Aspri RBF nos embala no colo de um pensamento preto: 7º Sentido!

Em seu disco de estreia, Aspri RBF nos traz o seu 7º Sentido (2022), que reestrutura sua vida, sua arte e nos ajuda a pensar e sentir!

Aspri RBF
foto por: Filipe Oliveira

Sigam, mas desse jeito pra não cair, amarrados uns nos outros!

Apenas as vivências não dão conta de transformá-las em arte, a participação em uma cultura autoriza, mas não necessariamente capacita à produção artística. Os interesses pessoais não podem querer se configurar como pautas políticas automaticamente, por mais que tenham como ponto de partida uma fulguração individual.

A negritude é infinita em dimensões, fruto de um processo histórico cruel, produtor de confusões, contradições e escolhas de resistência, e deste modo, ela tem se constituído no século XXI como um campo de disputa. Entre a esquerda e a direita política, como uma forma importante de representatividade social e enquanto produtora de estéticas.

No caso do rap nacional, essas questões estão dialogando ultimamente com a indústria cultural em um jogo de tensões que cada vez mais pende para o esvaziamento de pautas políticas importantes e para a homogeneização de palavras de ordem e signos que pretendem carregar africanidades.   

O disco de estréia de Aspri RBF é uma pequena peça musical que nos impulsiona a repensar o que significa ser homem negro, quais as nossas bases filosóficas, de onde partem as nossas escolhas para a crônica social e sobretudo e qual o tipo de visibilidade que nós queremos. E suas respostas partem de um quase renascimento, de uma aproximação do feminino como força criadora e reguladora (cuidadora) da existência!

Composto por rápidas 7 faixas, após a audição dos 27 minutos e uns quebrados que compõem o disco, somos impelidos a dar o repeat, pois nos damos conta do tamanho daquilo que é abordado pelo artista. Aspri RBF é um dos nomes mais importantes do cenário hip-hop da capital baiana, dono de uma caminhada cheia de realizações em prol da cultura e de uma discografia que conta com um EP e três discos com o seu grupo R.B.F. (Rapaziada da Baixa Fria).

Dito isso, obviamente a estreia de Aspri RBF em disco dialoga não apenas com as questões por ele levantadas mas com o resultado de uma trajetória de pelo menos 23 anos na cultura hip-hop. Em tempos onde as novidades ditam a atenção, esse trabalho demanda esse esforço a mais, se quisermos lhe entender melhor!

O que é esse 7º Sentido? 

Ao longo de sua trajetória de vida e de sua caminhada como parte integrante e ativista na cultura hip-hop da Bahia, Aspri RBF ajudou de diversas formas a pavimentar um caminho que hoje ele manda alafiá. Uma construção feita de ativismo, arte e postura política que hoje se abre para todos nós como um trabalho solo, mas não somente. 

A grande sacada presente nas ideias e na lírica hip-hop apresentada por Aspri RBF nessa estréia solo, está de modo inequívoco na força com a qual o mesmo traduz em poesia toda essa caminhada, todo esse acúmulo de modo leve e porque não, feminino. Não se trata de mimetizar uma feminilidade, mas antes de alcançar – como o poeta da baixinha o faz – um a “Matripotência”, a feminagem em sua escrita. Muito desta construção inclusive se deu através de trocas com a sua companheira e esposa Edeise Gomes, mestre em Dança e atualmente doutoranda da UFBA. 

Aproximando-se dos ensinamentos, das palavras e cânticos, da sabedoria das matriarcas que dão conta da religião de matriz africana, emerge do útero mítico renovado com sua masculinidade preta consciente de si mesmo e de seu papel e importância! Berço de uma civilização primordial, a África teve no matriarcado a sua principal forma de organização social. Porém, não há aqui nenhum papo feministo haribô, o re-conhecimento, o conhecer de novo inaugural que Aspri RBF nos traz diz respeito a África, a nenhuma outra forma de pensar a mulher, o feminino, a mãe em outras sociedades. 

A pensadora, pesquisadora e mãe Anin Urasse nos ensina: 

“Em muitas sociedades africanas, deus é chamado de mãe, não de pai. E, em algumas delas, além de rezar para que a cabeça de sua mãe lhe ajude, uma forma poderosa de resolver um problema é se ajoelhando e invocando as forças do momento do seu parto. Retornar ao momento de abertura do portal e, de joelhos no chão, na nossa posição tradicional de parir, convocar toda sua ancestralidade para que interceda junto ao problema que está passando.”

É através dessa noção ao seu próprio modo, que Aspri RBF produz um disco de culto aos ancestrais e que tem neste 7º Sentido o seu ponto de partida; a partida de sua mãe e do seu pai, 2008 e 2018 respectivamente, lhe colocou os ancestrais em contato direto, avisando-lhe dos cuidados necessários. A música de abertura e a segunda faixa do disco nos dão a dimensão real da força feminina como impulsionadora dessa obra. 

Aquahertz, uma musicalidade como elogio da diferença!

A produção da Aquahertz que preenche o disco, com exceção do beat do mineiro DJ Preto C, remete-nos todas elas a uma sonoridade africana, moderna, atualizada, mas sem recair nos clichês. Hoje é comum, no rap e na música em geral buscarem signos sonoros que remetem à África para acrescentar “valor” ao produto estético que adentrará o mercado. Não é o caso aqui, estamos diante de um produtor – Marcelo Santana – que em seu trabalho com a Aquahertz tem produzido os grandes cruzamentos autênticos entre a diáspora e o continente, se duvidam ouçam os trabalhos dele com o Marcola Bituca!

Contando com a direção musical de Marcelo Santana, o disco segue suave e impactante em suas questões musicais, sem traço de repetição, com um brilho de timbres próprios, em momento algum recorrendo a penduricalhos quaisquer que pensem em termos de representativos. A busca e o alcance musical do trabalho é delicioso e sublime, mais uma vez, haja vista que o trabalho da Aquahertz tem se constituído em uma das melhores coisas feitas no Brasil em termos de rap nos últimos anos!

A mudança de eixo constante!

Um outro dado que nos chama atenção neste trabalho é a altivez com a qual Aspri RBF o cria, não há participações, não há estardalhaço, não há busca alguma por fórmulas. É todo ele fruto da “Alecridade” comunicada na sexta faixa do disco, uma espécie de convocação para que nos alegremos com aquilo que nós somos. Como senhor de si mesmo, o artista segue nos comunicando o que pode com o que tem, e é de uma riqueza grandiosa, como diria meu amigo Tiganá Santana: “a simplicidade é complexa!”, e ele o faz.

Utilizando um storyteller muito forte, “Sei que Vou Voltar” é uma narrativa doida e ao mesmo tempo corajosa, colocando nossa história de escravidão pra jogo. Menos uma volta à África mítica e muito mais a um estado futuro onde seremos capazes de erguer um reino de Ndongo das baixadas onde fomos confinados. Da mesma sorte, Aspri RBF utiliza diversas referências da infância dele e nossa – dos que passaram dos 40 anos – e que entendem a força de nomes como Jaca Paladium, ligando-as a nomes que seguem se atualizando como Homem-Aranha e Super-Homem. 

São arquétipos da cultura pop que lhes servem de exemplificação de modos de conduta, no qual se baseava ou se baseou em algum momento da vida para entender a realidade. A faixa “Gorô Gorô” faz essa brincadeira com a referência a uma brincadeira infantil. Aspri RBF segue montado no passáro Sankofa para com o seu rap para nos ensinar a relembrar e relembrando reconstruir nosso futuro!

Ao tomar África como centro de sua reflexão e a matripotência como impulso através do qual a percepção de seu 7º Sentido percebe o mundo, Aspri RBF constrói uma forte obra onde a negritude se localiza na vanguarda como sempre deveria ser. Um trabalho que vocês devem ouvir, ver, pressentir, entender e compartilhar!

-Aspri RBF envolto e embalando-se no colo de um pensamento preto!

Por Danilo Cruz 

 

 

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