Tamara Franklin ensina as regras para o aquilombamento em Fugio (2020), segundo disco da MC mineira chegou cheio de groove e rimas afiadas!
Muitos artista fogem constantemente das regras do mercado e do gosto médio do público assim como do radar de quem faz mídia para o mainstream. Entre os nossos ancestrais, aqueles que conseguiram manter sua saúde mais inteira fugiram e se aquilombaram, e assim arrastaram e contestaram o sistema escravagista em vigor durante séculos em nosso país. Tamara Franklin em seu segundo disco atualiza o fugir com Fugio – Rotas de Fuga para o Aquilombamento (2020), disco que conta com a produção de Chico Neves. Uma demonstração exuberante de saúde diante de um mercado que teima em tentar esmagar artistas independentes e principalmente mulheres negras.
Desde que começamos a cobrir o cenário nacional do rap brasileiro, todos os anos percebemos o quanto trabalhos de excelência feitos fora do eixo, ou por mulheres negras e ou pessoas trans, LGBTQI+ nunca recebem a mesma atenção. É comum ver discos medíocres e artistas extremamente limitados serem alçados pelo mercado, enquanto na mesma proporção um apagamento efetivo de excelentes trabalhos ocorre. E dentro desse contexto é comum artistas buscarem sonoridades mais palatáveis ao que está no hype para tentarem ser melhor absorvidos.
A MC mineira Tamara Franklin foge, corre às léguas de quaisquer práticas de tentar se fazer ouvir se nivelando por baixo – curiosamente – ao que está no topo. Seu primeiro disco nos deixou excelente impressão. Desde lá, tendo ouvido atentamente seu álbum de estréia Anônima (2016) – que inclusive esteve aqui nas páginas do Oganpazan – já a colocavamos como uma das MC’s mais interessantes do rap nacional. Seu novo disco vem confirmar essa forte impressão ao esbanjar uma luta, uma visão da história e pautando questões políticas e sociais através de uma expressão estética bastante coesa em sua diversidade e com muita singularidade.
Em tempos onde vemos uma exaltação de sonoridades que fujam do convencional, em geral servindo para justificar aproximações com o pop mais chinfrin para agradar a branquitude, Tamara Franklin aposta no groove. Um firmamento nos grooves que servem de “bases” para um discurso afiado e nervoso que só quem se aquilombou é capaz. Colocando raça em primeiro lugar, e o machismo como um alvo adjacente, a MC mineira faz da cultura hip-hop e da música afro-diaspórica sua arma para seguir combatendo na fuga ativa, esses males que segue vitimando nosso povo. É um exercício – esse feito – que extrai força e beleza da luta, com expressão impactante e bonito de se ouvir.
O disco conta com 10 faixas e participaçôes de Iza Sabino, Colombiana, Dona Bete, Berê MC, Neghaum e Coral Vozes de Campanhã. Feats esses que abrilhatam e apresentam vozes diversas que coadunam com a ampla riqueza musical presente no disco. Em Fugio – Rota de Fuga para o Aquilombamento (2020), somos tomados por um segundo disco que não deixa-nos dúvidas sobre o engrandecimento artístico e político da autora. A produção de Chico Neves é impecável e é a outra metade responsável pelo brilhantismo do disco, ao ser capaz de extrair todo o potencial musical e lírico de Tamara Franklin.
“Quando uma mulher negra se movimenta , toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela!” Angela Davis
A riqueza da produção de Chico Neves pode ser constatada no equivalente musical produzido para acompanhar de modo efetivo a pluridimensionalidade da mulher negra que Tamara Franklin apresenta. Ao longo do disco somos levados a conhecer não apenas storytellings como em “A Rosa e o Cravo” onde a narrativa firme e de denúncia às violências sofridas pelas mulheres negras, mas somos levados a outras faixas que vão até o nosso processo de colonização, deixando mais claro essas formas de dominação.
Apresenta-se também uma mulher de luta, uma mulher de companheirismo com outras mulheres, uma mulher de amor com o seu preto, uma mulher que admira e se inspira nas mais velhas, enfim, são muitas as dimensões dessa artistas, mulher negra! Essas várias dimensões todas em movimento via ritmo e poesia, dão conta de Fugio – Rotas de Fuga para o Aquilombamento (2020). Nos dando, necessidade de encontrá-la via repeat no disco, não para aprisiona-la mas para aprendermos também a fugir.
Longe de uma ancestralidade pret-a-porter, ou meramente de boca, ao incorporar signos do camdomblé ou da umbanda, hoje tão voga para melhor ser exaltado pelo mercado do tombamento, Tamara Franklin recorre a música e ao signo maior da luta negra no Brasil. O Aquilombamento é o procedimento pelo qual tomamos contato com a sua ancestralidade expressa musical, política e socialmente ao longo do disco. Recorrendo ao samba, aos tambores de Minas, ao baixo groovado, há uma excelente junção de estilos musicais que são de modo original e próprio sampleados – mesmo organicamente – ao longo do disco.
Da mesma sorte, os audiovisuais previamente lançados para preparar o disco, em “Saúde pras Irmãs” (feat. Colombiana, Neghaum e Iza Sabino) vemos um ecossistema lindo de pretos e pretas que fogem ao padrão e que são focalizados em todo o seu esplendor. Mandando um salve para o coletivo de modo geral, mas focando nas manas que rompem o machismo e visam o fortalecimento de outras pretas, formando um bando, bonito e forte. Você percebe a força da visão da Tamara Franklin quando você ouve ela cantar/rimar que o amor é político, algo tão falado e tão pouco praticado. E essa idéia é trabalhada em diversos níveis.
Como dissemos, sua ancestralidade é toda uma atualização política e não uma utilização semiótica para convencer e se adequar a negritude emergente discursiva e mercadologicamente no nosso país no século XXI. Não à toa se escolheu o título do disco, aquilombar-se é também um procedimento subjetivo, porém esse só encontra sua verdade na prática e aqui numa práxis estética, muito bem pensada e trabalhada. Isso a mestre de cerimônia o faz também na dosagem muito bem feita, de situações relatadas nas rimas, nas pautas muito bem equilibradas e sobretudo na radicalização das ideias!
O segundo disco da Tamara Franklin entrega exatamente tudo aquilo que promete no título, sem firulas desnecessárias, sem ceder às modas sonoras e estéticas, sem aliviar no discurso e com bastante riqueza musical. Ritmo e poesia de um grandeza conquistada, com a força da mãe África de quem ela é substância, e com a coerência hip-hop de onde ela é cria e se filia a cada novo trabalho com maior beleza e riqueza. Ouvir esse trabalho é ver uma preta que merece ser noticiada pela potência artística de sua fuga, mas essa não será capturada, essa negona com todos os atributos de rainha não possui preço, senão um valor imensurável.
– Tamara Franklin ensina as regras para o aquilombamento em Fugio (2020)
Por Danilo Cruz