Entrevista – Sankofa: as teclas pretas de Amaro Freitas

Sankofa é o terceiro trabalho de estúdio de Amaro Freitas. Trata-se de um novo capítulo na discografia do prolífico trio.

A música nasce no estúdio e ganha vida própria ao vivo. É um exercício de criação que começa na composição e acaba na performance. No geral, a ideia do show é reproduzir uma gravação de maneira fiel, mas na verdade, a experiência é muito mais profunda.

Desde que o Amaro Freitas lançou “Sankofa”, seu terceiro disco de estúdio – segundo pelo selo inglês Far Out Recordings – aguardei ansioso pela oportunidade de ver o novo ecossistema musical de Amaro Freitas, Jean Elton e Hugo Medeiros ao vivo.

Com a pandemia, não só o Amaro, mas todos os instrumentistas do Brasil e do mundo precisaram interromper as turnês, por isso, não só eu, mas muitos fãs tiveram que esperar um bocado para ver e ouvir o que um dos maiores expoentes da música preta brasileira tem a dizer.

amaro freitas CCSP
Foto: Gil Oliveira

Demorou, mas a chance apareceu no dia 10 de novembro de 2021, no Centro Cultural São Paulo e o efeito das notas segue reverberando de maneira duradoura nos meus ouvidos.

Seu projeto mais audacioso até o momento, “Sankofa” goza de uma notoriedade conquistada depois de muito esforço. Hoje, Amaro é um dos maiores expoentes da música brasileira e depois de rodar o mundo tocando em países como Japão, Bulgária, Alemanha, França e Portugual, seu percussivo piano coleciona menções honrosas nas maiores publicações de Jazz do planeta, como a Downbeat, por exemplo.

Ao vivo, no CCSP, Amaro mostrou mais um novo capítulo do telepático entrosamento do trio, apostando na unidade maciça do grupo e num repertório arrebatador.

Num espetáculo que durou quase 2 horas, Amaro mostrou o vigor de seu piano e a intensidade de suas ideias. Com um domínio formidável de seu instrumento, o pianista faz de fato o que quer e consegue palmas fervorosas da plateia, seja num solo visceral ou com retumbantes notas longas.

Jean Elton e Hugo Medeiros são peças chave nessa equação groovada. Hugo mostra-se um música inteligentíssimo e a forma como ele complementa o trabalho rítmico do Amaro é quase poética. Com grande domínio das células rítmicas, o baterista está sempre atento e pronto para propor conduções arrojadas, num ambiente bastante volátil, que é a cozinha do trio.

Foto: Gil oliveira

Jean Elton toca com uma calma e uma elegância quase budista. Tocando linhas pianisticas em alguns momentos, além de mostrar grande poderio técnico para conduzir uma cozinha bastante dinâmica, é notável como ele e Hugo trocam de posições e seus instrumentos, por vezes, vão além de apenas conduzir ou acompanhar.

Em alguns momentoso baixo está dentro do piano. A bateria lidera e o piano faz a base. Tudo muda o tempo todo e o faz de maneira que não só surpreende o ouvinte, como também o deixa sem palavras.

Como se não bastasse o espetáculo, o Oganpazan ainda teve a honra de entrevistar o pianista. Num bate papo que superou 3 horas de duração, falamos sobre o disco novo, parcerias, o mercado brasileiro, a realidade da cena europeia e a força de Sankofa, as teclas pretas de Amaro Freitas. 

Amaro, “Sankofa” fecha sua primeira trilogia de lançamentos autorais. Tocando sempre ao lado de Hugo e Jean Elton (em “Sangue Negro” e “Rasif”), você é bastante enaltecido pela riqueza rítmica de sua abordagem, mas gostaria de elevar o nível dessa discussão. 

Ao tocar samba Jazz no debutante de 2016 e valorizar a paleta regional do seu Recife (em 2018), com Sankofa (2021) você valoriza passagens mais lentas, com o característico vigor rítmico, mas de uma forma mais leve e com fundamentos de pesquisa histórica. Nessa trajetória a gente percebe como você utiliza o espaço de maneiras diferentes e eu queria sua opinião sobre isso, pensando na espacialidade do som do trio e nas diferentes sonoridades que vocês cunharam juntos.

O nosso trabalho nesse terceiro disco está muito mais encaixado em termos da nossa percepção sobre o outro, pensando no trio. Isso envolve o trabalho da unidade, que é quando você consegue, junto de outras pessoas, soar como uma única coisa.

Apesar de ter uma bateria, um baixo e um piano, acho que esse sempre foi o grande poder do trio, possuir essa conexão de unidade, que está muito relacionado a você ser aberto a escutar o outro. Isso é interessante, por que quando a gente fala sobre música parece uma coisa fácil, mas na prática é difícil, pois exige que você domine o seu som.

E isso claro, vale principalmente quando você está falando sobre Jazz e improvisação, ou então um tipo de abordagem mais elaborada sobre o instrumento. Além de você se perceber, é importante perceber o outro, justamente para criar a própria equalização sonora.

Sim, você precisa ter uma noção de como você soa sozinho.

Sim, mas não só no seu som solo, é importante ter em mente também como é o som captado pelo microfone pra essa entrega final para o público, ou até mesmo pensando num ambiente controlado, como é o caso do estúdio.

Eu acho que esse disco também surge com mais preparo nesse sentido. Eu diria que apesar do fato da criatividade ser um dos pilares mais importantes no nosso trabalho, ela só acontece quando a gente tem tempo, e quando ela é colaborativa, o processo é mais acelerado.

Nós vivemos experiências com o “Sangue Negro”, que representaram um momento. “Rasif” foi a mesma coisa. O “Sangue Negro” tem uma característica mais classuda, nós tocamos Bebop, Samba Jazz… Tem algumas músicas ali que já não não rotuláveis, vamos dizer assim. Não dá pra falar exatamente o que é, mas ali já existiam alguns componentes que são característicos do trio, como o lirismo, a rítmica e uma forma de compor que trás a música brasileira, mas pra um outro lugar.

Talvez essa seja a nossa originalidade. Em “Sankofa” nós estivemos juntos em vários lugares do mundo. Isso nos trouxe várias percepções… Só no Ronnie Scott’s, em Londres, o nosso set foi no mesmo dia que o show do Airto Moreira e a Flora Purim, o pianista italiano Stefano Bollani e o também pianista, o cubano Chucho Valdés

Tocam pouco piano esses caras.

Você estar ali, vendo essas pessoas em ação, depois observando eles assistindo o seu show… A experiência de estar no lugar de ninguém, sabe? É o lugar do mundo. Ninguém é inglês, mas estão todos girando ali.

Você tocou num ponto sobre a questão da unidade que eu acho que é decisiva para esses ecossistema que vocês criam.

Claro, isso tem influência dessas novas percepções adquiridas, mas também leva em conta o que está sendo produzido no mundo todo.

E você participou de iniciativas muito interessantes nessas andanças pelo mundo, como a Montreux Jazz Academy. Como foi essa imersão?

O fato de ter participado do Montreux Jazz Academy – com o trompetista Christian Scott – e vários outros artistas do mundo, definitivamente foi um momento que mudou a minha forma de pensar.

Você conheceu o Quincy Jones também, deve ter sido insano. Não sei nem o que eu faria.

Foi incrível.

Você fez parte da banda do festival?

É uma academia que reúne alguns dos principais nomes do Jazz de cada país. Eles selecionaram uma baixista italiana, Frida Split, uma cantora de Los Angeles, Natasha Agrama, o Nicolas Stocker, baterista suíço mesmo, o também brasileiro Diego Figueiredo no violão e eu no piano, tudo isso com direção musical de Christian Scott.

Quando eu cheguei na suíça, nós tínhamos terminada uma tour na europa. Quando eu chego no campus, a galera já está em laboratório há 4 dias. Fui direto, virado de uma noite. Quando cheguei, descobri que a banda está tocando das 10h da manhã até as 16h da tarde, durante todos esses dias. Cheguei faltando 10 minutos pra acabar o laboratório do dia e o produtor veio perguntar se eu queria descansar.

Eu disse na hora que queria tocar, assim que cheguei, a produtora disse pra sentar ao piano. Esse foi um momento de orgulho pra mim, por que eu tento ter uma rotina de estudos, tocando 4 dias por semana, durante 8 horas pra manter a minha alta performance. Eu toque “Batucada” para o Christian e ele ficou de cara.

Toda a equipe gostou também e durante os ensaios, Christian selecionou alguns dos músicos da banda para ter um momento solo e eu fui uma dessas pessoas. Eu, Diego Figueiredo e Natasha. Eu pensei em tocar “Batucada”.

Christian olhou pra mim e disse: Amaro, essa música expressa muito a sua rítmica e o quanto você consegue dominar o som do piano pra ele se tornar percussivo, e essa composição tem uma pulsação constante, um mantra, que é muito bonito, mas eu acho que você não é só isso.

Observando você tocar, eu vejo que você domina a harmonia. Possui também notas longas maravilhosas e você sabe tocar a camada do pianíssimo muito bem, mas você vai ter só uma oportunidade aqui no Montreux Jazz. Será que não teria uma outra música que mostre esse Amaro Freitas mais completo?

Ele fez uma excelente análise do seu som em muito pouco tempo.

Isso em 3 dias, irmão! Em 3 dias o cara olhou pra mim e disse: velho, você não está apresentando tudo que você é, vem cá, acorda!

Tocar no mesmo lugar com o Airto, Chucho Valdés, essa percepção das coisas acho que ajuda você a estar nesse lugar de cidadão do mundo e o resultado é essa música que vocês fazem em trio de maneira autêntica.

Claro e aí você analisa o cenário: o Airto Moreira foi com uma banda americana, o Bollani foi com uma banda brasileira, o Chucho foi com um grupo cubano. E não pense que acabou! Vi também Chick Corea tocando com o filho de Paco De Lucia

Isso chegou em “Sankofa” de maneira plena. O meu som precisa ser sem barreiras. É aquilo que o Wayne Shorter falou sobre o Milton Nascimento: enquanto o Donald Trump estava preocupado em construir barreiras, lá em 1960, Milton já falava em construir pontes.

Eu acho que no Brasil, pensando na música instrumental, existe uma valorização à virtuose. Talvez seja a coisa que mais chama atenção do músico brasileiro, mas eu percebi que o meu som não é só virtuose ou apenas rítmica.

Exatamente.

Nesse disco, nós conseguimos quebrar barreiras com uma música mais completa, dialogando com a diáspora do mundo.

Sim, dá pra traçar um paralelo com diversos trabalhos recentes, contemporâneos dos seus discos de estúdio, como o “Your Queen Is a Reptile”, do Sons Of Kemet, grupo do saxofonista Shabaka Hutchings.

Sim, existe essa conexão e você para pra pensar, tem o Christian, o Kamasi Washington, Robert Glasper nos Estados Unidos, a Nubya Garcia, o Shabaka e Makaya McCraven em Londres… Ou até mesmo quando você pensa na galera que está trazendo as tradições da sua música que foram naturalizadas americanas.

A galera que grava na ECM é um grande exemplo também, o Shai Maestro e a galera de Israel.

Sim, quando você pensa no Shai Maestro, Avishai Cohen, Vijay Ayer, Craig Taborn… Todos esses caras… O trabalho do Vijay, o que é aquilo? É microtonalismo da música indiana!

Ele está indo pra outro lugar e fazendo isso com instrumentação de Jazz.

Sim, mas ao mesmo tempo ele está tocando Michael Jackson, meu chapa e existe essa liberdade.

Essa análise do Christian sobre o seu som foi muito boa e ele toca num ponto que você utilizou bastante como recurso em “Sankofa”, que são as notas longas e acho que esse trabalho acaba dialogando também com a questão da virtuose, por que aconteceu com o “Rasif”, senti que a crítica pesou muito a questão rítmica da proposta para o lado da virtuose.

Agora vocês fazem um som maio cheio, sem tocar muitas notas em alguns momentos, promovendo um descolamento muito interessante.

Isso tem muito relação com o fato de que nós rodamos o mundo, aliado à percepção individual. Não adianta você rodar o mundo e não estar atento. Tive a oportunidade de tocar em pianos que nós não temos aqui no Brasil, um deles foi o Fazioli.

Esse piano é italiano. Só fazem sob encomenda, não está numa loja, disponível pra você comprar. Custa uns 2 milhões de reais mais ou menos.

E ficava num clube?

Sim, ficava no centro cultural de Budapeste, na Hungria. Nós chegamos lá e o cara pirou no nosso som, justamente por que era um Jazz brasileiro que não trabalhava apenas o Samba Jazz e eu queria abrir uma discussão sobre isso, pois isso é muito interessante: pensar como o mercado internacional vê a nossa música.

Mas voltando, quando eu chego no Centro Cultural, tem um piano no quarto, pra eu poder estudar quando quiser. Vou tomar um copo de água e aí toco alguns acordes e tal…

No quarto do baixista tem um baixo acústico, enfim, era uma estrutura fantástica. Nesse mesmo centro, existe uma sala de concertos lindíssima, um restaurante, também era um hotel e o club. Quando cheguei pra passar o som eu abro a tampa do piano e veja lá: Fazioli.

Meu amigo, o que foi aquilo! A mecânica do piano, as cordas, todo o sistema de martelos, o funcionamento é mágico. 

Arte: Acidum Project

Quando você chegou, deu pra ver alguém afinando ou já estava pronto?

Já estava pronto. Eles são muito organizados. Você programa e eles marcam pra você tocar o tempo necessário. O afinador precisa de tempo pra trabalhar, é um ofício que requer concentração, você não fica junto do afinador. Outra coisa importante é que lá o som é mais baixo, na equalização, nada pode ficar muito alto.

Tem muito esse feeling da música erudita, acho que esse lugar de escuta faz a plateia prestar mais atenção no seu som.

Com certeza, tenho uma vivência sobre isso com o Jean, tocando num club que vai retratar um pouco essa coisa da escuta. Precisamos falar do Brasil no mundo e dessa vivência, mas lá na Bulgária meu chapa, percebi que precisava utilizar apenas 50% da força que eu fazia pra tirar o som pianíssimo do piano.

O piano me permitia isso e aí eu lembrei da época que ficava imaginando como o Bill Evans, Keith Jarrett, Oscar Peterson e etc conseguiam tirar um som tão aveludado no piano… Tem a mão do cara, mas esse circuito, há décadas, sempre teve pianos bons.

É diferente do Brasil. Aqui eu sempre toco com um C7 que é um piano bom da Yamaha, mas lá nem C7 existe. É Steinway, XSD Yamaha que é o piano mais incrível da Yamaha, Fazioli, e aí você percebe que existe um padrão, parece Champions League.

O gramado está cortadinho, as coisas são diferentes. Aqui no estúdio Carranca, tenho um piano que está em ótimo estado, mas é um C2 e aí mudou tudo, pois eu percebo que 50% da minha força pra fazer o pianíssimo igual eu fiz no Fazioli não funcionava.

Deve ser difícil fazer o caminho reverso.

Sim, se manter 50% da força, o som sai estridente. Precisei estudar 3 meses pra tocar 10% do que eu toco e isso é muito difícil, por que tocando 10%, o piano que é estridente não atinge esse nível.

É o que você falou sobre o tempo de estudo, pra atingir sua performance ideal.

Sim, aí eu tive que passar 3 meses estudando pra poder tirar o mesmo som que eu tirei no Fazzioli, tocando com facilidade, entende? E aí a gente aproxima os microfones, nessa aproximada o som vai pegar muito mais o martelo do pedal que sobe… Tudo isso soma com os harmônicos das notas pra ela ficar grandona. Quando ela entra lá no pré, o cara pode aumentar a taxa de ganho, por que não vai ter estridência, ele sabe que a margem de volume que eu vou trabalhar é essa, e depois era necessário levar essa mesma compreensão para o baixo e a bateria.  

O que eu quero dizer com isso é que ao mesmo tempo que é muito difícil e desafiador estar nesse lugar de complexidade na música, como em “Batucada” “Malakoff”, também é extremamente complicado habitar esse lugar das notas longas e conseguir dar liga, sem perder a elegância da unidade. 

Isso pra mim foi uma experiência muito interessante e são coisas que você só questiona, depois que você vive. Você vê pelo YouTube alguém tocando um fazioli, mas não existe nada mais real do que você estar lá tocando de fato. 

Amaro, voltando na questão do Samba Jazz que a gente comentou no começo, esse seus giros pela europa e japão mostram uma independência artística muito grande, você passa longe de tocar Samba Jazz quando vai pra esses lugares, apesar da nossa música ainda estar muito associada a isso.

Eu acho que isso acontece por que o trabalho é bem feito e isso acontece por 3 motivos.

Primeiro, nós precisamos de tempo pra fazer isso. Não tem como atingir esse resultado em 6 meses, ainda mais com a rotina que nós vivemos. Segundo, as pessoas que colaboram comigo não são todas do mesmo lugar e acho que esse ponto é essencial, caso contrário existe um certo bairrismo.

Quando você vê bandas instrumentais de Pernambuco, todo mundo está tocando Frevo. São várias bandas ótimas e eu tenho muito orgulho do Frevo.

O “Rasif” deixa isso bem claro.

Exato, mas eu não quero pegar um modelo e sair replicando por que foi algo que deu certo, como quem diz: “Amaro é pernambucano e toca Frevo”.

Não, eu estou vivendo novas experiências e eu quero trazer esses momentos para a música. Meu manager é do Rio de Janeiro e ele tem uma outra visão sobre música brasileira.

O Laércio é muito antenado.

Demais, está sempre em feiras pra pesquisar o mercado.

E Outro ponto decisivo nessa história é a Far Out Recordings. Lá eles habitam esse lugar da elegância nas músicas. Trabalham com o Azymuth, Marcos Valle, mas acho que eles nunca tinham trabalhado como um artista como eu. O som deles não é exatamente Bossa Nova, mas eles trazem muito disso, com essa roupagem moderna.

Tem um trabalho de resgate da música brasileira ali muito bonito e bem curado. 

Pois é, nem aqui existe esse carinho e apreço. Ao mesmo tempo, eles também possuem uma visão de mundo que também não tem aqui. A Far Out foi importante, pois estava alinhada com as ideias. Minha produção teve um papel sempre muito relevante em termos de direcionamento, também.

Mas por exemplo, eu pensei em trazer participações no disco e a Far Out confiou tanto na nossa proposta que a nossa devolutiva foi: “o som do trio já é o suficiente”.

A distribuição da Far Out Recordings faz a nossa música andar por novos territórios e encontrar novos públicos, se conectando com a cena mais jovem do Jazz.

O ouvinte da Far Out tem um comportamento de pesquisa muito interessante.

Sim e Rasif bateu 1 milhão de plays no Spotify. É um trabalho em equipe que não envolve nenhum gancho com o governo. Nós temos essa relação muito forte com o governo aqui no Brasil e essa discussão vai para muitos lugares, justamente por que não existe um sistema estabilizado, como o Sesc, por exemplo.

Nós não temos um circuito como os europeus possuem. O Ronnie Scott’s funciona por si mesmo. A galera se sustenta do turismo. Nesses shows que fiz na europa, tinha gente do mundo todo e isso facilita pra você não ser dependente de nenhuma iniciativa.

Fui tocar na França, no Les Duc de Lombard, em Paris. Ninguém conhecia nosso trio, era o primeiro show e estava lá: Amaro Freitas, pronto. É isso! Tinha espanhol, italiano, brasileiro, alemão, japonês, enfim.

Aí você tem autonomia pra tocar.

Sim e nós fizemos 2 sets. O lugar estava entupido, irmão.

Com certeza alguém deve ter voltado para o Japão falando de um certo Amaro Freitas.

Em Munique, tocamos no Unterfahrt e também estava lotado. Quando o show terminou, as pessoas falavam que nunca tinham ouvido nada parecido. Aí entra outra questão que é a confiança, é uma casa que existe há mais de 70 anos.

A tradição acontece ali e deu certo faz tempo. Aqui no Brasil deu certo de outra forma. Tem uma fala do Emicida que eu acho muito massa, mano. Ele fala: “as pessoas me recriminam por que eu falo “nóis”, mas é impossível olhar a minha trajetória e negar todas as pessoas que colaboram para o meu trabalho”.

Você precisa respeitar o lugar das pessoas. O lugar do assessor, do produtor, cada um exerce sua função dentro da cadeia produtiva. O que eu quero dizer com isso, claro é trazer a minha visão sobre o mercado brasileiro.

Sim, até por que a sua experiência é incontestável.

O mercado brasileiro é muito peculiar, não existe uma regularidade. As cenas são muito insipientes, o músico precisa trabalhar com equipe.

Exato, eu tento levar isso para as pessoas, pois ainda percebo erros bobos. A postura do Christian, do Chick Corea… Pra falar com ele precisa chegar no empresário, ninguém fica ali sem fazer nada, é um mercado.

Existe uma maturidade diferente.

Sim, não existe conversinha, ele vai lá, toca e vai embora. Eu gosto muito desse modelo e as pessoas vão ver o que a gente quer mostrar, só que se você não pensa nisso, a possibilidade da gente ser gratuito e não ser valorizado pelo nosso trabalho é muito grande. Primeiro isso precisa ser sério pra mim, para que as outras pessoas também vejam que isso é sério.

Amaro, outro traço marcante no seu som, é que conforme os discos foram saindo, você foi conseguindo um domínio artístico muito interessante. Cada disco que você lançou é bastante contrastante e mostra o rumo que a sua pesquisa tomou. Gostaria que você falasse da importância do reconhecimento do trabalho de vocês pra poder justamente viabilizar discos mais audaciosos, como é o caso dessa gravação.

Não existe não ter risco, não é verdade? Você acredita numa ideia e propõe. Nós estamos falando também sobre compreensão. É você me dizer algo que só você enxerga, e eu sinto que a cada trabalho as pessoas me compreendem melhor. Existe uma grande seriedade no que fazemos.

Jean me disse uma vez – num show há um tempo atrás – que todo pianista que tocava com ele fazia walking. Eu escutei ele e pensei em como propor algo diferente. Comecei a ouvir muita coisa de piano e baixo. Ouvindo isso, consegui entender como faziam o acompanhamento.

Sem fazer o walking.

Sim, pelo amor de deus! E ele trouxe um negócio muito legal quando essa ideia amadureceu, que foi colocar o som do baixo dentro do meu piano. Eu fiquei pensando: como que a gente faz isso, Jean?

Foram 2 anos estudando até conseguir viver essa experiência. Nós estávamos num show e ele disse: Amaro, pelo amor de deus negão, tá rolando, o baixo tá no meio do piano!”. Eu pensei: e agora? E ele disse: não para não meu irmão, continua!

E isso diz muito sobre intimidade. Quando você toca muito com alguém, você percebe alguns caminhos e você procura tocar em regiões diferentes pra não ter choque. Nesse caso, o mais interessante é tocar próximo, você sobe e desce com ele, como se fosse um organismo vivo pulsando junto. 

Claro que obviamente, você precisa equilibrar a potência do som. Se você consegue descer a dinâmica e caminhar junto, parece realmente uma coisa só. Isso diz muito sobre a unidade e o trabalho com Milton Nascimento e Criolo. Exercitei muito isso com eles pra acompanhar as vozes nas regiões certas e trazer um equilíbrio para o arranjo como um todo.

Saber escutar é muito importante. Não só pra tocar.

Exato! Em “Sangue Negro”, percebi que não tinha experiência pra produzir um disco sozinho. Chamei o Rafael Vernet, ele olhou para o meu piano e disse: “essas notas precisam ser com pedal mesmo? Toca sem pedal pra ver como fica.”

E eu vi o dedo dele funcionando na máquina, ai eu fui lá e reproduzi. A minha mão esquerda estava muito alta e ele falou muito à respeito de equalizar as mãos para o som não ficar estranho no arranjo. Dessa você não consegue fazer a cama do jeito ideal. 

Ouvir esse cara de fora é essencial.

Exato, você escuta e vai estudar. Foi importante demais contar com ele nesse trabalho. Na hora de um improviso, lembro que queria fazer 3 giros e ele disse que me faltava fôlego. Eu insisti e ele foi firme: “Amaro, não, faça só 1 giro, irmão.”

Toda essa sabedoria de entender que é preciso montar uma estrutura foi minha. Passei 4 anos trabalhando, juntei uma grana e fui gravar no melhor estúdio de Recife. Nós lançamos um produto “Sangue Negro”, fizemos um vídeo muito bonito e aí eu empreendi no meu trabalho, entendendo que eu quero apresentar isso da melhor forma e que pra isso, preciso estar ao lados dos melhores profissionais.

E esse trabalho gerou uma reverberação, o Lenine assistiu e isso chegou até Laércio. Ele já trabalhava com João Bosco, Azymuth, enfim, e ele viu potencial pra trabalhar nisso comigo.

Ele viu o que você viu.

Eu acho que dei muita sorte na vida de conhecer as pessoas certas. Hugo e Jean são fanáticos por música. Se eu toco mal, eles ficam emburrados, eles querem que eu seja sempre excelente, sabe? Quando começo a repetir os improvisos – por que tocando todo dia às vezes podem surgir coisas parecidas – Jean não sorri nos shows.

Com isso, ele é o termômetro da banda, se ele sorri, eu fico aliviado por que ele tem compromisso. Jean toca por que é feliz assim e o Hugo é a mesma coisa. Essa cobrança deles eleva o nosso nível como trio. Com o apoio do Laércio isso só cresceu e chegou em “Rasif”, que foi o primeiro lançamento pela Far Out Recordings

Originalmente, eles queriam um disco mais groovado e eu arrisquei. Entreguei o disco pronto, gravado, eles ficaram impressionados e aceitaram.

Quando falei com você em 2019 comentei sobre isso. No “Rasif” vocês tocam muito próximos, nuns tempos bem intrincados, essa dinâmica passa muito essa questão do groove, apesar de não ser esse o objetivo principal. A Far Out trouxe muita coisa, mas você levou um produto musical excelente.

Eu banquei a ideia e eles perceberam que teve uma boa repercussão no mundo todo.

Saiu até na Downbeat.

Então, e isso fez o selo perceber que a gente não está pra brincadeira e foi isso, continuei ouvindo o Hugo, Jean e Laércio pra ter um entendimento mais amplo sobre as nossas possibilidades, sobre a nossa vida. Foi nesse cenário plural sobre música e vida que começa a nascer “Sankofa”.

A primeira música que fiz foi “Baquaqua”. Fiz a primeira parte e foi bem difícil de tocar no primeiro momento. É um 9 contra 8 e a segunda parte não saia. Só consegui fazer a segunda parte depois de 3 meses.

Não tem como o processo ser rápido, por que você relaciona música com histórias e isso é muito sensível e pessoal. Em “Batucada”, Jean faz frases pianisticas, que não são convencionais para o baixo, eu proponho e ele aceita… E para a música, isso é fantástico! Diz muito sobre a nossa sonoridade.

Sinto que o trabalho do Hugo e do Jean passa batido às vezes. O Hugo complementa muito a questão rítmica, o Jean é musicalmente muito inteligente nessas interações, pensando não só na condução, mas no piano também.

Hugo é impressionante. “Batucada”, por exemplo, é um Samba. É pensada na célula rítmica do pandeiro, num samba de partido alto. Ele criou uma bateria que flerta com o samba, mas uma hora ela flerta só com a célula que estava ali.

Quando eu cheguei para o Jean e falei pra ele fazer uma polirritmia, ele disse no ensaio que ia estudar.

No instrumental SESC Brasil, no SESC Consolação, tem uma hora que ele toca na raça. Hoje em dia ele faz isso rindo, falando com você e tocando em 7 conta 2, 5 contra 2, 3 contra 2… Em “Rasif” isso não existia e foi outra provocação que chegou em “Sankofa”. Eles são fundamentais para o resultado final do som.

E como que foi o processo de gravação?

Nós queríamos gravar antes da pandemia. Entramos numa tour do “Rasif” e na correria entre tocar e ensaiar, começou a quarentena. A ideia era lançar o disco ano passado.

Até pra manter seu intervalo de 2 anos entre um lançamento e outro.

Exato, isso meio que virou um ritual nosso, lançar os discos todos em outubro. “Sangue Negro” e “Rasif” saíram em outubro e aí o disco já sai com uma tour no inverno europeu, nós voltamos para o Brasil no verão daqui, pra depois pegar o verão na europa.

Mas com a pandemia, foi necessário esperar e “Nascimento”, que é uma das faixas do Sankofa – uma homenagem ao Milton – foi criada durante esse período. “Cazumbá” foi modificada completamente. Ayeye também e foi muito bom ter esse tempo a mais pra poder lapidar isso tudo.

Quando fechei a ideia, mostrei pra todo mundo e o pessoa até riu por que mudou tudo. Nós gravamos em agosto e setembro do ano passado. Nesse tempo a galera da Acidum Project – lá de Fortaleza – mostrou o trabalho de capa que demorou 9 meses pra ser concretizado.

Que é um trabalho belíssimo, inclusive. A pintura tem uma paleta de cores muito bonita e tem a questão do pássaro na capa.

É um reflexo de quem busca conectar tudo com a natureza, a ancestralidade é a nossa raiz, por isso que eu estou tocando na água, me conectando com aquilo e ao mesmo tempo sendo o reflexo.

Essa ideia surgiu depois que eu fui pra Manaus. Depois de 3 meses, surgiu o resultado final, que é fantástico. Eles trocaram o piano que eu estava tocando antes pelo reflexo da água.

No vinil isso vai ficar lindo

E está mesmo! No CD também ficou muito bonito o design. Quem fez esse trabalho de Design foi o Bloco Gráfico, ai de São Paulo. Eles fizeram também o projeto para o “Sangue Negro”.

Esses discos estão conseguindo um alcance muito massa.

Sim, Vila Bela teve 30 mil plays em 3 dias. Aí a gente entra naquela conversa: o que é Pop pra você?

Um amigo meu disse que Pop é tudo aquilo que o povo gosta, sem influência do jabá, mas na verdade tem muita gente ouvindo uma porção de coisas e muito Jazz inclusive. As pessoas não só uma coisa, existe uma música pra cada momento, mas nós temos essa ideia de que instrumental é música de nicho. O que é mais forte que a cena de São Paulo pra provar isso?

Total, a galera faz disco e vai de gig em gig.

Sim e fazem isso sem conseguir sair de São Paulo, são poucos que conseguem e isso tem relação com a mentalidade, por que essa é a forma que você está vendo a sua música.

A famigerada síndrome do underground.

Essa questão de fazer algo acessível é um tabú. Você fica lá com a bandeira da música instrumental, mas está preso nesse pensamento que impede que sua música gire. Isso faz com que você nade apenas na superfície.

Isso que você falou do nicho é foda por que no instrumental existe essa visão de que a cena é pequena, mas você consegue alcance e ainda grava em paralelo com outros músicos, como o Lenine, Criolo e Milton, por exemplo. Essas trocas fazem você conseguir novos públicos, uma forma inteligente pra acessar esses novos lugares.

E o grande lance é fazer isso sem prostituir o seu trabalho.

Totalmente.

Eu não estou saindo do meu posicionamento, continuo sendo o mesmo Amaro, não é só o pianista ou tecladista. O nosso país é assim, não existe uma crítica especializada de Jazz. A cena do Jazz na europa é a Champions League, não existe uma Downbeat aqui, por isso eu preciso ocupar o Estadão, o Correio Brasiliense… Quem são os artistas do nosso país?

A maior referência são cantores. A gente precisa aplaudir mesmo, até por que o que esses gênios fizeram com a língua portuguesa é formidável. João Bosco, Milton, eles esmiuçaram a língua, mas existe um déficit com a música instrumental e preta brasileira. Quando você pensa em Moacyr Santos, Johnny Alf, Dom Salvador… Esses caras não tiveram o devido reconhecimento.

Vinicius de Moraes, João Donato… Todo mundo ia ver o Alf tocar e ele morreu na pior, tocando nos club’s.

E o Vinicius de Moraes estava fazendo comercial pra Coca-Cola

Exatamente e nós precisamos estar atentos, caso contrário você entra no papo de que não dá pra viver de música instrumental. Tem que se agarrar em algum cantor, abrir home estúdio e fazer jingle de campanha. Eu vejo gente que ganha bem fazendo jingle e acompanhando cantores, mas essa não é a única opção.

Um cara daqui de Pernambuco me disse: “tô puto contigo, negão, antigamente eu reclamava muito que não dava pra viver de instrumental, mas aí eu lembrei de você e fiquei quieto.” 

Nós vivemos num ciclo meio louco. São Paulo é a nossa metrópole e não tem tanto conexão com a música do mundo.

E a galera acha que precisa estar aqui, só por estar.

E esse lugar me dá orgulho também, por que eu lembro de sair da europa, chegar no Brasil, fazer o Instrumental do SESC na Consolação, ir para os Estados Unidos fazer o Lincoln Center e depois voltar para o Recife. Bicho, isso é muito foda.

Você descentralizou o eixo.

Exatamente e o clipe de “Baquaqua” foi feito em Manaus. O vídeo de “Sankofa” foi feito no Rio de Janeiro.

Você vai pra São Paulo só pra tocar e não é dependente dessa situação

Sim, nós precisamos estar em todos os lugares, contando a nossa história. 

Pra fechar, Amaro, gostaria que você falasse sobre as colaborações recentes ao lado do Lenine, Criolo e Milton Nascimento. Eu consigo visualizar um disco seu em duo com algum cantor e queria que você comentasse a experiência ao lado de artistas tão versáteis e brilhantes de formas completamente diferentes. 

Foi um presente. O Lenine é fantástico e o trabalho com o Criolo e o Milton foi uma honra. Conheci o Milton numa festa dele. Sempre tem banda, mas dessa vez não tinha pianista. Nessas festas, Milton nunca canta, mas nessa noite em especial ele fez 3 música e foi muito especial estar ali tocando ao lado dele.

Depois eu fui convidado para fazer esse projeto com Milton e Criolo – mas eles já estavam tocando isso há um tempo – e houve uma mudança no direcionamento. A proposta agora era ser mais intimista e foi um processo de 3 meses ao lado do Daniel Ganjaman pra encontrar o melhor arranjo. Eu fiz 16 opções.

Mas nós só definimos isso no estúdio. As músicas são difíceis. As pessoas criaram uma expectativa e o que eu mais fiz ali foi entender Wagner Tiso e sugerir outro caminho dentro do que ele propôs. Eu não tirei a essência da música. Eu faço os traços melódicos de “Cais” no início e começo a trabalhar com a rearmonização em quartas e quintas.

Tem uma sensação de elevação intrínseca ao arranjo.

Sim, e nesse trabalho de quartas e quintas eu encontrei um balanço entre o piano e as vozes pra tocar numa altura próxima ao Milton, sugerindo coisas conforme ele vai dando o tom. Fiz a mesma coisa com o Criolo.

No final, eu pego o arranjo todo menor do Wagner Tiso e transformo numa Valsa e começo a fazer o arranjo maior.

Você trouxe um novo movimento. Foi um belo trabalho de estudo, Amaro, além da percepção que você teve das vozes.

Muito obrigado, mago.

Eu que agrade, maestro.

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