Monna Brutal, Pose e Emicida – Quando o Hip Hop Ensina

Monna Brutal e Emicida trabalham firme na construção de um hip hop inclusivo, a série Pose é excelente porta de entrada para a compreensão!!!

Paris Is Burning

Há uma necessidade crescente nesses tempos sombrios de debatermos a inclusão de mulheres e LGBTQI+ na cena hip hop brasileira, e é preciso que se diga, uma inclusão igualitária, não por cotas. Como tudo na vida, é um trabalho longo e cansativo de educar o público e a indústria para a necessidade de visibilizarmos esses imensos talentos. Mas um trabalho necessário, onde é preciso também nos apoiarmos na história para dar-lhes a ver que estes e estas estão na cena desde sempre, e que em grande medida fazem parte da gênese da cultura.

Um breve recuo histórico e veremos que foi dentro da cena de clubes gays em Chicago que uma das bases musicais do hip hop se criou, a house music, leia esse artigo aqui. Existem duas produções audiovisuais que deveriam ser obrigatórias no “kit gay” da cultura hip hop brasileira atual: Paris is Burning (1990) e Pose (2018-). O primeiro é um documentário fundamental, pioneiro e super premiado sobre a cena dos Ballrooms e as famílias que existiam nos anos 80 do século vinte, em Nova Iorque.

O segundo, é uma série do canal FX, criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals que dramatiza ficcionalmente toda a cena retratada documentalmente em Paris is Burning. No filme de Jennie Livingston, encontramos a fundamentação histórica para a narrativa criada em Pose e, nos dois casos, uma riquíssima cultura majoritariamente afrolatina de rua. Em Pose tomamos contato com todo o cruel, alegre, transgressor, solidário e inventivo cotidiano de drag queens, travestis, gays, transexuais. Percebemos como essas pessoas se apoiaram umas nas outras e na cultura dos balls para sobreviverem a uma série de opressões. 

Jovens expulsos de casa por começarem a se descobrir e a se construirem como são/como querem ser, são acolhidos nessas familias e passam a disputar, frequentar os ballrooms. Toda uma cultura emerge desse movimento, e que possui imensos, gigantescos pontos de toque e convergência com a cultura hip hop então nascente na mesma Nova Iorque, e por atores da mesma procedência/região, negros e latinos do Harlem, Brooklyn e Bronx.

Enquanto organizações sociais, as familias se estruturavam nas ruas como gangs, como crews. Nos Ballrooms, os bailes eram ao mesmo tempo locais de diversão e disputa, autoafirmação e aceitação coletiva. As disputas girando em torno não apenas dos elementos estéticos presentes nas caracterizações mas de toda uma reconstrução de papeis sociais. Como podemos perceber nas obras acima citadas, há uma superação ou ultrapassamento na década de 80 de uma tradição que remontava aos anos 50 e aos desfiles onde as plumas e paêtes eram o que reinava.

Nos década de 80 do século passado, os ballrooms se abrem a uma juventude nova iorquina negra e latina que está em contato com as novidades emergentes na cidade. Há batalhas de Vogue (dança que incorporava as poses das modelos da “bíblia” da moda), há as disputas de reading e shade, que são ataques verbais (isso te lembra algo?). As famílias se organizam em torno de mães como as lendárias Angie Xtravaganza ou Willi Ninja, assim como Pepper LaBeija, que lideravam através dos talentos únicos e de um forte impulso pedagógico. 

É nos anos 80 que ocorre uma incorporação nos desfiles de temáticas de ordem social, onde as “fantasias” a desfilar na verdade são papeis sociais, almejados por todo um grupo de pessoas impedidos de serem executivos, estudantes universitários, de serem reconhecidas em seu feminino, por conta de sua raça, classe, e orientação sexual e de gênero.

Aqui temos apenas alguns pontos de contato, de atravessamento entre se podemos dizer assim: duas culturas de rua oriundas do mesmo povo, protagonizadas por pessoas de uma mesma origem. E que partilham signos que lhes são comuns. seja na música, seja no desenvolvimento social, político e estético. Não queremos forçar aqui qualquer genealogia, mas antes, apontar e levantar a simples hipótese de um cruzamento necessário, de um desenvolvimento paralelo e de um entrecruzamento atual muito frutífero.

A cultura hip hop se constroi na mesma época e no mesmo local, e é pra dizer o minimo: ultrajante que hoje ainda, a homofobia e o machismo sejam em grande parte a tônica dominante de muitos de seus mais importantes atores. Trazendo essa discussão para o nosso país, no Brasil do século vinte e um, há um governo que é uma aberração nesse sentido, como em todos os outros.

No cenário hip hop e rap nacional, a uma explosão de artistas maravilhosos que estão dentro dessa caixa chamada LGBTQI+ e que mesmo com toda a invisibilização possível encontra forças para criar o mel do melhor do que essa cultura tem para oferecer.

A paulista Monna Brutal é uma dessas forças da natureza, que através de sua luta existencial acumulou bagagem suficiente para fazer a cultura hip hop crescer, se expandir até o seu objetivo primordial: lutar contra todas as formas de opressão. Num registro onde a artista, uma mulher trans negra consegue condensar um dos flows mais agressivos e técnicos do cenário atual do rap nacional, ela já vem com algumas participações, singles matadores e um disco de estréia muito pesado: 9/11 (2018). Incrivelmente, seu último lançamento vai muito na direção da cultura acima por nós mencionada. Fazendo espontaneamente a ligação que apontávamos sobre a cultura LGBT dos ballrooms de Nova Iorque.

No videoclipe assinado pela produtora Barraco Blindado, Monna Brutal aparece com um bonde pesado, divergentes em seus corpos, apresentando uma estética violenta – assim como o beat pesado de Rodrigues997 – que revindica o reconhecimento das diferenças. A potência das “Monnas” precisa ser incorporada urgentemente às pautas da cultura hip hop, se essa cultura quer permanecer revolucionária.

Os marcadores raciais nos parecem muito bem estabelecidos, apesar da necessidade constante de vigilância diante das tentativas de apropriação, resta-nos absorver com real empatia os marcadores de gênero e de sexualidade. Diga-se de passagem, é daí que tem vindo uma série de excelentes produções, confira aqui e aqui. Emicida publicou no jornal O Globo um artigo que vai exatamente nessa mesma direção. Citando Method Man chama-nos atenção para a necessidade de uma auto crítica profunda do movimento hip hop.

É dentro dessa perspectiva que recebemos o excelente último single Amarelo (2019), do mesmo Emicida que conta com Majur e Pabllo Vittar. Na preparação – impecável – para o lançamento do seu próximo disco, Emicida foi buscar num sample do grande Belchior uma espécie de ladainha que pode e deve nos servir como as linhas para a resistência necessária. 

“Ano Passado Eu Morri, Mas Esse Ano Eu Não Morro.”

A música Sujeito de Sorte presente no disco Alucinação (1976) do cantor e compositor cearense é certamente uma escolha fantástica e vai muito de encontro a ideia presente na campanha de lançamento veiculada para o próximo disco do Emicida: “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes.” Que a voz e a mensagem cheguem primeiro do que os estereótipos, que a inteireza humana constituída também de fraturas, dores e cicatrizes seja sempre o primordialmente percebido.

Em Amarelo, existe algo um tanto em falta hoje, em tempos onde cantar a depressão é muitas vezes visto como algo saudável, mas que acaba por produzir uma especie de música fúnebre que contamina e faz os signos tristes que nos impedem de agir girar dentro de um sistema reduntante. A arte tal como a concebemos, precisa nos comunicar a potência da alegria, a força da resistência e não os choramingos e lamentações que já possuímos todos no cotidiano.

E é isso que Amarelo nos apresenta, a alquimia da dor em força, a transmutação de todas as dificuldade na mais pura e genuína arte, como tem sido a história do povo negro em diáspora. Como tem sido a trajetória dessas mulheres negras, assim como das latinas, da mesma forma que a população LGBTQI+ produz alegria de uma vida toda trabalhada na exclusão. Se montar é um ato de resistência artístico existencial, para pessoas em que apenas assumir-se tal como se é já é a mais pura revolução.

No forte videoclipe que acompanha o single, em meio às imagens da cidade e outras como signos correspondentes ao relato que ouvimos em off  de um homem que sofre de algum distúrbio psicológico. A direção de Sandiego Fernandes capta agora uma favela e diversos homens, mulheres e crianças que lutam cotidianamente contra diversas dificuldades e alimentam seus sonhos, buscam formas de agir, de viver. 

A participação luxuosíssima de Majur e Pabllo Vittar numa música rap, sem necessáriamente abordar a pauta LGBTQI+ é um outro acertado passo. A Pabllo Vittar como estrela pop nacional que tem se afirmado plenamente dona de si mesma junto a Majur, artista não-binária de Salvador que surge como uma grande promessa, e já tem o bom EP Colorir lançado. Essas participações nos mostra as n potencialidades dessas pessoas e a importância de retirá-las da caixa restritiva LGBTQI+, é uma necessidade para o seu devido reconhecimento como artistas.

Enquanto cultura, o hip hop necessita daquilo que Emicida chamou de valores inclusivos, mas de uma maneira muito radical, ou seja se apegar às raízes. E nesse caso, se apegar às raízes é observar nossa história de modo crítico, perceber como o público LGBTQI+ esteve lá desde o começo, como as mulheres também, e como assumir suas lutas é o que de mais próprio essa cultura possui agora no século vinte um. O hip hop segue ensinando, vamos aprender e como também cantou o Belchior: 

“Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer meu amigo, que uma nova mudança em breve, vai acontecer, e o que algum tempo era jovem novo, hoje antigo, e precisamos todos rejuvenescer”

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