Zetrê e Shomon ou o que é Jabá?

Zetrê, Shomon, Rap Cru e o Programa Freestyle são diferentes canais de mídia do rap nacional, estilos diferentes, porém o que é mesmo Jabá??

Chacrinha

Jabá – Um tipo de carne seca.

Jabá – Termo utilizado na indústria da música brasileira para denominar uma espécie de suborno em que gravadoras pagam a emissoras de rádio ou TV pela execução de determinada música de um artista. (wikipédia)

 

Para o artista da música que está iniciando uma carreira ou ainda para o artista independente de modo geral, não basta ser criativo, correr atrás e conseguir produzir com qualidade, ele precisa divulgar o seu trabalho e consequentemente alcançar o público. Desde os primórdios da indústria fonográfica que o Jabá existe como algo sabido, mas não abertamente institucionalizado ou escancarado. Na verdade, ainda na Europa do séc XIX, quando um empresário de partituras chamado Thomas Chappell pagou a cantora lírica Clara Butt para que ela adicionasse algumas músicas ao seu repertório, fazendo aumentar a venda de suas partituras, o jabá já rolava. 

O pagamento para que rádios e Djs tocassem suas músicas e em alguns casos exaustivamente, eram comuns, ainda o são, mas tem se travestido de outras práticas. No Brasil, André Midani em uma entrevista de 2003, esclareceu como o funcionamento do jabá operava entre gravadoras e rádios. Criando inclusive uma corrupção adicional, quando os próprios responsáveis pelo processo de divulgação dos discos, e os próprios dj e locutores das rádios já tiravam o seu por fora. Tirando das mãos das gravadoras e rádios as negociações jabaculeiras, criando um mercado interno. 

Com o advento da internet muitos artistas independentes viram a possibilidade de ter seus trabalhos divulgados de forma livre, sem passar pela mão de intermediários. E de fato muitos circuitos de divulgação independentes foram criados, muitas bandas e artistas viram e conseguem ainda hoje ter seus trabalhos alavancados por plataformas “livres” de divulgação. Do myspace ao youtube, spotify, muitos artistas se dão a conhecer sem a necessidade de pagar alguém especificamente para isso. Quando nada, um impulsionamento no facebook ou no youtube já cumprem a função de divulgar de forma “limpa” e objetiva.

Outra importante conquista com a internet foi a possibilidade de que muitos não jornalistas – como esse que vos escreve – possam blogueirar suas opiniões, gostos e pensamentos. Isso em todos os campos, mas certamente na música, criou-se vários canais de divulgação para artistas não escutados ou não conhecidos dos grandes centros de jornalismo musical. E o rap não poderia deixar de se beneficiar disso, ainda mais no nosso país onde sempre foi visto como música menor, ou até como não-música. O rap se beneficiou e ainda se beneficia de uma midia independente e militante que cede espaço e esforço para artistas dos quatro cantos do país.

O advento da internet possibilitou aquele moleque que produz seu som num pc velho, com o microfone do próprio, com beats baixados da internet a veicular seu trabalho. Abriu também todo um filão de mídia alternativa de primeira grandeza, com pesquisadores e jornalistas do porte de um Jair Cortecertu e a equipe pioneira do Bocada Forte. Porém toda expansão abrupta vira um velho oeste, sem lei e sem patrão, tá legal, mas não é bem assim. Tem sido repetido recentemente que a história se repete uma vez como tragédia e outra como farsa, interessante como o relato do filho do Chacrinha, Leleco Barbosa elucida bem o que estamos vivendo hoje na mídia do rap nacional, ou em parte dela e não apenas nela:

“Boto o artista [na tv], mas ele tem que ir ao show [cujos ingressos eram cobrados]. Era uma coisa mais que justa. Se o cara queria se lançar no programa, ia ao show em contrapartida”

Recentemente veio a tona em postagens no facebook o fato de alguns canais de reação/analise cobrarem para “reagirem” a determinadas músicas. Ao mesmo tempo, já é sabido que também alguns portais do rap também cobram por matérias, algo que é comentado a boca pequena, mas que segundo informações de nossas fontes, ocorre há muito tempo. Se os portais, canais de youtube, dos quais se espera, ou nos quais se acreditavam ter o mínimo de isenção e critérios claros não se negam a vender suas opiniões, espaços, transformando suas mídias num espaço de publicidade travestido de jornalismo cultural, o que esperar dos artistas?

FalatuzetrêInclusive possuímos hoje uma outra anomalia, historicamente a crítica musical sempre foi taxada como algo feito por pessoas frustradas por não terem talento artístico e por isso escreviam sobre música. Obviamente, essa acusação era feita ou é feita por quem teve ou tem seus discos detonados pela critica. Pois num registro mais simples, são apenas opiniões, ou visões do que seja ou do que se quer da música, jornalistas nunca tiveram poder de realmente acabar com a carreira de um artista, pois o público obedece outras regras. Mas além de cobrar por reacts e análises, encontramos em Zetrê a anomalia dele próprio reagir as suas músicas. Um espetáculo grotesco onde o médico e o monstro se confundem formando um bicho híbrido que não conseguimos nomear, a não ser como desonestidade. Obviamente ninguém nunca esperou que o Zetrê fosse um critico musical, mas pelo menos que se tivesse a desfaçatez de deixar outros fazerem isso com seu trabalho. Advogar em causa própria parece ser uma das coisas bastante comuns na mídia do rap nacional.

Em geral se esperaria dos artistas um posicionamento firme diante dessas práticas, mas não é bem o que vem ocorrendo. Já aparecem as cobranças para “feats” (participações em músicas) e agora há também a venda de espaços dos seus canais no youtube. Como recentemente alardeados pelos mc’s Raffa Moreira que passou a vender participações, e do rapper paulistano Nocivo Shomon que além de cobrar o feat, agora cobra também pelo espaço no seu canal. Digamos apenas que é uma resposta a altura nos termos do capital.

Enquanto artistas, eles podem obviamente cobrar pelo seu tempo e paga quem quiser, segundo as pessoas que acompanho pelo facebook e que são amplas conhecedoras da história do rap, essa prática é comum nos E.U.A., e diante disso eles entendem que isso é normal. Da mesma forma, se o Nocivo Shomon possui um canal bombado no youtube, ele tem todo o direito de vender o seu espaço conquistado, ainda melhor que anunciou antes, valores e a prática. 

Porém, um(a) jovem que consome a reação/analise do Zutrê no youtube, o faz acreditando que aquilo é feito de modo autêntico. Como seria se soubessem que a espontaneidade dele e de outros youtubers tem um valor acertado antecipadamente? Talvez se os mesmos soubessem, com certeza, entenderiam aquele “sinexxxxtro” de outra forma. Milhões de pessoas desconhecem o fato de que as músicas que passaram a vida escutando e que foram hits em certos momentos de sua história, só apareceram ali porque tinham sido pagas. E isso é danoso, sempre foi e sempre será, porque impede a divulgação da diversidade do que é feito e traveste algo que é propaganda em algo imparcial.

E é bastante curioso notar que na cultura do rap e do hip hop em geral, onde vendido sempre foi tomado como palavrão, como reprovação moral e política, agora os rappers já tem preço e as reações e matérias são pagas para aparecer. O “game” pode ser comprado, que vença quem tem mais grana.

Enquanto isso, o Programa Freestyle, um dos mais importantes programas da história do rap nacional está agonizando, internado na UTI, precisando da ajuda dos consumidores de mídia para se manter ativo. Capitaneado por Marcílio Gabriel que há 11 anos começou a divulgar e comentar a nossa cultura hip hop via podcast, virou um canal no youtube em 2016 e recebeu grandes nomes da história do Rap, de Mano Brow à Rúbia (RPW). É curioso, inquietante, pra não dizer ultrajante que mídias de qualidade agonizem para existir enquanto milhões de pessoas dão atenção ao que não importa nem um pouco. Mas essa é a nossa realidade, então se você é daquelas pessoas que curtem o trabalho do Marcílio, que apreciam mídia de qualidade, acesse o catarse do Programa Freestyle e contribua.

Da mesma forma, recentemente no grupo do Rap Cru, o Ronald Rios, seu criador e figura que comanda brilhantemente um canal de mesmo nome no youtube, recebeu um pedido do rapper baiano Baco Exu do Blues para que fizesse um review sobre seu último disco. Ronald respondeu afirmativamente e para nossa surpresa, quando Baco foi informado pelos participantes do grupo que o notebook do Ronald tinha quebrado e que existia uma campanha de financiamento coletivo do mesmo chamada Padim, o Ronald disse o que nós esperávamos ouvir: o Padrim é para admiradores do canal, não para o objeto da critica. Sendo assim, contribua você também para que Ronald possa trocar essa porra desse notebook que só anda quebrando. 

O fato é que na corrida por visibilidade, mc’s/artistas da música pagam para aparecer e pessoas que tem alguma projeção, merecida ou não, cobram pelo serviço e o nome disso é jabá. Uma prática lamentável, que qualquer manual de ética jornalística condena, mas que no jogo das notas é visto por muitos como viável e em alguns casos como algo bem justo. Entendem esses, que se não roubou ou matou, não há crime, e que quem oferece um serviço está apto a cobrar por ele. É triste ter que lembrar que quem trabalha com produção de conteúdo, com jornalismo cultural, critica musical, vende a sua força de trabalho porém, deveria manter sua integridade intelectual intacta, pois é isso que ele oferece como serviço. E se a matéria, reação, ou participação em música é paga, há que se duvidar da autenticidade disso. 

Há uma enorme ilusão de que o público e os artistas do rap são super politizados e engajados, intelectualmente avançados e etc. Se é óbvio que muitos deles transformaram e transformam nossas ideias e percepções do real e se fizeram pensadores, sim pensadores, respeitados inclusive na academia branca e racista. É bem verdade que muitos de ontem e de hoje, destilam ódio ignorância e falta de conhecimento e que o público, hoje muito grande, mas em sua maioria jovem, precisa repensar o que consome.

Gostaríamos de indicar que assistam o excelente Quadro em Branco e o Rap Cru. E que o programa Freestyle volte o mais rápido possível. Pois jabá só é bom frita e com farinha, ou pirão de água. 

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