forma de homens e mulheres negras brasileiras se espelharem nos oprimidos amplamente retratados pelo cinema hollywoodiano como os inimigos, como os maus. 

“Que Maravilha” que foi lançada originalmente em 1969 e é um dos muitos exemplares de músicas do Ben que foram regravadas por deus e o mundo, ganha aqui uma versão quase que um bolerão de arranjos e execução. Evocando uma ambiência que nos remete a um bar enfumaçado numa noite solitária, apenas a cerveja a esquentar na mesa enquanto lembramos do nosso amor. Em contraposição com a letra que descreve uma cena de dois amantes se encontrando alegremente em meio ao caos urbano durante um dia de chuva, mas com um ar ensolarado presente na felicidade expressa na canção.

O disco termina com um par de canções sobre mulheres e o amor gigantesco que Jorge Ben dispensa a todas elas. Um amor que pode encontrar nessa imagem seu equivalente para todos os casos de Bebetes a Jesualdas, Dorothys, Domenicas, Gabrielas, Lorraines:

“Os ramos ultrapassantes/ E as raízes invadentes/ Do meu coração/ Percorrem com carinho/ Com uma velocidade ilimitada de afirmação/ De como é grande o meu amor por você.”

É bom que se registre aqui também, o caráter único de Jorge Ben quando se trata de compor e interpretar canções de amor. As torções que ele faz na língua seja na pronuncia ou mesmo aqui em “Maria Domingas”, quando ele vai buscar uma palavra na língua italiana (invadente) para compor os versos iniciais da canção. Aliás, versos iniciais que são uma belíssima e muito forte descrição do amor/desejo como uma força de afirmação de si mesmo e do outro em sua diferença.

Aqui o compositor vai propor um jogo que rompe com as dicotomias ocidentais do pensamento que binariza as relações. Ampliando o fundo da sua imagem de amor e do alto da sua própria grandeza reconhece a derrota não apenas para o amor, mas pelo amor dela, Maria Domingas, pois não entende o jogo do amor como uma disputa de perde/ganha, mas de complementaridade.

Com a doce swinguante “Palomaris” o disco se encerra, letra mais simples e convencional da sua lavra neste disco, mas nem por isso menos bonita e tocante. Preenchida pelos arranjos de corda e sopro do Arthur Verocai e de rítmica cadenciada nas manhas do Trio Mocotó, Ben termina o seu disco mais político falando de amor, como tinha começado tratando da sua admiração por uma colega de trabalho.

A ginga de Jorge Ben por si só é já um ato político, de quebra dos paradigmas estéticos do cancioneiro tradicional daquela altura, em plena ditadura militar. Hoje sabemos, o quanto os censores estavam de olho nas manifestações estéticas das periferias do Rio e de São Paulo, nos bailes black, por conta de suas afirmações de negritude, que eram vistas como aproximações com o movimento Black Panther. O partido dos Panteras Negras fundado no ano de 1966 por Bobby Seale e Huey Newton, já era uma realidade contestatória no mundo nos anos 70, com filiais na Argélia por exemplo.

Com Negro é Lindo (1971), Jorge Ben aprofunda o seu próprio trabalho de afirmação da negritude e de amplificação de temas e de sensibilidades afro diásporicas. A trinca formada por Jorge Ben, Trio Mocotó & Arthur Verocai conseguiram produzir um disco onde a preocupação com a criação está a serviço de uma forte noção de entendimento do que seja o humano.

A beleza e a força das composições, dos arranjos dessa obra de arte que toma a afirmação da beleza negra para alcançar as diferenças, pensando a noção de alteridade como algo supremo nas relações e chegando assim ao humano, sem abrir mão do swingue. Hoje, em 2023 em meio ao caos atual, nos convida a repensar nossos próprios jogos de corpo, nossas formas de revide na luta racial, com a plena consciência da historicidade das relações de opressão.

Sem no entanto, nos queimarmos nas atuais e virtuais fogueira das vaidades e dos likes. Em meio ao processo de guerra racial de alta intensidade em que vivemos no Brasil hoje, escutar atentamente Negro é Lindo é o recuo necessário e potencializador para acertamos melhor o esquema de defesa e ataque do baba perdido em que estamos. Salve Jorge! 

-Negro é Lindo: Jorge Ben, Trio Mocotó e Arthur Verocai em um disco político!

Por Danilo Cruz

Ficha técnica:
Direção de produção: Paulinho Tapajós
Direção de estúdio: Paulinho Tapajós
Técnico de gravação: Toninho e Mazola
Estúdio: C.B.P.D.
Arranjos: Arthur Verocai
Foto: Wilney
Capa: Aldo Luiz     

                                                                                                                                                                                                         

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