Lápide Rec. seguindo os fluxos de Salcity. Lean não é Dendê!

Lápide Rec. Seguindo os fluxos de Salcity, produzindo uma lufada de ar fresco e real na cena do hip hop local, em produções de alto nível !!!

Uma cidade é formada por inúmeros fluxos de toda ordem: sociais, politicos, ambientais, estéticos, etc.. A juventude preta de Salcity, essa que está na rua, nos buzus, nos sarais de poesia, na madruga riscando, trancafiada em quartinhos com homestudios, possuem um largo alicerce cultural. Alicerce de ordem ancestral, atual e virtual, que tem sido colocado pra jogo em diversas expressões de ordem estética ao longo da nossa Salvador. 

É, de algum modo, através desse alicerce, fragmentado e dividido entre essa juventude que o caos urbano, a manutenção da pobreza e o genocidio dessa mesma juventude negra, encontra o melhor revide. Se mapear direitinho pode-se perceber diversas ações de jovens atores – apenas – da cena hip hop de Salcity de imenso valor e de talento que só encontra obstculos na falta de oportunidade de produzir e se apresentar de modo digno. Mas isso não os para, e essas mesmas iniciativas tem conseguindo colocar excelentes trampos e se apresentar em espaços construídos coletivamente. 

São mil dimensões que atravessam esses corpos e subjetividades negras emergentes em nossa cidade, dimensões que geram os espaços intensivos, os platôs nos quais vem surgindo uma galera muito talentosa e combativa. Uma espécie de matilha, que retrabalha as sujeiras de suas – nossas – vivências, transformando-as em arte. Baixa tecnologia e muita artesania, falta de espaço que se torna ocupação, de Buzão pra fazer poesia, de espaços de show, ou da rua.

Processo de corte de fluxos os mais marginais, os mais raros, os mais sujos, os mais violentos, elevados ao estado de arte, de registro no corpo dessa máquina mortífera que muitas vezes é Salcity. Resistência, solidariedade, coletivismo, invenções de novos valores, é bonito, é forte, é promissor, é swingado, é real e tem dendê.

O selo Lápide Rec. é uma dessas iniciativas que vem ganhando corpo, aumentando e consequentemente produzindo com mais e mais qualidade. N,o topo dessa matéria, logo ali embaixo do cabeçalho, $ALVA NADA, do menino Venas. Música que deu o start nos trabalhos dessa banca formada por membros de outras bancas e que vem jogo solto, lisos, entregando trap, boombap, sempre produções de vídeo e áudio de qualidade. Na música aqui em questão, a produção ficou por conta de Zoreia Beats, recebeu um forte clipe por conta de Bevora. 

Uma cidade túmulo, que faz de tudo pra enterrar vidas, seja física ou espiritualmente, encontra em Salva Nada uma espécie de aviso: “nois tá na visão, viu?! e tamo na rua buscando nossa melhora”, nessa Salvador que nunca salva. Na contra efetuação desses poderes mortíferos, a banca da Lápide Rec, tem produzido audiovisuais que possuem uma força muito especial. Pois, além da qualidade artística evidente de seus integrantes, os mesmos tocam em temas diversos e que necessitam ser cantados. 

Numa cena onde os contratantes muitas vezes não valorizam as pratas da casa, pois o lucro certo só vem com atrações de fora, num jogo escroto onde o público “topzera” não conhece nada do que de real vem sendo produzindo em sua própria cidade. Um público alimentado e escravizado por redes sociais, em que o sucesso se dá pela seleção cruel dos algoritmos do tio Zuck e ou pela manipulação da grande mídia e seus eleitos. 

Em 40 mil Problemas Momo Bb x Vírus x Chester, atacam um trap viajado contra aqueles convites insanos de apresentações em troca de visibilidade, e sobretudo aos maus tratos que ocorrem quando muitas vezes artistas aceitam essas propostas indecentes. O clipe filmado na quebrada de Vírus, com um bondão pesado que fecha com a banca, foi também um prenúncio dos próximos passos que os caras iriam dar.

Quem trabalha precisa receber, deveria ser uma premissa aceita universalmente, mas não é assim que as coisas funcionam. Num trap bem original, os caras mandam linhas pesadas, com o um refrão que lhe infecta na primeira audição, por conta de Vírus. 

Celo Dut é um dos cabeças caras da banca e chega nessa com Chester, num videoclipe que segue aumentando o nível das produções. Cantando e num flow bastante original, Celo Dut – que tem chamado atenção – encontra linhas mais introspectivas de Chester. Em uma feira de São Joaquim, esses manos nos mostram que a “banquinha” da Lápide tem os melhores produtos, e não adianta pechinchar.

Na medida em que acompanhamos esses passos dados pela Lápide Rec. e seus participantes, vamos percebendo como a singularidade de cada participante, colabora para a qualidade do trabalho. A Bevora, responsável por todos os clipes, se esmera a cada novo vídeo lançado. Os beats seguem sendo pontos altos das produções – aqui do próprio Dut – assim como cada mc vai aos poucos numa inequívoca versatilidade.

Aqui ninguém rouba flow e existe uma exaltação ao modo baiano de fazer rap, trap, grime ou o que for, que deixa claro, que estamos diante de um fato novo. Momo Bb x Vírus x Napa x Shook Mc se dividem com a experiência transmutada das vivências da rua e da busca pelo conhecimento em linhas que nos leva ao arrepio.

Vejam as linhas melódicas de Vírus e em seguida o mano abrindo mão de um flow louco, tudo isso temperado do mais puro dendê. A agressividade e clareza das denúncias e ideias de Napa e o uso consciente e não cansativo do autotune, Shook chega nervoso e abre uma caixa de ferramentas com wordplays, aliterações e tudo isso que os especialistas punheteiros amam. Só que aqui, o dendê é quem dá substância não o lean, entendam a diferença. Momo Bb fecha essa pedrada com aquela qualidade que já ressaltamos.

Obra solo do Vírus, essa é uma das produções mais impactantes lançadas no ano passado pela Lápide Rec, por diversos motivos. Primeiro por mostrar a diversidade de temas que apontávamos acima, segundo pelo beat torto produção do Dut, pela força da poesia do Vírus e sobretudo pelo clipe lindo por conta dos seus personagens.

A letra que versa sobre os diversos sinais que encontramos na rua, na vida, no invisível, encontra a madrugada de Salvador e capta ali em imagens, personagens que encarnam essas singularidades que a música e o vídeo ressaltam. Corpo e palavra, performance, rostos e máscaras, rua, denúcia e poesia, é cortante, introspectivo, reflexivo, visibilizador. Um recorte em neon fundamental é feito aqui através de um poesia musicada, quase ou talvez seja um spoken word. Pouco importa a denominação é arte em mais alto teor.

O amor e a luta pra mantê-lo aos “escombros” de uma vida que teima em nos soterrar, com toda sorte de problemas, é o tema de Clima da Noite. Raffs, membro da banca Lápide Rec. cola nessa faixa com o Perna em mais um excelente beat do Celo Dut. Dono de uma voz impactante, Raffs canta e rima com desenvoltura, sobre a preta num refrão bonito em sua poesia:

“O clima da noite/ o clima da noite lembra você/ A chuva de açoite/ me traz seu cheiro/ Os letrados me lembra seu jeito.”

Perna não faz feio e também desfila rimas poderosas, sobre como os problemas e a solidão da cidade não o faz deixar de conseguir amar. Utilizando uma técnica adequada para caminhar com força em cima do beat que muda de andamento.

O auto reconhecimento de uma espiritualidade preta e o reforço que essa consciência produz num corpo que socialmente é visto como inferior. Os meninos da Lápide vão aos poucos em suas produções enterrando qualquer ideia eurocêntrica que sirva aos propósitos racistas. Captados numa relação intimista de diálogo, com uma fotografia muito bonita, Chester e Raffs são as estrelas dessa produção..

O beat cadenciado e com elementos orientais sampleados é produzido por Lazter, que criou o clima e o ritmo perfeito para as reflexões que Raffs e Chester propõem. O escurecimento das referências é algo muito natural nos diversos trabalhos, aqui analisados, e nos outros trampos produzidos por esses caras. Um reflexo essencial de uma terra que é pioneira na produção de expressões artísticas pretas em diáspora.

Toda a força dessa juventude negra, desemboca por enquanto nessa última faixa lançada ontem 08/01, que abre os trabalhos de 2019 da Lápide Rec, com Napa e Chester. O primeiro mc que não faz mais parte da banca, anuncia no inicio: “soteropolitana tipo Marighella” o que faz muito sentido, num grupo que batalha diariamente nas ruas de Salcity. Esses meninos e meninas estão pelos ônibus derramando poesia diuturnamente, e nos parece que esse exercício os tem levado aos poucos, a um nível de excelência.

Assim como muitos outros, eles entenderam que a guerra às drogas só pode ser vencida por uma guerrilha que passa necessariamente pela invenção de formas novas, a criação de uma máquina de guerra contra o aparelho de estado. Bebendo de nossa própria ancestralidade, atualizando formas de produção inventivas para ser capaz de sair das teias do mercado. Alianças e solidariedade, pois não dá pra boiar nessa babilônia que só se sente satisfeita pelo sangue dos nossos. 

A Lápide vai ainda lançar uma série de produções ao longo desse ano, com essa qualidade que já conseguimos aqui evidenciar e que quem está nas ruas de Salcity já conhece de perto, eles são um novo fluxo dentro do sempre muito rico rap baiano. Se inscrevam no canal dessa banca e vamos fortalecer as bases, como disse no ano passado o Mano Brown. 

Aqui embaixo deixamos uma playlist com outras produções dos caras:

 

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