Quero comer Jonnata Doll e os Garotos Solventes, É esta a sensação que tive vendo o show É sexy é livre é louco e é lindo. Tesão vivacidade
Por Perola Mathias
Se tem uma expressão que soa cafona nos dias de hoje é “sexo, drogas e rock’n’roll”. Se antes o rock era uma expressão, um meio e um refúgio de liberdade de pensamento e de atitude, onde todos aqueles que se sentem oprimidos de alguma fora pela estrutura social, econômica, cultural, política ou moral encontravam um espaço, hoje o rock brasileiro, aquele se dizia genuíno e desbravador, é o reino do conservadorismo. Muitos músicos e compositores que lançaram discos importantes para nossa musicografia, hoje não fazem mais do que repetir fórmulas e discursos retrógrados. O “rock”, como uma cultura ou modo de ser/agir, é hoje a maior desculpa para abrigar individualistas que, pelo mundo e por si mesmos, não fazem nada de relevante. Um rock que deixou de ser resistência e passou a ser, no melhor dos casos, resignação. Nesse cenário, até mesmo muitos dos festivais independentes, que davam a dimensão da força do rock, do punk e do metal produzidos fora dos grandes palcos, rádios e gravadoras, aos poucos foram ficando repetitivos, pops, caros, etc.
Mas é óbvio que mesmo com toda a crítica e pessimismo do que escrevo acima, tenho consciência de que essa visão não pode ser generalizada. E acredito que o que descrevi é, na verdade, válido apenas para aqueles meus contemporâneos, da mesma geração ou de gerações próximas à minha, que não acompanham o mundo enquanto ele não para de girar. E é aqui que entra a inspiração e o motivo deste texto: um quinteto chamado Jonnata Doll e Os Garotos Solventes.
No último sábado, assisti ao show dos Garotos no Stage Bar, na Pompeia, aqui em São Paulo. Já imaginava que o show seria eletrizante por causa da figura de Jonnata, que eu já tinha visto dançar num show de Catatau e o Instrumental no CCSP, numa performance linda e radical de integração da música com sua performance.
Completando, então, a lista de adjetivos, o show dos Solventes foi um dos shows mais enérgicos e excitantes que vi recentemente. Com dois discos de inéditas lançados, Jonnata Doll e os Garotos Solventes (2014) e Crocodilo (2016), além de um ao vivo, o show foi permeado por performance, participações e integração palco/plateia. Começaram todos vestidos com lindos casacos punks, estampados, coloridos, com penduricalhos. Ao longo do show, os casacos (inclusive o meu), iam sendo jogados de lado e a energia, de lá e de cá, crescendo.
Não tenho muita condição de descrever qual foi a melhor faixa performada, nem exatamente um setlist: me dividi entre tirar fotos, dançar, analisar o show e beber. Mas destaco duas faixas apresentadas. “O mundo está contra nós”, do primeiro disco, que diz:
Você tá do lado do mundo
Eu não sei de que lado eu tô
Por isso eu vou, vou, vou!
Queria viver igual ao filme
Mundo velho de horrores, um bando de lixo
Longe do tédio, moralismo mortal
As pessoas cantavam loucamente, se jogavam no chão, Jonnata vinha pra perto, era agarrado… uma loucura muito boa. A outra é “Táxi”, do disco Crocodilo, que Jonnata explica como fez, contando um pouco da percepção que tem de sua cidade natal, Fortaleza, e que corrobora para que a descrição da banda feita por eles mesmos seja totalmente real: “Banda de rock de Fortaleza que reflete a cidade pelo olhar de um cara suburbano que acha que a vida dos esquecidos tem potencial para uma história incrível”. A música é cantada na voz (lírica) de um taxista, que leva e traz muitos turistas estrangeiros pela avenida beira-mar, “todos querem o mesmo, todos estão a sós/ Vem gringo, eu vou te mostrar/ uma garotinha bem novinha/ ela faz coisas legais/ por muito menos de 30 reais”. Este poderia ser o Brasil das décadas de 1980/90, mas é ainda a realidade de muitas capitais litorâneas, sobretudo no Nordeste.
Jonnata diz que quando não fala de drogas, fala de amor. É um fato em suas letras. Mas ao mesmo tempo, falando de drogas e de amor dentro de seu universo marginal, estas letras pintam o mundo vivenciado pelo grupo de maneira muito profunda, dando uma dimensão de como eles percebem e se sentem inseridos na sociedade de maneira ampla.
Jonnata e os Solventes – Joaquim Loiro Sujo (baixo); Edson Van Gohg (guitarra); Léo Breedlove (guitarra); Felipe Maia (bateria) – passaram a residir em São Paulo há mais ou menos 2 anos. Catatau, do Cidadão Instigado, foi um dos grandes entusiastas de que Jonnata viesse para São Paulo e levantasse voo por aqui. E tanto Jonnata quanto seus companheiros de banda trabalham em diferentes projetos e linguagens artísticas. Jonnata tem tido uma relação bem próxima ao cinema com o diretor Dellani Lima, que dirigiu o clipe “Rua de trás” e com quem filma e atua em “Planeta Escarlate” (2016). Léo BreedLove é também guitarrista da banda cearense Verônica decide morrer.
E a cena artística e musical vinda de Fortaleza tem chamado cada vez mais atenção. O próprio Jonnata cita bandas locais que o influenciaram. E destaco que Cidadão Instigado, que fez agora 10 anos, é uma das potencialidades máximas da música independente brasileira, tendo lançado em 2015 seu quinto álbum de estúdio, Fortaleza, muitíssimo bem recebido pela crítica e pelo público. E também podemos acompanhar aqui em São Paulo o destaque de Daniel Groove, Os selvagens à procura de lei, Otogris (que já escrevi sobre no site Oganpazan), a própria Verônica decide morrer e outros músicos e performers.
O que o show de Jonnata Doll me passou é que mesmo a atitude roqueira sendo reconhecida como tal, ela também está mudando junto com o mundo e com a música. A música, e o rock brasileiro deveria fazer uma autocrítica exatamente aqui, nunca deixou de ser criada, recriada e transformada. É interessante que o posicionamento de Doll parece ser convergente com o que apontei acima. Em uma entrevista de 2015 ao site Scream & Yell ele diz: “Sinto os Solventes como uma aberração. Não somos bonitinhos, não tocamos de forma asseada, e somo um tanto imprevisíveis, mas acredito que muita gente está de saco cheio desses roqueiros que não ameaçam nada, por mais que tenham um monte de tatuagens, sejam gordos, bebam cerveja e comam carne como orcs. Somos uma banda que arde como uma vela na noite, queimando, queimando…”. Em outra entrevista, dada ao jornal O Povo, do final de 2016, já falando sobre o lançamento do Crocodilo, ele diz: “É engraçado, o nosso público aqui vem muito do teatro e do cinema. O pessoal do rock é meio hétero, meio machista e tem resistência comigo”.
Uma vez um músico me disse que muitos dos artistas que ele admirava eram aqueles que, quando você vê se apresentando, dá vontade de comer, que transmite uma sensualidade, que tem uma energia sexual mesmo vibrando ali no palco – demonstra tesão no que faz. Ele citava Bjork como “uma força da natureza”. É esta a sensação que tive vendo Jonnata Doll e os Garotos Solventes no palco. É sexy, é livre, é louco e é lindo. De uma vivacidade e voracidade que embaralha e dá vigor aos pensamentos, à cabeça e ao corpo.