O artista manaura Victor Xamã lança o EP Calor com participações de Froid e Baco Exu do Blues entre outros, em 5 faixas muito quentes
“Só quem carrega o caos dentro de si, é capaz de parir estrelas”
O rapper manauara Victor Xamã lançou o seu EP Calor (2021), trabalho lançado com o apoio da lei Aldir Blanc e mais uma vez apresenta um disco sólido, pavimentando com firmeza uma trajetória irrepreensível até aqui. O artista traz em seu novo EP uma mescla que permeia de um modo original, aspectos do rap underground em sua lírica e beats, dialogando com o trap e com o drill em algumas produções, e também mostrando todo seu alcance vocal ao absorver influências da soul music. Perceber um artista, notae como ele vai se desenvolvendo ao longo dos anos, é um trabalho gratificante.
Gradativamente, desde o disco Janela (2015) Victor Xamã segue em pleno desenvolvimento pessoal e artístico, agregando também públicos ao longo do país tendo gravado com nomes de diversas regiões. Porém, VXamã nunca perdeu seu ponto de partida de vista, não se iludiu na geopolítica do rap centrada no eixo, e segue produzindo aulas que o nosso país insiste em faltar. Seja apresentando sempre artistas conterrâneos como Ian Lecter ou Kurt Sutil por exemplo, seja por estar sempre fechado com os manos da Qua$imorto, o apego a sua terra natal é um ponto fundamental de sua arte.
Como todo excelente artista, Victor Xamã queima suas angústias e dores, suas inquietações artísticas e suas pautas políticas mais uma vez, e a noção de Calor é aqui expandida. Apesar de ser um trabalho com apenas 5 faixas a arte quente do Victor Xamã cria uma amálgama de sensações, ideias e sonoridades muito únicas com assinatura própria e um conceito que atravessa musical e visualmente todo o trabalho.
Como dissemos acima, a poesia e a música do VXamã sempre retornam a sua terra natal, produzindo assim um contrafluxo antinatural no rap nacional. Atualmente habitando São Paulo, o MC faz pelo poder da sua arte com que as águas do seu rio retornem para o norte, produzindo um “duplo” do movimento natural de encontro do rio com o mar. Essa postura, coloca em xeque o status quo do rap nacional e alimenta todos aqueles que encontram em contato com a sua arte, assim como cria uma possibilidade fluvial para que a cena do norte venha a ser melhor conhecida e explorada.
A faixa de abertura do EP, homônimo ao título, traz a Nic Dias, uma MC de Velém do Pará que tem aos poucos se destacado nacionalmente. Num beat de arrepiar do lvks, que solta um blend boombapzeira under VXamã e Nic Dias versam com solidez sobre diversos aspectos do “Calor” que assedia o norte. O caos político e o apagamento do norte, as briguinhas internas de uma cena com poucas oportunidades, mas indo além e produzindo imagens poéticas que abordam também a urbanidade e críticas ao eurocentrismo que faz o eixo ter sempre o fora, o que vem de fora como espelho. Victor Xamã abre com linhas muito fortes. Nic Dias toma o eixo mulher-negra como ponto de partida e de chegada para sua poesia crítica contra as violências aos seu gênero e raça.
Primeiro single lançado, “Contraste” traz o crooner das rimas cpaz de mandar um soul guardando ainda assim linhas muito pesadas, a certa altura a bonita voz da Gabi Farias entoa: “O mundo vai querer te machucar”. Uma espécie de meta-comentário aos contrastes que VXamã aborda de modo geral, a inadequação ao mercado, a mudança para SP. O brasiliense Froid fecha a tríade com um flow e a bonita voz que ele encadeia nas suas rimas e que joga afinado aos dois primeiros.
“Se acaba admiração o amor esfria”
Em “Admiração” Victor Xamã produz uma intrincada relação entre a vida artística e a vida amorosa, Com a participação da Anne Jezini e num beat do Neguim, o rapper aborda a necessidade de cultivo do novo nas relações, a importância de seguirmos aprendendo junto e criando com, novas possibilidades, de vida, de arte, de amor. Ao mesmo tempo, VXamã mostra o quanto é importante estar plenamente ciente de si mesmo e do que se quer, e demonstra muito bem isso com braggadocios muito bem urdidos. Ele segue surpreendendo, público, crítica e esse trabalho é prova disso.
Na faixa em que traz um feat com Baco Exu do Blues, VXamã mete uma referência que demonstra muito o forte senso de empatia que esse mano carrega e vai além de quaisquer ideias de lealdade moralista. A certa altura ele rima: “suando ouro tipo Davi”, referência a outro MC baiano muito conhecido no under nacional: Davzera aka Beirando Teto. Aqui temos, quase que uma espécie de manifesto de amor ao cenário e a estética underground do rap nacional, do qual o manauara é cria.
“Balas & Canivetes” passa muito por essa afirmação daquilo que é “defeituoso”, daquilo que foge do modo correto de se fazer rap, Baco soma resgatando talvez sua faceta mais interessante, a capacidade de rimar sujo. A produção da faixa é novamente do Neguim, que utiliza samples de violão e cria uma batida pesada, híbrida de estilos e naquela cadencia que chama o corpo pra balançar.
Além de cantar e rimar, Victor Xamã também é produtor de mão cheia, e assina a última faixa “Manaus Delírio”, e PQP que groove nojento. Resgatando os signos de sua terra, o artista consegue aclimatar poética e musicalmente todo o calor da saudade que traz no peito. Produzindo um souvenir delicioso, desses em que batemos o olho e somos remetidos a lembranças que nos são caras, certamente isso é extraído da dor, das dificuldades de afastamento de sua terra natal.
Porém, é isso que fazem os grandes artistas, colocam para cantar os pássaros que trazem aprisionados no peito, nos fazendo perceber a beleza não daquilo que vivem, mas sim, da sua capacidade de transmutar as dificuldades em algo belo, de tornar o caminhar no fio da navalha e ainda assim ser generoso.
Victor Xamã é uma daquelas tribos intocadas no seio da floresta amazônica, no que tange a arte nacional, o rap no Brasil, por força do agenciamento que ele faz e de onde vem. Colocando pra rimar e fazer música toda aquela biodiversidade, a história do hip hop do norte, e segue cada vez mais se embrenhando nas matas da criação ao breve sinal de algum antropólogo que queira lhe estudar. É tudo isso que Victor Xamã queima na cidade, seja na sua capital Manaus, seja em Salvador ou em SP.
Se não bastasse toda a experiência subjetiva musical e poética a que somos expostos nesta obra, há ainda a possibilidade de ouvir/ver o EP Calor pelo youtube que recebeu uma arte individualizada em cada uma das faixas. Ana Ferrer & Daniel Teolfe são os artistas responsáveis pelas imagens animadas em 3D. O disco também recebeu um ensaio fotográfico muito bonito pelas lentes da talentosa Isa Hansen, com quem VXamã já trabalhou antes em audiovisual também. Enfim, se é verdade que o EP é o novo disco, o que não encontra evidências no mercado musical mundial que segue tendo uma imensa produção de discos cheios, temos aqui um padrão muito difícil de ser alcançado!
-Victor Xamâ em combustão espontânea – Calor EP (2021)
As fotos que ilustram a matéria são da Isa Hansen
PorDanilo Cruz