Amiri e as três dimensões de ONFK (2019) é o tema desse brilhante e incisivo artigo do nosso colunista André Farias, leiam, pensem/amplifique
Eu, como todos vocês, estava esperando há muito tempo por esse disco do Amiri e, como era de se supor, ele não deixou a desejar. Pelo contrário, poucas vezes eu senti algo parecido ao ouvir um disco pela primeira vez; talvez quando ouvi Ordem de Despejo ou Non Ducor Duco. Para dar vida a essa obra prima Amiri se aliou ao produtor e beatmaker Deryck Cabrera, colaborador de longa data, à cantora Lilly B que imprimiu uma voz linda nos refrãos de Não Mete o Louco e Se eu Morresse Hoje, dois dos pontos altos do disco, e à MUDROI, da qual um dos sócios é o MC, beatmaker, produtor e dono dos meus ouvidos, Parteum. Como resultado dessa parceria ficamos todos nós que ouvimos o disco sorrindo ao mesmo tempo.
Algo que precisa ficar claro no início dessa resenha é que em nenhum momento vocês verão uma afirmação minha de que o Amiri lançou o melhor disco do ano, o melhor disco da década ou o melhor disco desde Nó na Orelha. Pra mim, arte não se resume a técnica ou a características mensuráveis que possam servir como parâmetro de comparação entre as obras. Pra mim a arte possui aspectos de identificação, conteúdo e catarse que não são quantificáveis ou comparáveis. Acho que essas classificações, rankings e etc. funcionam bem para produtos, mas para uma obra como essa do Amiri e como tantas outras lançadas esse ano não cabe esse tipo de comparação. Dito isso, ao meu ver O. N. F. K possui três dimensões muito importantes que serão o foco dessa resenha. A primeira é o impacto que essa obra produz nos ouvintes negros, a segunda dimensão é o impacto que ela pode causar na cena de rap atual e a terceira vem no final da resenha.
O disco se inicia com um instrumental primoroso do Derick, com tambores e uma ambientação sonora que remetem à África, sugerindo uma passagem de tempo entre a África pré-colonial e o período da escravidão. No final da faixa, surgem barulhos de alguém fugindo ofegante e de passos atrás dele. Os passos de mais de uma pessoa se aproximam mas não fica claro se o perseguido consegue fugir ou não e a faixa termina com o Amiri dizendo “Obrigado Mamãe”, provavelmente referindo-se à África. Embora sejamos negros e tenhamos um laço que nos une, independentemente de estarmos dentro ou fora da África, compreender as nuances e características específicas da população negra vivendo em um país multirracial e dominado por brancos é fundamental para nos protegermos e lutarmos por igualdade, enquanto negros expostos a uma estrutura racista.
Portanto, aquilo que nos torna aparentemente diferentes se inicia na captura, escravização e separação do lugar de origem dos nossos ancestrais, até o momento da busca por se libertar dessa opressão imposta. De modo que iniciar o disco dessa forma cria um peso emocional que nos faz querer mergulhar na obra, não apenas pela expectativa de conhece-la, mas também pela necessidade de nos entendermos melhor enquanto negros em diáspora.
As faixas 3 e 4, Um Dia de Injúria e Se Eu Morresse Hoje, expõem de forma contundente o que é desenvolver a própria identidade e personalidade sendo negro em um país como o Brasil. As duas faixas podem ser divididas em construção de identidade na infância e adolescência e os resultados dessa construção sobre a autoestima do negro. Essa construção de identidade distorcida tem um peso muito grande sobre a forma como nós nos enxergamos, já que tal processo se dá principalmente pela nossa relação com o outro. Não é preciso explicar para um negro o quanto a forma como fomos tratados na infância e adolescência através do racismo de sempre, das piadinhas e mesmo dos olhares de nojo, desprezo e hipersexualização, principalmente no caso das mulheres mas não só, podem impactar nossa autoimagem e nossa autoestima. Em geral o desfecho não se dá como o construído pelo Amiri na faixa 3, e também por outros artistas como Tyler the Creator na trilogia WOLF, já que esse tipo de ataque em escolas aparentemente é incomum vindo de negros. Mas os impactos de qualquer forma são muito ruins já que essa baixa autoestima vai acarretar problemas que vão desde solidão, dificuldade de se relacionar com outras pessoas e busca por se inserir em grupos nem sempre recomendáveis a problemas psicológicos como depressão, complexo de inferioridade, entre outros, que marcam a faixa 4. Apesar disso, a faixa 3 me lembra um pouco a história do Sandro Barbosa do Nascimento retratada no “Ônibus 174”. Um rapaz negro que passou a vida inteira sendo massacrado e só foi ouvido e percebido quando sequestrou um ônibus no Rio de Janeiro e apareceu em rede nacional, antes de ser assassinado pela polícia. Assim como Rakim, personagem da história contada por Amiri, já que em Pantera Preta, uma faixa de protesto mas contundente gerada pela revolta pelo quanto somos tratados de forma diferente dos brancos privilegiados, o nome dele aparece entre os nomes de adultos, jovens e crianças mortos pela polícia e pelas circunstâncias racistas que nos cercam. Talvez o mais impactante pra mim nessa faixa, Pantera Preta, tenha sido perceber o quanto esse número de jovens e crianças mortos e mortas pela polícia cresceu desde que essa música foi lançada.
A música Se Eu Morresse Hoje tem um caráter mais intimista, mas ao mesmo tempo trabalha por identificação com essa questão da baixa autoestima gerada pelo racismo. O complexo de inferioridade, automutilação e mesmo tendências suicidas expostas durante a faixa evidenciam outro grande problema da população negra, a questão psicológica. Esta é profundamente afetada pela construção de identidade dita no parágrafo anterior, mas também pelo preconceito em relação a esses transtornos psicológicos. Desse prisma é fundamental ver um artista do porte do Amiri colocando essa questão do suicídio de forma tão aberta quanto ele fez, já que essa visão preconceituosa tende a construir uma imagem de loucura ou fraqueza de quem passa por uma situação como essas. Por isso, a identificação com uma figura tão forte quanto a do Amiri, que constrói uma obra de renascimento, mostra um caminho e uma possibilidade de recuperação pra quem passou ou passa por essa mesma situação.
Mas a faixa não marca apenas esse momento difícil como também apresenta um ponto de virada no disco, no qual o MC rasga uma carta de suicídio, adotando a partir daí os signos da autoestima, da autoconfiança e da realeza como símbolos que serão exaltados nas demais faixas do disco. Nessa tomada de consciência nós percebemos que aquele tratamento que nos inferioriza não define aquilo que nós somos de fato, mas apenas o lugar no qual essa visão racista tenta nos inserir.
Embora a ONFK, faixa 5 homônima ao disco, represente essa mudança de rumos, essa atitude já está expressa na segunda faixa, uma pedrada que mostra porque o Amiri pode ser considerado um dos maiores letristas do RAP nacional. A quantidade de metáforas, referências, multissilábicas, punchlines, rimas internas, trocadilhos e variações de flow presentes em Não Mete o Louco (O Rei) me faz sentir saudade dos vídeos de análise do Faustino. Eu obviamente não poderia fazer isso nessa resenha pelo espaço limitado, mas o que se pode analisar uma das intenções presentes na música. Ao meu ver aqui se encontra o possível impacto na cena de rap que eu mencionei acima. Embora o MC explicite que não é o Kendrick daqui e sim o Amiri, já que é de fato problemático reduzir um MC brasileiro tão original à versão brasileira de um rapper americano, ao ouvir essa faixa é impossível não achar tão foda quanto a proposta de Control. Outras músicas também carregam essa intenção, como Deixo Um Salve, na qual Amiri constrói uma storytelling foda, Etâ Porr*! 2.0(19) da Bomboclat e Épico (Bad Man), nas quais existe um questionamento bastante relevante sobre o embranquecimento do RAP e a qualidade temática duvidosa que vem sendo difundida pelos Fakespeare do RAP e valorizada em alguns espaços do RAP atual, e End (Creed), na qual o MC fecha o caixão. Em todas essas faixas carregadas de Braggadocio fica evidente o tom de desafio presente nas letras e o quanto a aplicação de técnicas de escrita é também uma forma de exibição legítima, deslocando a competição presente no RAP, das tretas de internet atuais, stories se exibindo com armas, ostentação de futilidades e as palhaçadas de sempre, valorizadas pelos seguidores e divulgadas a exaustão pelos TV Fama do RAP, para uma competição lírica e técnica, dentro de termos que elevam a qualidade da produção artística.
As duas love songs, Um Amor e A Fé Tô, dão um respiro depois de tanta porrada. Vale pontuar a forma como a relação amorosa entre duas pessoas negras descrita nessas duas faixas vai para um outro lugar em relação à tentativa expressa em Um Dia de Injúria, carregada de uma tensão construída pelo racismo. É difícil amar o outro quando você não se ama. Um Amor e A Fé Tõ são canções leves nas quais o MC se permite baixar a guarda e se colocar como alguém fragilizado pelo amor. Os versos seguintes representam bem essa ideia.
“Travo, viro uma internet discada/ Lucidez fica por um triz, cada/
Vontade me entrega e eu me rendo/Tanta beleza me esmaga/
Peito derrete igual manteiga: que gata/ Me mata, pupila chega dilata”
Eu não queria terminar esse texto, gostaria de ficar aqui escrevendo sobre cada ponto que eu achei relevante no álbum, mas nem se eu escrevesse uma enciclopédia eu chegaria perto de encerrar a dimensão artística de estética e conteúdo desse disco. Parece que o Amiri não matou apenas MC’s, mas também colunistas, jornalistas e produtores de conteúdo. Mas, resumindo todas as minhas impressões sobre o álbum, acima de tudo o disco do Amiri é um daqueles que você sente vontade de reunir a molecada inteira da sua família e botar o disco para tocar em loop, pra que eles entendam desde cedo o quão grandiosos eles são, entendam pelo que estão passando naquele momento e não tenham que passar tão desprotegidos pelo que nós passamos na infância e na adolescência.
Aquele terceiro aspecto que eu mencionei no início da resenha não é exatamente sobre o Amiri ou o disco em si, mas sobre a estrutura que cerca esse cenário do RAP atual. Sempre que surge um artista que consegue furar o bloqueio e se posicionar com destaque nesse “topo” que é tão exaltado, nós podemos enxergar essa situação sob dois pontos de vista, e isso não tem a ver com a qualidade, índole ou intenção dos artistas. Esses pontos de vista são o foco no indivíduo que subiu ou a reflexão sobre o porquê de outros e outras rappers tão relevantes quanto não conseguirem o mesmo. Isso precisa ressoar na cabeça de todos vocês que lerem esse texto porque cada um de nós faz parte disso e muitos de nós legitimamos essa exclusão, a medida em que preferimos olhar para o topo e esquecer do “resto”. Esquecemos da estrutura, de como as listas são feitas, como os editais funcionam, como os shows e as line ups de festivais são fechados, como alguns rappers adentram em espaços que outros não podem nem chegar perto e como o Estado natal pode influenciar na visibilidade do rapper. Portanto ouçam Underismo, Rap Plus Size, Nego Gallo, Áurea Semiséria, Zudizilla, Warlock, Trevo, Rancho MontGomer, Nabru, Negus, Monna Brutal, Teagacê, Quasimorto, Helen Nzinga, Onni, Projeto Preto, Cactu, D4crvz, Anarka, Antiéticos, Hiran, RJ, Aika Cortez, Gabriel Daluz e, principalmente, ouçam aqueles e aquelas que eu não citei. Pesquisem, garimpem e acompanhem as páginas e sites de RAP.
Nos mais, dê valor e se dedique a ouvir e compartilhar os artistas que não são hypados, que são invisibilizados e ignorados diariamente. Ali tem muito ouro escondido. Não aceite prata jogada na sua cara se você pode ter ouro garimpando no underground.
-Amiri e as três dimensões de ONFK (2019) – Artigo
https://open.spotify.com/playlist/5iCdgGm3d9hnqidAWRt4na