PinappleStorm e os Poetas no Topo, descascando o abacaxi das duas edições 3.3, que abalaram e revelam problemas na crítica e no público …
Recentemente recebemos uma bomba de fim de ano, as duas edições do projeto poetas no topo 3.3 que reuniu vários mcs homens e duas mulheres. Ora, se há algo que poderíamos tecer crítica é ao fato de em um universo de 19 mc’s só haver duas minas, pior ainda, nenhuma mulher ou pessoa LGBTQI+ compondo o projeto. Outra questão, bastante relevante é que nessa última mega edição do Poetas no Topo, ao contrário de outros momentos o projeto foi fechado a mc’s do eixo Rio-São Paulo com participações de nomes de Minas e do Espírito Santo.
Poderíamos estender a crítica ao fato de haver dentro do canal uma divisão artificial e danosa, entre cyphers onde mcs homens rimam e outra onde mc’s mulheres rimam, mantendo a divisão artificial de rap e rap de mina. Seria necessário que se encampasse um projeto LGBTQI- do tipo Poetxs no topo? Obviamente essas são críticas que insidem no fato da PineappleStorm está inserida num contexto discriminatório e ao mesmo tempo sem o devido approach político tentar sanar questões de ordem estrutural do mercado do rap e ou da nossa sociedade.
Essas críticas nos parece, são as mais substanciais e passíveis de serem feitas ao projeto que se por um lado divide opiniões com projetos de muito sucesso e gosto extremamente duvidoso como o Poesia Acústica, por outro lado, não pode ser acusada de ter feito trabalhos medíocres com o Poetas no Topo. O que nos parece um fato é que dentro dos quadros oferecidos pelo canal, o Poetas no Topo já se consolidou como um excelente campo de experimentação e vitrine para a marca. Além de seguir se escrevendo ao seu modo na história do rap nacional com edições marcantes e reveladoras de grandes nomes atuais do hip hop brasileiro. Sem no entanto, de por outro lado ter se envolvido em polêmicas como no caso do Raffa Moreira, que alegou não ter sido pago e teve sua parte – uma das melhores da história do projeto – apagado do vídeo oficial.
https://www.youtube.com/watch?v=Mr6FluJBXV0
Se por um lado é bem verdade que essa exclusão revelou problemas que o grande público não tinha acesso, por outro é certo que nos dois primeiros Poetas no Topo a PineappleStorm buscava uma prevalência por todo Brasil, absorvendo mcs do sul e do nordeste como destaques. E lá naquela época a dois anos atrás, os caras do canal já estavam fazendo cyphers grandes e extremamente bem produzidas.
Os próximos passos do projeto Poetas no topo continuaram a aumentar o nível da reunião de mcs que se não nos tornou mais horizontais, também nunca entregou algo medíocre. Obviamente, críticas são importantes e temos os que como nós estão de punhos cerrados lutando por uma maior isonomia e equidade na cultura hip hop. Porém, em se tratando de industria cultural os “crimes”pelos quais o projeto pode ser criticado são os mesmos que grande parte da mídia, do público e da nossa sociedade como um todo, “praticam” quase que cotidianamente.
E chegamos finalmente no poetas 3.3 e no problema que nos tocou e tem nos tocado quando se fala de música, mas sobre tudo quando aponta pra uma certa concepção pobre e vendida do tempo : o tamanho dos produtos culturais apresentados. Sabemos que vivendo nos estertores do capitalismo falta-nos um pouco de garra para pensar com rigor naquilo que afirmamos em público. Porém, há um burburinho, um rumor, que atravessa a concepção de consumo de arte hoje, no que tange a música que é uma das ideias mais perigosas da atualidade.
Quem realmente gosta de arte, sabe ou deveria saber que não existem regras pré estabelecidas para criar a mesma, apesar de muitas vezes as produções se ancorarem em convenções que remetem ao tempo próprio em que são produzidas. No rap, por muito tempo os discursos precisavam de tempo pra se efetuar, havia uma necessidade de que um caminhão de rimas fosse despejado em nossos ouvidos. Era, um período de formação, mas também de apuro e abertura para jovens negros e negras ao longo de todo país, que se viam diante de um campo de expressividade até então inexistente.
Não faremos aqui uma genealogia dos tempos no rap, mas é fácil constatar que nos últimos anos, até o Racionais Mcs condensou suas rimas a tempos enxutos. Ora, será que mesmo percebendo que essas mudanças estão ancoradas em processos históricos e respondem a condições que variam dentro do tempo e do lugar em que se dão, não somos capazes de entender que isso não define qualidade? Se antes, as músicas precisavam de um tempo e de uma “história” para se efetuar no público, hoje há uma ditadura de que os discos precisam ser curtos, afinal ninguém tem tempo para ouvir um album de mais de 1 hora. Mano, você não gosta de rap, você sofre de ejaculação precoce, só pode…
Vemos que existe um diálogo cada vez maior entre os discos e produtos audiovisuais, sejam os já conhecidos videoclipes, mas também cada vez mais, Mcs apostam em filmes, docs, e outros audiovisuais para complementar sua obra. E assim chegamos ao novo Poetas no Topo 3.3 e numa outra forma de consumo. Pois ao contrário de cyphers cansadas que reuném 8 ou mais mcs e nos entulham de rimas, aqui existe um número grande de mcs, mas existiu também ao contrário das duas primeiras edições um pensamento cinematográfico, e um roteiro de apresentação do todo. Um apuro maior fruto do desenvolvimento e na responsa dos diretores Gabriel Solano e Uriel Calomeni.
Por motivos obvios não vamos proceder aqui por uma análise do conteúdo quilométrico de rimas, mas ressaltar alguns aspectos do roteiro e dos cenários que nos chamaram atenção. Se em outros poetas no topo já havia uma trajetória audiovisual de ascensão na construção imagética da obra, aqui em sua última versão isso fica mais evidente e se intensifica.
O primeiro bloco de mcs composto por Ogi, Bob do Contra, Rod 3030 e Rashid, abrem os trabalhos rimando dentro de um hospicio que nos parece fazer uma analogia bem construída para uma partida que toma o nosso país como base, e nesse aspecto o Ogi estraçalha, encenando inclusive um zumbi, ou antes, um poeta em vias de se tornar catatônico. Os beats da primeira parte são de Slim / Tibery, que mandaram muito bem, fazendo a estrada por onde os caras desenvolvem suas velocidades e intensidades.
As próximas fatias do abacaxi adentram os becos do morro e fazem a junção do funk com o rap na pessoa do MC Cabelinho e segue num plano sequência pelas vielas passando o “bastão” para L7NNON, Kayuá que emula uma versão zona norte carioca de This is America do Childish Gambino, mostrando assim como nas rimas do funkeiro anterior, que o Rio de Janeiro é o microcosmo social e politico de um genocídio em marcha. Onde mulheres como a Azzy perdem suas crias pelas mesmas ruas que os mcs rimam. DK47 faz jus ao nome e dispara uma sequência de rajadas só com ideias agravantes. Os beats variam e assim como as métricas e flows, as construções também, mas a qualidade permanece.
A primeira parte termina com o sempre relevante MV Bill que aplica aulas de visão sobre as raízes necessárias para o hip hop, aulas para o público e para os que estão chegando como artistas na cena. Variações de flow e só papo reto, MV Bill mostra-nos que não é a cronometragem do tempo quem determina a qualidade e sim a capacidade de viver o tempo de modo inventivo. Porém, sem uma dis-posição da audiência para fruir o conteúdo, qualquer coisa parece chata de saída. O fato é que os primeiros 19 minutos voam e a quantidade de mcs rimando se dilui na variação das ideias, das batidas e dos cenários e movimentos de câmera.
Bill encerra e reabre os trabalhos que dessa vez trazem os beat de Tibery e Jogzz , proseguindo em sua aula magna, dessa vez com papo de progresso e nos dando a perceber que há também uma construção musical colocada no beat, que num sample de violino, nos dá um sentido de crescendo. A marcha funebre que encerra a primeira parte, agora alcança uma certa melancolia das ruas vazias na “pista carioca”. E o bloco composto por Knust, Dudu e Chris dão o tom de uma novíssima safra, que está exatamente chagando na pista para se firmar.
Souto Mc caminha rumo a ascensão do bloco final que encontra outras tantas linhas marcantes com Gali, Black, Projota e Cesar Mc. O cenário final de um topo onde encontramos todos os mcs enfrente a uma igreja católica centenária, é um signo ambíguo que pode denotar desde o papel fundamental em todos os nossos problemas estruturais via colonização, mas que preferimos uma outra perspectiva. Numa cypher a reunir uma quantidade enorme de Mcs de tempos, estilos e formações distintas, encontramos um real sacerdote do hip hop fechando os trabalhos.
Não atoa, Kamau é o escolhido e possui um beat da própria autoria, colagens, samples e riscos em sua parte. O Poetas no Topo 3.3 nos parece em termos puramente musicais e audivisuais ser o mais grandioso e bem sucedido projeto do canal. O que é um estranho contraste com o que hoje é feito e pregado por geral em torno do rap nacional, a saber: discos de consumo mais rápido e singles de assimilação mais fácil. Não que conteúdos mais rápidos sejam necessariamente medíocres, não cairemos no argumento oposto aos que acreditam que pular partes para ouvir os mcs favoritos, seja um procedimento autêntico.
O fato rápido e certeiro, é que Kamau encarna toda a artesania e cuidado no tempo de maturação de sua arte, tratando-se quase como um relicário de onde só pode emanar bençãos divinas. Ao todo, são mais de 38 minutos de música e vídeo, rap para dar com pau, como dizemos por aqui. Do hospício até a igreja, mas preferiria pensar em alguma religiosidade laica que por isso mesmo é sincrética enquanto postura ética. O hip hop nos impulsiona a crítica e o pensamento e eu gosto do rap, sobretudo amo a cultura hip hop, gostei de ter assistido, acho que tem muito a ser pensado ali e sobre a PineappleStorm. Eles estão produzindo coisas que tem se tornado marcantes para o rap e seus sucessos podem abrir espaço para critícas e debates que são obviamente necessários se queremos crescer, então: Segue o baile, seguimos na luta rumo ao cume!
-PineappleStorm: Descascando o Abacaxi – Quando o hip hop ensina
Por Danilo Cruz