Angra encontra abrigo na música em Cycles of Pain

Com formação consolidada, novo ciclo do Angra aposta na versatilidade para combater as dores do mundo.

O Ciclo

Angra
Capa de Cycles of Pain (2023)

Falar do Angra é sempre complicado. É como falar de um estilo de vida, de um time de futebol, de um grande amor. E falar sobre esse novo capítulo de sua história envolve muita atenção, paixão e dor.

O Angra não é “apenas” música, não é “apenas” um grupo de instrumentistas. NÓS somos o Angra, e essa energia explosiva e pungente que envolve a banda, mexeu, e mexe, com nossas vidas de muitas maneiras. A Deusa do Fogo me ensinou a falar inglês, assim que descobri a paixão pela música, me mostrou que eu poderia encontrar artistas nacionais pra chamar de meus, bem antes do BRock, já que nunca tive uma relação fácil com ele, e só fui me abrir para o movimento bem mais tarde.

O grupo ainda me deu algumas das minhas primeiras experiências vendo uma apresentação ao vivo, trouxe-me pra perto da música popular brasileira, e me fez chorar no abraço dos amigos e da família em fortes emoções. Entre as últimas, no dia 08 de junho de 2019, nesse mesmo abraço, infelizmente, uma delas não foi positiva, muito pelo contrário mesmo, e colocou todos os fãs, e o metal nacional, aprisionados em verdadeiros ciclos de dor. Vocês sabem bem do que eu estou falando. Rafael, Felipe, Bruno, Marcelo e Fábio, então, mergulharam corajosamente ao nosso lado nesses ciclos, passando por tudo em meio a uma pandemia, e tantas outras grandes perdas, e procuraram um abrigo no que sabem fazer de melhor: música.

Sabe aquela lendária sketch do Matt Damon no SNL sobre o Weezer? Pois é, poderia ser o Angra. O grupo é bem polêmico, e as discussões entre os fãs sobre seus discos sempre acontecem naquele nível. E não se engane, elas já estão acontecendo novamente. É muita paixão, eu disse. E assim como o Blue Album e o Pinkerton para o Weezer, trabalhos como o Holy Land e Temple of Shadows se tornam maldições para qualquer carreira, principalmente, para grupos como os dois em questão, pois fazem parte de uma leva de artistas que optam por não se repetirem, como Napalm Death, Sepultura, Beatles, Viper, Opeth, AFI, Queensryche, e fazem com que sua identidade se revele justamente ali. Essa característica nunca foi muito bem-vinda entre os fãs de power metal. E quem disse que o Angra é uma banda de power metal?

À essa altura, você já entendeu que estou aqui pra falar de Cycles of Pain, novo e tão aguardado terceiro álbum da saga Fábio Lione, décimo esforço da banda, lançado exatamente no dia em que sua estreia com Angels Cry comemora 30 anos, e muito provavelmente, já se sentou em alguma “mesa de bar do metal” para ouvir algum fã dizer que o Angra não é mais power metal. E novamente, quem disse que o Angra é uma banda de power metal? Então, vamos lá.

A Dor

Após a bela e imponente intro “Cyclus Doloris”, com participação de Terfo Mion e Turí, que traz a força espiritual que sempre envolve, de alguma forma, todos os seus trabalhos, o Angra chega como um furacão no seu primeiro single “Ride Into The Storm”, e pega todos de surpresa com a banda soando bem mais agressiva e furiosa do que de costume. Os timbres são bem impactantes e o vocal do Mago Fabio Lione se apresenta bem rasgado.

Com letra do Dennis Ward, que assina a corpulenta e cristalina produção do álbum, e clipe arrepiante, com várias referências à trajetória do grupo, e homenagem ao saudoso Maestro Andre Matos, sim, eu estava me referindo à ele, Cycles se inicia com tudo que o fã mais gosta, muita velocidade, fritação e refrão melódico e grandioso, mas, dessa vez, com uma robustez distante do power metal clássico, trazendo uma lembrança de bandas como o Masterplan, que sempre combinou elementos do hard rock britânico e do heavy metal tradicional, do Ark, que sempre misturou o seu prog com timbres mais carregados e modernos, e até do thrash metal, que sempre esteve presente na abordagem de criação e performance do baixista Felipe Andreoli, que figura entre os principais compositores da música, e como veremos adiante, do disco. 

Angra
Foto promocional do Angra.

Destaque ainda para o estrelado coro formado por ninguém menos que Fernanda Lira (Crypta), May Puertas (Torture Squad), Karina Menasce (Allen Key) – que ainda retorna em outros backings acompanhada do Marcello Pompeu (Korzus), Angel Sberse, Nando Fernandes (Sinistra), BJ (Spektra, Soto) e Caio MacBeserra (Project 46). Arrepiante! 

“Dead Man On Display” continua na aura pesada e dark com que Cycles se apresentou. E se não é tão veloz e fulminante quanto a anterior, caracteriza-se por mostrar um retorno do Fabio ao seu canto mais familiar e combinar climas soturnos com passagens aqui e ali que parecem ser herdadas, pasmem, do death metal sueco, principalmente na bateria, novamente, valorizando uma sonoridade arrojada na escolha de timbres e da produção afiadíssima. A banda, mais uma vez, apesar de cadenciada, soa monstruosa. 

Chega o momento de “Tide of Changes”, que vem dividida em duas partes, também já teve clipe, e traz uma letra que realmente nos toca, confirmando assim que já podemos dizer que o cuidado extra com as palavras será um dos traços do álbum. Antes de falar sobre “Tide”, uma das mais belas canções já lançadas pelo grupo, é importante mencionar que essa formação não tem um background de metal melódico. O Felipe, o Marcelo e o Bruno foram forjados no prog, no jazz/fusion e no AOR/pop.

Assim, esse encontro entre os 3 tem levado o Angra para um lugar ainda mais sofisticado e maduro a partir do OMNI. E mesmo o Fabio, uma verdadeira lenda do Power Metal, sempre com discos figurando entre os mais importantes da história do estilo ao lado do Rhapsody, e dos seus demais projetos, sempre mostrou que sua absurda qualidade vocal reside mesmo é na versatilidade. 

Dito isso, aqui, podemos encontrar inspirações no Toto, principalmente, do Mindfields pra cá, no Seal, fase II/Human Being, Marillion com Steve Hogarth, e até no prog pop do Tears For Fears e Steven Wilson. Influências, que aliás, permeiam o disco, para construir, ao lado da doce voz da inebriante Vanessa Moreno, emulando a “Carolina IV”, uma verdadeira obra prima. Passeando por diferentes climas, diferentes nuances, sem dizer se é “apenas” uma balada, mas sim, uma grande peça, que mesmo com toda a complexidade, carrega o coração de canção. Canção esta, que com certeza, teria todo o potencial para figurar na programação de uma rádio adulta, caso o mercado ainda permitisse esse tipo de aposta, como ainda acontecia nos anos 90 e 2000.

“Tide of Changes” ainda chancela o imenso talento da dupla Andreoli e Valverde, que são, disparados, respectivamente, os melhores baixista e baterista desse estilo hoje em atividade. É impressionante a combinação perfeitamente equilibrada que esses dois fazem entre técnica e bom gosto. 

O Lenine é um dos músicos mais incríveis e competentes que temos no mundo. E sendo de família pernambucana, é mais do que um orgulho pra mim poder dizer isso. Ele também sempre foi conhecido como o artista mais roqueiro da MPB. E além dessa afirmação estar no rasgado da sua voz, e na batida percussiva ‘zeppeliana” do seu violão, suas colaborações com verdadeiras entidades do metal, como Iggor Cavalera e Living Colour, acrescentando aí a agressividade e o peso do seu show (quem já viu, pode comprovar), fazem desse recifense a engrenagem que faltava para transformar “Vida Seca” em um clássico instantâneo do Angra. 

Se alguém quer conhecer a banda, basta buscar sua equação perfeita “Never Understand”, do Angels Cry, que combina a complexidade do prog do Fates Warning e do Queensryche, com o tempero nacional do Xaxado, do Baião, do jazz pop brasileiro de Milton Nascimento e Djavan, aliados ao prog soul/pop de Sting e Peter Gabriel, criando algo novo, original, e que iria se aprofundar ainda mais no Holy Land, gerando a identidade definitiva do grupo. E quer saber? Tudo isso tá aqui em “Vida Seca”, relembrando a verdadeira proposta do Angra, e ainda se reformulando para apontar para novos caminhos, como mostram as passagens djent, que são alvo de suas aventuras desde o trabalho anterior, e os arranjos de cordas ainda mais selados à história contada. Se ainda não tinha feito isso no passado, com petardos como “Black Widow´s Web” e a estupenda “Magic Mirror”, com “Vida”, Andreoli se consagra como um dos grandes compositores não só do rol do Angra, mas do metal nacional. 

Ainda impressiona a emocionante letra sobre desigualdade social e meritocracia, mostrando que o texto do Angra está mais afiado e social do que nunca. Notem a “lágrima” na voz do Lione, e como Marcelo Barbosa e Bittencourt, guardião da brasilidade da banda, estão ainda mais alinhados como uma das duplas de guitarras mais especiais do gênero, com o Totem Sagrado desaguando suas estratégias fusion em resposta ao lado mais hard rock pesado do Rafael. 

Angra
Foto promocional do Angra.

E a proposta mais social e agressiva do chefe Rafael Bittencourt continua em “Gods Of The World”, que se apresenta como terceiro single e traz o retorno mais robusto dos primeiros momentos de Cycles, dessa vez, em um casamento entre o prog e o heavy tradicional. É chegada a hora, então, da tão esperada faixa título. E aqui precisamos parar um pouco para enaltecer 2 caras. 

Já dá pra dizer que esse álbum representa a melhor performance do Fabio Lione no Angra. Se ele chegou “tímido” no Secret Garden, ganhou corpo no OMNI. E com mais espaço para criar suas próprias melodias e para extrair o melhor das criadas pelos colegas, o vocalista tem tido decisões mais que acertadas nas projeções de sua voz ao longo desses últimos anos, mostrando assim, não só uma evolução do que já era reconhecido pelo mundo, mas apresentando novas facetas vocais. Aqui, ele realmente fica como destaque nessa versatilidade, mostrando assim, ser um personagem diferente em cada faixa, sem perder a sua identidade. Nessa reta que se inicia com a faixa em questão, o Mago vem explorar todas essas nuances. 

Marcelo Barbosa também encontra seu espaço. A galeria de guitarristas da história da banda é mesmo deslumbrante. André Bastos, André Zaza, Rafael Bittencourt, Kiko Loureiro, todos supertalentosos. E o Marcelo, um dos melhores guitarristas do estilo no mundo, só faz jus a esse legado, com entendimento perfeito de como construir seus riffs e solos com o distanciamento necessário de sua técnica mais do que apurada para soar inventivo e musical ao mesmo tempo. E isso se confirma no momento em que ele compõe a canção que dá o tom do álbum.

“Cycles Of Pain” já vem épica, promovendo um encontro entre um clima quase New Age ou World Music, com baixo fretless e a voz etérea do Mago, com o prog mais arrojado de bandas como Riverside e Porcupine Tree, e apresenta a trilha perfeita para a letra, criada pelo Rafael, trazendo uma abordagem mais seca, contundente, e menos poética nas suas construções, que, com o apoio da família, de forma emocionante, homenageia o Moreno, filho do Marcelo. Esta define no trabalho a sensação que todos tivemos nos últimos anos, com a pandemia, com as questões sociais do planeta, nossas batalhas diárias, e revela que o Angra, na verdade, não nos entrega um álbum sobre dor, e sim, sobre cura. 

Os ares da New Age agora se juntam à brasilidade inerente ao grupo com uma dose de peso e técnica impressionantes! A matadora “Faithless Sanctuary” traz quase que um amálgama entre o Holy Land e o Temple of Shadows, com destaque para os riffs cortantes de guitarra e a bateria alucinante do Bruno, que ataca pulando de proposta pra proposta com uma velocidade assustadora, trazendo todos os climas e camadas que a complexa música pede. Esta mostra a banda bem ousada e já anuncia o que pode acontecer nos próximos lançamentos. Vamos aguardar. 

Angra
Foto promocional do Angra.

Novamente, Barbosa vem brilhar na composição, que tinha sido descartada do OMNI, e o Angra coloca todas as suas influências de Peter Gabriel, Sting, e até traços de George Michael, em sua fase Listen Without Prejudice Vol 1 pra fora, acompanhado da volta dos arrepiantes vocais da premiadíssima Vanessa Moreno, para oferecer mais uma letra que confirma o Cycles of Pain como um ponto de luz na belíssima e esperançosa “Here in The Now”. E se o fã de metal melódico quer bangear e mandar os punhos serrados ao ar, o disco ainda traz um momento full power metal em “Generation Warrior”, e o Lione só confirma porque é autoridade no assunto. Alucinante.

O tracklist propriamente dito se encerra de forma magistral, com uma das peças mais esplêndidas já produzidas pela banda, que traz todos os integrantes nos seus primes, entregando um símbolo de que o Angra não para de criar, e de encontrar novos caminhos para sua música. Composição do Rafael, um dos grandes arquitetos do metal mundial, e que se mantém nos surpreendendo, conduzida pelo piano da Juliana D´Agostini, “Tears of Blood” traz o quinteto teatral, gótico, vampiresco, quase como um Savatage ou Trans-Siberian Orchestra. Destaque para as interpretações arrebatadoras e assombrosas dos vocais operísticos da lendária Amanda Sommerville e do Fabio, formando uma dupla imbatível para um verdadeiro musical da Broadway. E isso ficou registrado no vindouro DVD acústico do grupo.  

Em algumas edições, ainda temos de bônus a “Here in The Now”, agora cantada de forma radiante pela Vanessa Moreno, na versão que também está no acústico. O outro presente pros fãs é a, já cultuada, leitura “speed” para “Tears Of Blood”, com o retorno da Fernanda Lira brilhando em vocais limpos, e a parede supersônica da icônica guitarra do mestre dos mestres, o eterno Angra, Sr. Kiko Loureiro. 

A Cura

Cycles of Pain é um lugar de cura, e um álbum forte e melodioso, focado na perfeita intersecção entre complexidade e sensibilidade pop, na missão de construir verdadeiras canções, que se não são exatamente redondas e acessíveis, conseguem apresentar um ciclo sem pontas soltas. O fato é mérito da constante evolução dos integrantes como compositores e da sólida presença do Dennis Ward como elemento norteador, que pensa tanto técnica como construção do corpo do álbum. Essa troca entre esses dois mundos se mostra sublime mais uma vez. 

Angra
Angra 2023

Tem uma nova revolução musical acontecendo, e não é de hoje, todos buscando conversar com as correntes realidades, e criando novas. O Angra tá incluso nisso e continua inquieto e chocante, como se mostrou em muitos projetos, desde que assumiu todos os riscos presentes, há 30 anos, em Angels Cry, e não pretende ficar preso às velhas amarras do metal rápido e melódico. Se você estiver preparado para embarcar nessa jornada junto com eles, encontrará um universo de possibilidades e emoções nos novos ciclos da banda.

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