Marvin Gaye plasmou uma tábua de salvação para si mesmo, para a Motown e para todos nós: O que está acontecendo?
Quando o mundo está um caos se espera que os órgãos responsáveis tomem uma providência para mudar tal situação. Porém não é novidade dentro dos livros de história que isso nunca acontece, então cabe às pessoas irem pra rua, cabe aos músicos cantarem sobre isso, cabe aos cineastas ilustrarem os rolos de filme, aos poetas… Alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que ser o estopim para que algo aconteça, mesmo que seja com uma ”simples” canção.
Marvin Gaye nos apresentou em What’s Going On (1971) o desenvolvimento de uma perplexidade, de um espanto diante do real das coisas que estavam acontecendo no seu tempo. E desenvolveu isso através de cantos, melodias e harmonias que ao mesmo tempo serviram para expandir um outro tempo em sua gravadora, a Motown. A progressiva passagem da era dos grandes compositores “da excelente linha de montagem da empresa”, para a entrega do controle artístico aos artistas.
Se ninguém faz nada cabe à música a difícil tarefa de guiar o mundo para sua utopia, cabe ao Groove de cada dia abrir os olhos, ouvidos e mentes de cada um de nós quando o poder não o faz. O desespero toma conta das mentes criativas, a tal ponto que temos discos seminais sobre nossa existência, retratos tristes porém geniais de nossa própria ignorância, como o décimo primeiro disco de estúdio de Marvin Gaye, este clássico que nos coloca uma questão fundamental: ”What’s Going On” em 1971 mas que segue uma pergunta mais atual do que nunca.
Esse movimento é tranquilamente percebido desde a barba de Marvin Gaye até na própria estrutura do disco, o primeiro disco conceitual da gravadora negra que se notabilizou por possuir uma linha de montagem de hits. Momento de transição em todos os sentidos, a Motown não passaria incólume a tudo isso e respondeu a altura do desafio. Apesar da extrema relutância de Berry Gordy, Marvin Gaye venceu a queda de braços com o chefão da Motown e soltou essa que é a maior pérola de sua carreira.
A banda que toca por trás deste disco é imensa, é uma parte do grupo Funk Brothers, responsável por todo o instrumental da Motown durante praticamente toda a sua existência áurea e que foram relegados ao esquecimento. James Jamerson é o baixista do Funk Brothers escalado por Marvin Gaye para as gravações no famoso Estúdio A. Considerado um dos maiores gênios do baixo do século 20, JJ foi arrastado para o estúdio depois de uma bebedeira, porém o mágico das cordas não perdia a pose. Impossibilitado de sentar na cadeira para gravar, por momentânea perda do equilíbrio simples, deitou no chão do estúdio e produziu instantaneamente, deitado e bêbado a linha de baixo da faixa título. Mostrando que não perdia nunca a linha de equilíbrio complexa do groove, de forma alguma.
Além desse grande mestre do “som da Motown”, participaram do disco outros grandes nomes dos Funk Brothers: Bobbye Hall, Johnny Griffith, Earl Van Dyke, Jack Brokensha, Joe Messina, Robert White, Bob Babbitt, Jack Ashford, Eddie “Bongo” Brown e Earl De Rouen. Com o próprio Marvin Gaye pilotando teclas como o piano e o mellotron os arranjos de orquestra e a condução da mesma ficou por conta de David Van De Pitte junto a Orquestra Sinfônica de Detroit.
Sem dúvida, tudo que Marvin Gaye produziu neste disco é o que mais atinge as pessoas, não por sua carga de comentário social apenas, mas por transformar isso, por fazer a alquimia perfeita desse sentimento que lhe angustiava em música transcendental e sublime. Não se engane pelo exterior repleto de Funk ou pelos arranjos magistrais, o conteúdo das letras é voraz, acredite, por mais calma e sublime que a voz do americano pareça, o assunto é sério e atinge seus ouvidos como um soco na boca, patrocinado pelos cofres da Motown.
O espetáculo das vozes de Marvin Gaye nos aparecendo em complementaridades de arranjos belíssimos ao longo das faixas não foram inicialmente pensadas dessa forma. O trabalho de execução do disco foi feito em partes com Marvin experimentando no estúdio com os Funk Brothers ao longo de noites, e que geraram outros discos, como escrevemos aqui. Alguém, a certa altura teve a ideia de misturar as fitas e mixá-las em pistas diferentes da mesma faixa, e o resultado é essa conversa melódica do próprio Marvin Gaye nos apresentando outras tonalidades do mesmo sentimento.
Na época que este disco foi gravado, Marvin Gaye se encontrava num estado de tristeza e inconformismo deveras acentuado e o motivo era não somente a guerra do Vietnã, responsável por dizimar milhões de soldados americanos. Como também o recente falecimento de sua amiga e parceira de música Tammi Terrell, o que o levou a só fazer um show de lançamento de What ‘s Going On, um ano após o lançamento. Isso fora o caos que estava nas ruas e os gastos exorbitantes do governo, o material para esse disco não era pouco, em termos de desgraças.
O desespero foi tanto que o americano resolveu atirar para todos os lados. Por mais que o tempo seja curto, em menos de 40 minutos, Marvin Gaye despeja todas suas frustrações, angústias e tristezas perante tudo que o incomodava, ninguém escapou, o cantor não se limitou a falar apenas da guerra que assolava seu coração, mas aproveitou também para apontar os erros de todo o sistema em escala mundial, não restou pedra sobre pedra. Ao mesmo tempo, encampava seu antigo desejo de fazer música para além do pop, que já produzia muito bem, mas que para o artista poderia ir além em termos de lírica e em termos dos arranjos e concepção artística!
O disco começa com o maior single desta sequência de músicas que compõem o álbum e um dos maiores da carreira do Soul Man Marvin Gaye , a faixa que nomeia este trabalho, What’s Going On, tema que carrega uma das entradas mais marcantes da indústria fonográfica.
”Mother, Mother/ There’s Too Many Of You Crying”
Sinta o sentimento em cada sílaba. A cada verso temos um retrato do que se passava na época, a cada palavra que sai dos lábios do americano o senhor começa a imaginar… Ouvindo fragmentos como o citado acima é impossível não pensar nas milhares de mães que enterraram seus filhos.
Que inverteram o sentido da vida, que ficaram à mercê de uma bala. Veja ”What’s Happening Brother” e ateste você mesmo todo o conformismo das pessoas, a confusão não só mental mas emocional em que todos estavam inseridos, sem empregos, dinheiro, comida e família, o colapso está presente em cada linha. Mas ao mesmo tempo, esse colapso é encadeado com magistral perfeição nos levando a pensar no tema do disco: O que está acontecendo: Irmão e Irmã?
”Hey Man I Just Don’t Understand/ What’s Goin’ On Across This Land/ Ah, What’s Happenin’ Brother/ Hey, What’s Happenin’, What’s Happenin’ My Friend”
A cada segundo sua mente segue registrando mais e mais pensamentos e sendo movimentado num pêndulo histórico entre o passado e esse presente pandêmico.. Agora, todas as indagações e dúvidas de Marvin são suas também, a partir de agora seu peito fica mais apertado, você quer respostas, sua mente passa a imaginar coisas terríveis, entendendo que o caos que estamos a viver não é novo, mas um projeto efetuado de tempos em tempos…
Seus ouvidos percebem que isso tem um teor atual altíssimo, retratam não só o antigo mas também o novo, e ”Flyin’ High (In The Friendly Sky)”, ”Save The Children”, ”God Is Love”, TUDO, é um grito desesperado de ajuda, é a demonstração mais humilde e complexa de um homem que quer respostas (que como você também quer respostas), que acima de tudo não deseja guerra, não semeia o caos, semeia o amor, mas até para quem tenta amar é difícil, e em alguns momentos até o poeta parece desistir.
”I Just Want To Ask A Question/ Who Really Cares ? To Save A World In Dispair[…]There”ll Come A Time When The World Won’t Be Singin’/ Flowers Won’t Grow, Bells Won’t Be Ringin’ Who Really Cares? Who’s Willing To Try To Save A World That’s Destined To Die”
Chega uma hora que você quer se proteger de tudo isso e momentos como ”Mercy Mercy Me (The Ecology)” ilustram isso, quem quer viver num mundo assim? Sobra até pra Ecologia, afinal de contas onde estará o azul do céu quando tudo ficar cinza?
Não elaboramos provas de ENEM, mas aqui está uma música que conjuga sentimento estético e ética, política, matemática, física, química e nos leva a pensar de modo profundo com o apelo que a arte possui, nos destinos do nosso planeta. Aqui está um conteúdo que poderia ser cobrado dentro de uma perspectiva transdisciplinar, que é a única a dar conta da atualidade deste assunto meu amigo, é desesperador, e olha que estávamos na década de 70 quando isso foi pra praça! Marvin definitivamente estava a frente de seu tempo!
Tente espairecer, sei que Gaye não economiza em momento algum, mas pelo menos tente sentir a cozinha, admire a flauta de ”Right On”, tente imaginar um milagre com ”Wholy Holy” ou tome uma atitude e levante-se, vá em busca de soluções, que não são só pra você, são para todos nós.
Sei que muitos fingem se importar e já atingiram um estado de latência ímpar, mas tente pensar no conjunto, esqueça o conformismo e a alienação, mas antes espere, ainda temos o linguajar lindíssimo de ”Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)” e aqui o négocio é lindo demais. A beleza que fecha o disco que tem suas músicas terminando e iniciando umas nas outras, nos empurra para o que nós pensamos ser o aspecto mais fundamental desse álbum.
Em meio a uma crise pessoal, mundial e da sua própria gravadora, o mestre Marvin Gaye rasgou o peito com uma coragem inaudita até então e expressou tudo que sentia necessidade sem concessões. Não abriu espaço para sua figura de crooner sensual, nem para o Berry Gordy e muito menos para a indústria musical que esperava dele músicas pop. Marvin Gaye forjou do fundo de sua alma um disco genial pelo tanto de verdade que apresentava, pela intensidade e pela forma como apresentou. Não é apenas um disco capaz de mudar vidas, é um disco que é ́a própria mudança!
-Marvin Gaye perguntou: O que está acontecendo? 50 anos de um clássico
Por Guilherme Espir & Danilo Cruz