Lheo Zotto fecha sua trilogia interna à obra que constrói há quase três décadas na cultura hip-hop: Griot de Rua (2022)!
“Buscando remédios sonoros como lenitivo, em meio a doentes de um mundo adoecido, o bumbo e a caixa bate igual dorflex, e o recorte desse sample me deixa relax”
Em seu novo trabalho, Lheo Zotto apresenta 10 faixas que produziu embebendo-as na essência do boombap, com toda a carga política, ética e com o lifestyle que daí decorre. Um estilo de vida baseado na busca pelo conhecimento, pela preservação da tradição negra, com insubmissa potência revolucionária dentro da cultura hip-hop.
Grandes artistas trabalham muitas vezes em duas direções, porém sempre além do seu próprio tempo, daquilo que é mais ordinário no dia a dia do mercado. Em uma delas alguns inventam novas formas, para além do que está dado dentro da tradição. Na outra direção, os criadores atualizam formas clássicas mostrando-nos a pertinência daquilo que repetem, mostrando-nos a diferença que daí pode ainda ser extraída.
No tempo alucinatório em que vivemos, o que nos controla é a forma tornada moda e a redundância de um tempo onde a imediatez on-line não abre espaço para o pensamento e consequentemente nos adoece no fluxo constante de “novidades redundates”. A tradição é negada pela mesma sorte que as novas formas são marginalizadas. Toda essa operação ocorre na iminência de tornar produto, facilmente consumível e que precisa ser imediatamente identificável, para um público que ignora a história da cultura hip-hop.
Nos dois casos é o marketing e a publicidade, os algoritmos das redes sociais e de streaming quem ditam o valor e a visibilidade do que deve ser “consumido”, produzindo a inevitável marginalização e exclusão de outros modos de fazer e artistas! Lheo Zotto vem desde 2012 produzindo de modo solo, sem nunca abaixar a cabeça para as modas e construindo uma história muito bonita.
Muito antes do mercado conseguir vender e MC’s utilizarem termos do candomblé como capital simbólico, Lheo Zotto produziu dois excelentes trabalhos: Ebó da Rima (2012) e Hip-Hop de Terreiro (2019). Junto com outros grupos e artistas ao longo de todo território nacional, o artista mineiro faz parte da contra-história do rap nacional, uma história primeiro construída sob o signo da xenofobia e depois através dos números, de quem acreditou em Jay-Z e na mística matemática de um capitalismo excludente!
“O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas”
Hoje, lidamos na nossa cultura do hip-hop com o desafio – talvez já perdido – de conservar a nossa história como povo africano em diáspora e ao mesmo tempo expandir condições materiais para o maior número de artistas e militantes. “Griot de Rua” é um manifesto que vai no encontro desses desafios atuais, de um artista experimentado, produtor, BBoy, MC com quase 30 anos de caminhada dentro da cultura, fazendo arte. E neste sentido, a forma que seu novo disco incorpora os grandes mestres do RAP, é já uma posição política e ética, com resultados estéticos. Lheo Zotto convidou os DJ’s: DJ Lê (Áudio Conxteto), DJ GoForIT, DJ Eremita Roots, DJ Double Dee, DJ Spin (Reunião de Malokero), DJ Robsom Selecta, como artistas fundamentais na construção musical, como maestros da cultura.
Legítimo griot do lado de cá do Atlântico, Lheo está para além de mais um artistas do mercado, em época de trappers, grimers, drillers, o mineiro segue entendendo o papel do MC como alguém que além de entreter, tem por obrigação educar e preservar a tradição. Sem, no entanto, assumir uma posição reacionária e ou conservadora, este Griot de Rua (2022) mantém-se atual em sua lírica e flow, flutuando no tempo do boombap e utilizando esse espaço mais amplo para desfiar a força de sua mensagem.
Note-se por exemplo, que apesar de plenamente informado e aliando-se ao que de melhor tem sido feito dentro do boombap contemporâneo, Lheo Zotto mantém uma pegada mais clássica. Não traz nesse novo trabalho, por exemplo, nenhum beat drumless ou propõem mesclas com outras sonoridades. Apostando em beats que vão mais na boa e deliciosa linhagem do rap jazz, onde consegue inserir os riscos nervosos dos DJ’s. Sem nunca parecer quadrado, aja vista a cadenciadamente sombria: “Monstro da Lata”, uma homenagem aos pixadores e grafiteiros.
Descobrir um Griot de Rua (2022) como Lheo Zotto é perceber como uma vida dedicada à contracultura hip-hop e aos cinco elementos é uma extensão processual de interseção, onde palavras, movimentos, beats e riscos coloridos se fazem fruto de e nas vivências. Quedas no cotidiano e ascensões artísticas, tempo de estrada e experiências que se transformam em versos que estão para além de meros malabarismos técnicos. Alianças com outros artistas de seu tempo, sejam eles jovens ou “velhos”.
O disco abre-se com a participação do mestre PMC, na faixa homônima do trabalho, e conta ainda com a participação de Alessandro Dornelos aka BZK – parceiro de longa data e com quem Zotto lançou o EP Simbiose (2022) – além do Beto Dogstyle (Reunião de Malokero), Onec (Udischool) e da Paula Karine. O disco também traz os instrumentistas Felipe Nogueira (teclados) e Jéssica Valeriano (baixo), dando os toques orgânicos. A mix e master ficou a cargo do mano Lincoln Rossi e os beats são do próprio Lheo Zotto aka Maladrinhação Beats. A programação visual do trabalho é do mano Jean Alejandro e lettering do Hugo Deighmann.
Todo o trabalho deságua na faixa final: “Imortais”, que está longe de ser um encerramento, antes se configurando como uma afirmação de futuro. Seguindo a direção de se remeter ao passado, atualizando formas perenes de produção no Rap, Lheo Zotto nos lista nomes fundamentais da construção do hip-hop no Brasil. Artistas desconhecidos da grande maioria, emburrecida e ignorante quanto àquilo que dizem amar mas que apenas consomem. É neste sentido que a arte de Lheo Zotto se encarna como uma experiência histórica fundamental e este novo Griot de Rua (2022) se mantém “Livre e de Pé” contra a “Triste Condição” que nos quer “Doentes de um mundo Adoecido”.
Há ao longo de todo o trabalho uma construção musical e poética que transcende com a leveza de um “Falso Jazz” o estado de coisas monstruoso que vivemos enquanto sociedade. Crítica social e política na mesma medida de resgate e afirmação de formas historicamente consagradas como métodos periféricos e pretos de luta. É esse o papel do griot, é essa a arte de Lheo Zotto, o nosso Griot de Rua!
-Griot de Rua (2022), uma construção resistente e atemporal de Lheo Zotto!
Por Danilo Cruz