Não se trata de otimismo, é uma mera questão de constatação objetiva: o rap nacional cresce a passos largos. E esse crescimento passa pela constatação de que a diversidade do rap brasileiro tem encontrado sua verdade em uma série de lançamentos.
Certamente, alguns podem entender esse crescimento como diluição, ou como um aumento dos “modinhas”, playboys que passaram a consumir a música antes restrita ao gueto. E convenhamos que esse tipo de argumento é pobre e não reflete ou melhor, não dá conta da riqueza que a música rap conquistou, à base de muita luta.
É obvio que se hoje tem boy no rap, é por conta da conquista dos grandes nomes da nossa história. Thaíde & DJ Hum, Rappin Hood, GOG, Gabriel Pensador, RZO e muitos outros, foram os responsaveis por fincar definitivamente a música de gueto nas salas da classe média. Porém, artisticamente o cenário que possuímos agora em meados da segunda década do século XXI é de consolidação desta música e consequentemente do hip hop como movimento estético-politico em todas as suas dimensões. Apesar de capitaneado pela música, o grafite brasileiro frequenta hoje o MOMA de Nova York e os castelos ingleses, as ruas de Praga ou os trens do subúrbio ferroviário de Salvador.
No cenário musical despontam dia após dia artistas de grande qualidade e o mais importante, desenvolvendo ideias distintas com musicalidades diferentes, dialogando com outras linguagens musicais. Semana a semana, vários lançamentos do norte ao sul do país apontam direções estéticas senão inéditas, bastante diferentes entre si. Toda cena artística de massa, precisa de quantidade de produção e o tempo com toda certeza dirá quem fez obras imortais ou quem estava restrito ao calor do momento. Como disse o poeta recentemente: “A hora é de acalmar o jogo”, e para nós se trata de pensar, divulgar e deixar o tempo agir. Ogapanzan selecionou quatro EP’s de artistas novos e veteranos (do norte e do sul do país) e teceu breves comentários. Essa pequena amostra parece nos indicar que os próximos anos só tendem a rumar para a evolução. Evolução dos artistas e da cena, formando um cenário cada vez mais diverso e rico como é e sempre foi a nossa música.
Makalister Renton – Makalister Renton (2015)
A cultura é a regra e a arte é a exceção, diz Godard num dos seus filmes. Makalister estreia juntando uma porção de referências que não são muito comuns no rap nacional. Inaugura talvez uma nova vertente e estamos ansiosos para ver onde essa exploração vai dar. Em seu Ep de estreia, encontramos apenas quatro músicas, mas não se enganem, a densidade poética e a complexidade musical vão lhe deixar pensando um bom tempo. Se você não for daqueles que adjetivam logo de cara o estranho como ruim, e está na busca da compreensão, aqui está um prato cheio.
Niilismo, decadência, crítica à contemporaneidade (Liquída?), tudo isso decantado em versos que muitas vezes tratam da dificuldade de amar, das incertezas e da falta de objetivos que comunguem com o status quo. Há ecos beatniks, certa aurea bukowiskiana, mas tudo cifrado sem referências chatas ou algo feito apenas para iniciados. Tudo parece emanar realmente de São José SC. O que para nós quer dizer verdade. Verdade de quem consegue se apropriar das referências e criar algo próprio com sua poética.
Os samplers e beats são delicados e bem sincopados, o que ressalta o poder das letras e ao mesmo tempo cria um clima reflexivo no conjunto da obra. Os dois produtores Beli Remour e Goss, transparece uma lufada de ar no que tange aos timbres e beats comumente encontrados. A voz de Maydanna parece fazer um contraponto como que marcando a presença daquilo que falta, e que vai se evidenciando ao longo do disco, seja nas músicas, seja numa conversa colocada entrecortada no final das faixas. O Ep é um belo sinal do novo, mesmo que cheire aos bares sujos em que Renton entra correndo em suas crises de abstinência. Torcemos para que o artista siga firme nesse caminho e traga outro trabalho maior logo a luz.
Diego 157 – Antes da Mixtape (2015)
https://www.youtube.com/watch?v=Z_jsOGjH_hE
Durante os poucos meses de pesquisa, na busca por noticiar o que de melhor o rap nacional vem produzindo aqui para o Oganpazan, em boa parte das produções do rap BA, o nome de Diego 157 aparece como a verdadeira eminência Negra. Sempre presente nos mais diversos trabalhos, seja no flow e nas letras, seja na produção de beats nervosos, o rapper e beatmaker eleva o jogo no hip-hop brasileiro em tudo que mete mão. Diego lançou recentemente o Ep Antes da Mixtape e depois de algumas audições fica nítido o quanto o Mau Elemento vai chegar com uma pedrada inaudita nessa mixtape anunciada. A pegada é o rap combativo, old school, DNA de rua, contra as PUTAS que seguem de quebrada em quebrada executando o genocídio da juventude negra à mando do estado racista. Letras fortes e poesia afiada, inspirandas na lança de Zumbi:
“Exclusão vivi, cabelo pixaim, vulgo de neguim, sempre infringi a regra e o sistema que sempre quis me ver opaco, resisti as algemas e ao cárcere do estado – Desliguei a Tv, disse vai se fuder, oferecendo o que nem fudendo cê pode ter, porque? Distribuíram a renda de forma injusta, na cara dura, pastor curado em clinica oferece cura.”
Cantam na parceria, Diego 157 e Galf (AC) numa das melhores músicas do registro, a maloqueira e revolucionária Pelos Nossos. Diego, menino da CBX de Salvador, tem plena consciência de sua origem. No entanto, é um homem da coletividade, seja pelas participações e produções acima citadas que demonstram sua liberdade de trânsito, seja pela generosidade no abrir espaço aos outros. Espírito de coletividade quilombola, muito presente também pela quantidade de participações que o artista traz para seu trampo: Baga MC, Galf (AC), MC Spock, Sets (NPN), Brown Santana, Xarope MC, José Macedo, Man-Duim, Ravi e Oddish, são alguns dos outros maus elementais que fecham na banca deste Ep.
Ficamos agora no aguardo dos próximos episódios da caminhada do Mc e beatmaker, seja nos voos solos, seja na F.M.E (Fraternidade Maus Elementos) ou aparecendo em outros trabalhos. Uma coisa é certa, não demora e ele cruzará nosso caminho de novo.
Sant – O Que Separa Os Homens dos Meninos (2015)
Dois socos, um cruzado, nocaute, porradão de dois, OQSHM. O rap nacional já sabe que um grande Mc nasceu. O Ep de estreia do Mc Sant o colocou automaticamente entre os melhores lançamentos de 2015, consolidando aquilo que já víamos em cima dos palcos Brasil a fora. Letras fortes expressadas de forma bastante contundente, por vezes parecendo ser mais recitadas que cantadas. Conteúdo aliando dilemas existenciais à uma micropolítica rebelde e revolucionária. O Ep é rico em propostas servindo como um caleidoscópio da alma do artista, das dores de filho até as certezas e projeções de pai. Agonia de menino, incertezas do futuro, alicerce de Homem, um só caminho, vegetarianismo.
Alguém tem dúvidas que O Tempo Passou é uma das melhores músicas do ano no rap nacional? Nós não temos. A participação de Marechal serve tanto para o enriquecimento da faixa como para marcar a diferença entre os artistas que são aliados no mesmo caminho, um só. No entanto, saborosa também é a diferença que marca e define o trabalho de Sant em relação aos parceiros. Sumidades na produção Marechal, Luiz Café, Mr. Break e a participação de um dos mestres supremos da nossa soul music: Carlos Dafé.
Nunca vi medíocres se cercarem de mestres, afinal, os mestres são os responsáveis pela seleção daqueles que querem como seus discípulos. Sant mostra a potência de sua veia lírica capaz de ir do trauma ao amor, rimando a vida. É só botar um beat em cima, saindo da Zona Norte Imóvel, como um monge em meditação, rumo ao mundo. Agradecemos.
Shawlin & Tropikillaz – O Inferno do Cachorro Magro (O EP do Vilão) (2015)
Muita zoada, muita falação, protestos e boicotes ao longo do Brasil. Se uma obra consegue encontrar esses ecos ela nos interessa. Não por gosto da polêmica pela polêmica, mas por desejo de pensar o Polemos – Combate em grego antigo.
“O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.” Frag. 53 Heráclito
O cachorro magro uiva para lua num tom de lamento pelo amor perdido, pelo fim de um relacionamento. Por vezes o cachorro fica bravo como num acesso de raiva patológica e morde até mesmo seus próximos, trabalhando durante todo o processo neste combate. A tentativa de recuperar a lucidez não parece próxima, mesmo que por vezes a ironia assuma o comando. Sabe-se que a ironia pode ser um instrumento da razão capaz de questionar de forma sutil certas posições tidas como certas.
São muitas perspectivas apontadas. A raiva precisa ser posta pra fora, mesmo que depois nos demos conta de que ofendemos ou passamos da conta. Tudo embrulhado em TRAP pesadão, dando a impressão de que a gozolândia é a próxima parada; e é mesmo. Tropkillaz detona na produção. Mas quem disse que o entretenimento não leva à compreensão? Que é impossível tirar conclusões sérias do que parece ter sido feito pra balada? É uma fissura presente no disco, o alto teor de questionamentos individuais e coletivos, tudo embalado num som de pista de dança. Alguém já disse que é possível matar alguém apenas rindo.
Shaw criou um excelente personagem conceitual, um alter ego capaz de transmutar artisticamente – ao que parece – seus demônios. BIO-grafia com toda potência de que a arte é capaz, máscara por traz de máscara. Exorcizando um momento de sua vida e transformando seus sentimentos e ideias menos nobres – que muitos vivem na encolha – em uma obra de arte. Não seria essa a função do artista? Recolher toda a miríade de sentimentos pessoais e plasmar isso em versos, esculturas, pinturas, filmes, discos?
Como muito bem alertado pelo sábio Heráclito alguns séculos antes de Cristo, o combate é pai de tudo que é. Diante dele alguns se transformam em reis, outros em escravos. E diante de argumentos reativos é preciso sempre estar alerta. Da mesma forma que é importante estar ligado nos que vão simplesmente no embalo. O Inferno do Cachorro Magro (2015) é assumido inteiramente pelo artista, mas para algumas pessoas o inferno é sempre o Outro.
Falar da qualidade musical e poética do Shawlin é chover no molhado. O rapper já tem um currículo de serviços prestados ao rap nacional que fala por si só. E neste EP o que se reafirma é a constante reinvenção do artista e a qualidade reafirmada. O disco encontrou mais fãs do que detratores e certamente é “apenas” mais um marco para o artista. Segue no Bang Doido.