A MC N.I.N.A estreou em disco com bastante sucesso, indo além e apresentando a complexidade de uma existência feminina preta e periférica!
Hoje vivemos o melhor período no rap nacional para mulheres da cena, em termos do volume de produções e visibilidade, certamente após uma luta que continua nos dias atuais. Apesar do cuidado necessário para se fazer uma afirmação dessas, sem que a mesma pareça desconsiderar a permanência da estrutura machista em nossa sociedade, essa constatação é um fato. Ainda assim, ainda não possuímos uma MC no mesmo nível de alcance que os seus pares homens na cena, e quando falamos de mulheres pretas o nível de visibilidade e sucesso desce ainda mais.
Surgida faz pouco na cena, N.I.N.A com alguns singles escreveu seu nome do radar do cenário nacional. O single “A Bruta, a Braba, a Forte” foi o seu cartão de visitas onde a MC pesa nas linhas mostrando para quem não lhe conhecia que a pegada é diferenciada. Construindo uma imagem de mulher preta combativa, livre e pronta pro arregaço, apresentando um flow fortemente cativante e o resultado não foi outro: hit! Neste primeiro momento se seguiram mais alguns poucos clipes e singles, chegando esse ano com o lançamento de seu primeiro trabalho cheio, o disco Pele (2022).
Muitas vezes sucessos arrebatadores nos colocam uma venda que nos faz não perceber de onde qualidades como as que N.I.N.A apresenta são frutos de cenários, territórios e culturas com muito tempo de semeadura. De certo modo, não nos parece exagero afirmar que aquilo que o álbum Pele apresenta de melhor, seja fruto de uma artista capaz de sintetizar influências diversas vindas de suas vivências, de seus estudos como DJ e da força da cena que acima mencionamos.
Há uma abertura construída com muita luta e um desenvolvimento político que vem sendo alicerçado na última década que N.I.N.A assume com muito vigor, arremessando para frente. Ao discurso erótico de uma liberdade sexual de mulheres pretas e faveladas que se desenvolve no funk carioca, a MC incorpora aspectos técnicos e pautas políticas presentes no rap, conseguindo expressar suas próprias demandas com originalidade em seu disco de estreia. Mulheres pretas que ainda hoje são acusadas de modo hipócrita de sexualizarem o discurso e sua própria imagem para vender no mercado, tem com seus próprios meios desbravado o machismo que faz pouco tempo obrigava mulheres no rap a se masculinizar para “fazer parte”.
Ao longo das 8 faixas que compõem Pele (2022), N.I.N.A usufrui com com muita desenvoltura técnica e poética a excelente produção do Terra e do Kash, que criou uma ambientação musical para todo o disco. As faixas deslizam em um pique sombrio nos dando a perceber o clima pretendido para o conceito do disco e sobretudo para o discurso racial implícito no trabalho. Enquanto muito se discute sobre quem é o pica do grime ou do drill e essas bobagens que tomam parte dos artistas de 5º série, N.I.N.A consegue nos apresentar em 1.29 min, com rimas velozes e letra impactante, todo o contexto que viveu até aqui no início de sua vida adulta.
A abertura com a faixa “Anna” é um soco na boca do estômago, e um exemplar raro em nosso cenário, de como o drill pode representar – quando nesse nível – um veículo potente e adequando a velocidade dos tempos, para o hip-hop. Tanto assim, que “10x Melhor (interlúdio)”, faixa que se segue, é a única que assume uma sonoridade diferente do drill, mas que nos encaminha para qual seja a vibe: “vai virar”, tem que ser 30 mil mandado pra derrubar essa mulher”. Após apresentar o contexto, ela nos apresenta a intenção.
Seguindo essa linha de raciocínio, N.I.N.A faz um rewind para os tempos do movimento, em “Luxúria” nos transmite uma reflexão onde o seu eu poético interpela os tempos de corre, as armadilhas e erros naquele momento, ideias que são continuadas pelo Vitin, feat presente na faixa. Relações amorosas e seus problemas são o tema da faixa “Culpa” que abre com o canto do Pejota, e onde também vemos a artista cantar pela primeira vez, mostrando outra qualidade de sua arte. A música apresenta um refrão bastante forte e “pegajoso”, sem em nenhum momento parecer enfadonha.
Grande hit do disco, “Oi, Sumido” traz Zarashi no feat, e se configura em nossa visão como um momento alto preparado por tudo dito e escutado até aqui. Abordando as relações casuais que podem por vezes degringolar para romances, N.I.N.A dá o papo de que um lance é só um lance, e que é melhor foder do que se foder. A letra é impressionista e traça mais uma selfie do que propõem a um tratado acerca desse problema hoje comum. A liberdade sexual x as relações monogâmicas estáveis, o romance dentro da tradição judaico-cristã onde a posse e a outra parte da maçã exigem dedicação e exclusividade.
Curiosamente, todos os feats presentes no disco de estreia da MC carioca são homens, e se levarmos em consideração o fato de que nenhum dos artistas presentes possuem números grandiosos, só podemos considerar essa escolha como estética. Sendo assim, a construção do disco também é pensada dentro desse “pólemos”, entre homens e mulheres dentro de pautas aqui dirigidas pela artista. Ora, em nenhum momento os duetos desafinam, antes oferecem visões complementares/conflitantes, como no casa de “Oi, Sumido”, o que enriquece o trabalho em termos de perspectiva e faz fugir de um panfletarismo amador.
Segundo hit da cantora no spotify, “Matemática” apresenta uma construção poética entre o bom humor e a malandragem, as contas são bem apresentadas e é seguida por “Malícia” que apresenta putaria boa em cores quentes, as duas sendo faixas ideais para paredões de todo Brasil. Não à toa, Malícia é o terceiro maior sucesso no streaming, trazendo Derxan que rima de modo bastante “rígido” em suas linhas. Todo esse caminho, nos conduzem a faixa final que para os ouvintes mais atentos inscreve o nome da artista a ferro e fogo na cena.
O disco encerra-se com a música N.I.N.A, onde a MC nos situa no seu momento atual, de trabalho como uma artista que está se firmando com muita força na cena. Abordando questões com os subempregos, racismo, machismo, os gatilhos psicológicos que podem adoecer e que são alguns dos obstáculos que ainda hoje mulheres pretas enfrentam para alcançar o reconhecimento merecido, assim como para conseguir trabalhar com arte, com dignidade: “Eu tô quebrando as expectativas de me ver falhar”.
Ao final do trabalho, possuímos um breve retrato de uma jovem artista negra que não se adequa a nenhum dos padrões impostos pela nossa sociedade. Seu corpo, sua pele, carrega o peso que atinge muitos milhões de outras mulheres em nosso país, e que aqui é transmutado em um espécie de grito através do qual N.I.N.A constrói com rigor e qualidade nas imagens da sua poética e nas ideias apresentadas uma caminhada na música. Da primeira a última faixa encontramos um disco coerente, portando um discurso forte, que trabalha na linha tênue que transforma vivência em arte, e isso a MC consegue fazer com tranquilidade, N.I.N.A é uma puta artista!
-N.I.N.A estreia em disco mostrando que o mais profundo é a Pele (2021)
Por Danilo Cruz