Marcos Valle e Jazz Is Dead: no laboratório de Adrian Younge e Ali Shaheed. Uma entrevista para conhecer melhor essa gig!
Quando você pensa na palavra hype, o que surge na sua mente? O hype ganhou status de descolado no universo da cultura Pop. Em função de seu teor passageiro, acabou associado (principalmente) a esse pasteurizado cenário, mas nem por isso quer dizer que todo hype seja ruim – assim como a música Pop – vide a excelência de grupos como o Steely Dan, por exemplo.
Não é por que está hypado que o negócio só toca na rádio Disney, sacô?! É possível colocar qualquer groove em evidência, desde que o conceito criativo e o objetivo estejam claros e unidos por uma identidade sonora e visual muito bem definidas.
Pra resumir: Jazz Is Dead. O projeto que começou como uma série de shows reunindo os maiores mestres da música moderna, cresceu, se desenvolveu e colocou o Jazz no pódio do hype, na boca do povo, com um coletivo de músicos lendário e um conceito de som minuciosamente pensado por dois arquitetos da música negra contemporânea.
A história já está sendo escrita. O também selo de Ali Shaheed Muhammad (A Tribe Called Quest) e Adrian Young (The Midnight Hour), reuniu um time seleto pra gravar no estúdio Linear Labs. Com um elenco de notáveis formado por Gary Bartz, João Donato, Azymuth, Doug Carn, Roy Ayers e Brian Jackson, a dupla promove uma colaboração capaz de captar a essência dos músicos – com base num minucioso estudo de sua obra – e surpreende os próprios convidados com o resultado.
Foi isso que aconteceu com o Marcos Valle, o maestro que fecha a escalação desse time dos sonhos. Depois do lançamento do volume 01 – em março de 2020 – reunindo sons de todos os músicos do cast – e do volume 2 (primeiro disco de inéditas do Roy Ayers em 18 anos), liberado em junho, Marcos Valle registra o que não é só um de seus grandes trabalhos num frutífero histórico recente, mas também um dos lançamentos mais contundentes dessa série.
Track List:
“Queira Bem”
“Isso é Que Eu Sei”
“Oi”
“Viajando Por Aí”
“Gotto Love Again”
“Não Saia da Praça”
“Our Train”
“A Gente Volta Amanhã”
São 8 temas e 27 minutos de uma música de grande sensibilidade e que prima por resgatar uma sonoridade muito marcante no começo da carreira do também arranjador. Nesse registro, Ali Shaheed e Adrian Younge encontraram um lugar comum entre o Rhodes Funkeado e a Bossa Nova. O resultado? Um apaixonante blend que faz o compositor-cantor ressurgir refrescante e atual, mas ainda assim dialogando com esse momento, como se esse disco fosse uma sequência natural para trabalhos como o “Braziliance” (1967), por exemplo.
Pra entender a beleza desse registro, nós conversamos novamente com o Marcos Valle até pra entender também um pouco mais sobre como funciona esse laboratório de grooves da Jazz Is Dead. Se liga no bate bapo.
Oganpazan – Marcos, ano passado você participou de um festival que era intitulado “Jazz Está Morto” e ele contou com o Azymuth, João Donato, Artur Verocai e Liminha, além de você mesmo no line up. Foi nesse momento que você conheceu a Jazz Is Dead? Eles começaram justamente como uma série de shows – em 2017 – e queria saber se esse contato já vinha de outros tempos.
Marcos Valle – Não, foi um pouquinho antes. Na verdade, eu conheci eles pelo Andrew Lojero, que é empresário e eu já o conhecia de Nova York. Ele que fez contato comigo e acabou me falando sobre a Jazz Is Dead.
A ideia do conceito da Jazz Is Dead foi dele?
Sim, eles tem uma ideia de sonoridade e de concepção que é muito deles e que é o seguinte: você passa 4 dias ali no estúdio com eles e faz tudo. Lógico que a gente já chegou com algumas ideias de melodia e etc.
Sim, deve precisar chegar com um material pré encaminhado.
Exato, por que ali é tudo em parceria o que a gente fez. Coisas que eu comecei, eles terminaram e coisas que eles começaram eu terminei. Eu fiz todas as letras também e precisava terminar dentro do estúdio. Os arranjos também foram todos feitos ali dentro.
A experiência de imersão parece ser muito interessante.
Rapaz, é completamente diferente e tem outras coisas que eles fazem. Eles querem pegar os primeiros takes. Não só da instrumentação, mas da voz também. Eu fiquei pensando: que coisa louca, mal comecei a cantar, mas é justamente isso que eles querem: aquelas primeiras impressões e emoções do artista.
Foi aí que eu entendi. Existe uma sonoridade que é meio Jazzística, mas não é só isso e eles conseguem captar essa essência.
Eles conseguem extrair a identidade do som de cada um.
Exatamente, por isso que as vezes vai pra um lado mais Jazzístico, um pouco mais Soul e outras mais puxado pra Bossa. A minha música tem muito disso.
Oganpazan – O mais interessante ali é como eles se complementam, um veio do Hip-Hop e o outro do Jazz, os backgrounds são bem diferentes, mas tudo funciona muito bem.
Marcos Valle – Aquela mistura dá muito certo. Eu hesitei, pra falar a verdade. Primeiro eles vieram ao Brasil pra me conhecer e eu achei os 2 simpatissíssimos. Eles tem um estilo e ao mesmo tempo são muito fãs do meu trabalho e ai tentaram me convencer a participar.
Eu fiquei pensando: será que esse negócio vai dar certo? Mas como eu gosto de um desafio e já tinha ouvido a sonoridade, gostei do que eles estavam fazendo, então eu decidi aceitar e fui.
Até antes desse momento, o Alberto Continentino (baixo) e o Renato Massa (bateria), da minha banda… Não lembro bem onde nós estávamos, mas acho que era na europa e eles comentaram sobre o trabalho do Adrian e do Ali, principalmente sobre os trabalhos de Jazz. Falaram muito bem sobre.
Não tinha como dar errado.
Não tinha como dar errado e quando eu cheguei lá, rapaz, o estúdio deles é um barato, o Linear Labs. É tudo vintage, analógico e o Rhodes que eu toquei é um Rhodes dourado, lindíssimo, com uma sonoridade ótima.
Oganpazan – Nas entrevistas eles sempre falam desse estúdio, da questão de procurar pela sonoridade.
Marcos Valle – É impressionante. O Ali me pediu pra assinar, ele disse que não queria que ninguém assinasse, mas ele me pediu: você assina pra mim? Ele gostou muito do som que eu estava tirando e o estúdio também tinha sintetizadores maravilhosos.
Oganpazan – É uma relação de troca muito interessante, por que eles reuniram um time do mais alto nível. É um desafio enorme e eles estão dando conta do recado.
Marcos Valle – Sim, na época desse concerto que você mencionou, em 2019, eu toquei no último dia. Foi sensacional. O primeiro show lotou e tinha um monte de gente lá fora. Eles vieram falar comigo pra saber se não dava pra fazer outro e eu disse: claro, eu já estou aqui. Foram 2 shows excelentes e com ingressos esgotados.
Depois a gente se encontrou pra gravar o disco e aí eu passei os 4 dias lá e fui pra Portugal tocar e eles ficaram lá pra completar. Eles adicionam o trompete, a parte de metais, mas não edita nada. É o que é. É um negócio muito interessante. Quando eu ouvi eu entendi tudo.
Deve ser estranho no início por que eles sabem o que estão vendo, você não.
Exatamente e quando eu ouvi pensei exatamente isso, realmente os caras sabem o que estão fazendo.
Musicalmente ele tem essa identidade muito forte, mas o interessante é esse equilíbrio que eles conseguiram, entre o analógico e o digital, sem soar datado.
Eu não quero exagerar, mas eles tem quase uma coisa religiosa com aquilo.
Oganpazan – Deve ter sido muito louco trabalhar com essa perspectiva. Um deles já sampleou você e o outro conhece boa parte dos seus licks no Rhodes.
Marcos Valle – Sim e tem o seguinte, eles trouxeram um baterista que era bom pra caramba. O cara chama Malachi Morehead e ele é bom demais. Eu conheci nesse disco e o jeito que ele sente o groove e o entrosamento que a gente teve… O Adrian no baixo está sempre procurando algo, o tempo todo. O Ali também, enfim, foi um processo natural.
É tudo muito bem tratado e eu gostei pra caramba da experiência. A gente ia fazer o lançamento, eu ia voltar para os Estados Unidos para os eventos e eles já estão me propondo o segundo trabalho. Vamos lá né? Se deu certo, por que não fazer novamente?
A gente só vai esperar o vírus dar um trégua e vamos jogar isso para o ano que vem provavelmente.
Oganpazan – Funcionou de fato muito bem e a sonoridade que eles alcançaram com você me surpreendeu bastante. Pensei que o disco ia caminhar pra um lado mais Baião, meio “Vontade de Rever Você” (1980), mas ele relembra a Bossa que você trabalhou no início da sua carreira, mas com um approach atual e sem revisionismo.
Marcos Valle – Exatamente, esse trabalho dialoga com esse período e outra coisa que eu achei legal também foi que eu fiz o “Cinzento” (2020) nessa praia de grooves, com uns toques de “Previsão do Tempo“, que eu tinha gravado lá atrás em 1973. Já o “Sempre” (2019) – que eu fiz pra Far Out Recordings – é groove pra pista e eles foram visitar a Bossa, mas sem propor algo óbvio.
E o brasileiro é muito marcado pelo Samba-Jazz, achei essa fuga deles muito inteligente.
Isso me deixou muito feliz também por isso, eles pegaram um período da minha carreira que é muito especial pra mim. Eu fico contente com esses convites que eu recebo e esse particularmente veio na hora certa.
E o interessante é que se pegar seus últimos 5 discos, nenhum deles se parece.
É por aí que eu gosto de caminhar.
Oganpazan – O que mais chama atenção nesse tipo de colaboração, Marcos? Não só agora, mas com o Tom Misch, enfim, queria entender que aspectos dessa produção moderna chamam atenção nesse contexto de grooves.
Marcos Valle – Tem várias coisas de caminhos diferentes que me atraem. O Tom Misch foi uma coisa que veio, eu não sabia que ele era meu fã. Meu filho que me apresentou. Ele veio aqui em casa, a gente fez 3 músicas. Nós até nos falamos na semana passada. Eu vou participar do próximo projeto dele e quando eu gravar novamente, ele faz uma participação no meu disco.
Com tudo caminhando, a gente vai partir pra algo entre nós e vamos ver o que acontece. Essas coisas que eu vou ouvindo variam bastante e eu posso ser atraído pelo groove, pelo Criolo, pelo Tom Misch e ai de repente aparece alguma coisa de Jazz no meio, enfim, eu estou sempre ouvindo Guilherme, vou te falar que as vezes eu nem sei o que é, mas estou sempre procurando.
Marcos Valle – Eu não quero ficar na zona de conforto, eu gosto de explorar. Se eu tenho a sorte de ter ideias e convite pra isso, por que não fazer?
Oganpazan – Como que é sua relação com a cultura Hip-Hop, Marcos? Sempre quis fazer essa pergunta, mas nunca estive num contexto onde ela fizesse sentido como faz agora. O que você tem a dizer sobre o assunto?
Marcos Valle – Eu fui muito sampleado na minha carreira. Antes, quando o Jay-Z, Childish Gambino (Donald Glover), Kanye West, enfim, samplearam minhas músicas, eu gostei bastante das combinações. Quando eu fui trabalhar com o Emicida, nós fizemos duas músicas para o “Cinzento”, a faixa título e a “Reciclo”.
Eu fiz a melodia e quando ele foi gravar, foi engraçado por que ele veio para o Rio fazer essa faixa comigo e no mesmo dia eu já coloquei o piano na “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”.
Ele me mandou mensagem e falou: pô, Marcos você não quer aproveitar que a gente vai estar junto e bolar um piano? Eu adorei e nesse mesmo dia a gente já gravou tudo. Só que eu pensei que ele ia chegar com o Rap e ele chegou cantando! Estava tudo dentro da harmonia e eu fiquei impressionado, sabe? Estava tudo ali nas divisões, enfim, o cara é danado.
Oganpazan – É muito legal você enxergar isso, Marcos, por que essa galera do Hip-Hop não é respeitada pelo conhecimento musical em termos técnicos e de produção também.
Marcos Valle – Sim, ele cantou muito bem e eu fiz ele comprar um Fende Rhodes, sabia? Ele me ligou falando que estava a fim e eu disse que ele ia adorar, precisar mesmo. Ele acabou de comprar e está feliz pra caramba com isso.
Eu adoro as misturas e acho que tudo se combina bem e isso é bom pra todo mundo. Pra sua música, pra música do outro e você vai criando, adicionando a sua criatividade e eu sou fã disso tudo.
Oganpazan – A sua visão sobre isso é excelente, por que você fez o caminho inverso, do Hip-Hop para o Jazz e apesar dessa visão errada de enxergar essa cultura como algo empobrecido, é muito legal como você é receptivo com isso.
Marcos Valle – Então, você vai se acostumando. As pessoas que são abertas se acostumam, a cabeça abre e é preciso que você ceda também. Se você não tentar entender você perde.
Uma vez eu estava falando com o Ed Motta e ele também gosta de ouvir coisa pra caramba, ouve de tudo. E eu falei pra ele que as vezes eu estou ouvindo um som que não me impressiona, mas eu me dou esse tempo pra escutar por que as vezes aos 2 minutos e 12 segundos, naquela mesma música, pode rolar um negócio que você fala: caramba, o que é isso? Só que se você não se dar essa oportunidade de parar e de fato prestar atenção naquilo até o fim, você pode perder algo especial.
Mas pra isso você precisa querer saber das coisas. Eu estou aí há 60 anos na roda e o meu caminho é por aí. Eu já estou pensando no próximo disco para o ano que vem. Agora é esperar por que nós tivemos que adiar as datas. Tinha show no Japão, Los Angeles, turnê na europa, Austrália e agora é necessário esperar, mas os projetos vão rolar e enquanto isso você não pode enferrujar, tem que ficar em casa trabalhando!
-Marcos Valle e Jazz Is Dead: no laboratório de Adrian Younge e Ali Shaheed
Por Guilherme Espir