O Oganpazan fez uma seleção com documentários do Don Letts pra você conferir. A curadoria vai do George Clinton até o Sun Ra. Como se já não fosse o suficiente, no fim do artigo ainda tem uma entrevista que fizemos com o também músico em 2023.
O Don Letts é um artista no mínimo multifacetado. Escritor, diretor, músico e DJ, seu vocabulário interdisciplinar está dentro de diversos meandros do groove, explorando diversos formatos possíveis.
Figura elementar na arte de documentar as camadas do som, Don já dirigiu literalmente centenas de clipes, além de uma algumas dezenas de documentários – numa carreira premiada e que já está próxima de completar 50 anos de estrada.
Graças ao britânico, não só eu como diversos outros jornalistas e fãs de música se inspiraram e ainda se inspiram no mestre de dreadlocks. E para mostrar a relevância inexorável de sua arte, o Oganpazan listou 5 documentários imperdíveis que o cidadão dirigiu e que você definitivamente não pode deixar de conferir. Ao final da seleção de alguns dos projetos mais interessantes do documentarista, você confere a entrevista que realizamos pessoalmente com a lenda, pouco antes de sua apresentação no MIMO Festival de 2023.
George Clinton: Tales Of Dr. Funkenstein (2006)
Esse documentário mostra um pouco da pacidade que o Don Letts possui de sintetizar a criatividade do artista que ele está retratando. Nesse projeto que detalha um pouco mais sobre a ascensão e a queda do império do P-Funk – comando pelo George Clinton via Parliament-Funkadelic – Don Letts tangibiliza melhor como a psicodelia e o Rock eletrificaram o groove do coletivo norte americano.
Sun Ra: The Brother From Another Planet (2005)
Esse documentário do Sun Ra é maravilhoso, pois trata a obra de um dos músicos mais complexos e intrigantes da história do som de maneira concreta, sem sensacionalismo sobre o tal do Afrofuturismo. Outro ponto interessante é a luz que esse registro dá para os instrumentistas que acompanharam o Sun Ra durante as diversas encarnações de seu grupo.
É um belo ponto de partida, especialmente para quem busca entender o motivo pelo qual o Sun Ra trilhou os caminhos estéticos que escolheu, desde meados da década de 50, até sua morte em 1993.
Lee “Scratch” Perry: Return of the Super Ape (1997)
Reza a lenda que nem mesmo o próprio Don Letts possui uma cópia original desse documentário mais. O Lee “Scratch” Perry é industivelmente um dos maiores produtores da história da música. Nesse documentário fica claro como ele foi o arquiteto do Reggae/Dub na Jamaica.
Outro ponto que faz desse material uma excelente fonte de pesquisa para se entender um pouco mais sobre o contexto da Jamaica na época, além da linha do tempo sobre a carreira do próprio Lee Perry, é o fato de que aqui a carreira do jamaicano foi abordada de maneira respeitosa.
Digo isso, pois o Lee Perry é tratado como maluco pela crítica especializada e essa abordagem que o trata como uma anomalia exótica esquece de destacar seu brilhantismo e pioneirismo no mundo dos graves.
The Revolution Will Not Be Televised: Gil Scott-Heron (2003)
Esse especial sobre o Gil Scott-Heron é muito bonito. É possível ouvir figuras elementares na carreira do mestre da spoken word, como o pianista Brian Jackson, que esteve ao lado de Gil durante os lançamentos via Arista Records.
Gil foi um escrito brilhante, ativista e músico de habilidade subestimada. Aqui o Don Letts trata de elucidar por que o poeta sumiu em determinado momento de sua vida, além de esclarecer fatos sobre sua trajetoria e abordar os problemas com drogas que Gil teve, principalmente com o crack e a cocaína.
Entre os entrevistados, figuras elementares, como Abiodon Oyewole (que nós entrevistamos) e que foi uma das peças chave no grupo The Last Poets, grande influência para o próprio Gil Scott.
Paul McCartney: Something New (2013)
Esse trabalho não é tão conhecido, mas é bastante interessante, pois flagra o Paul McCartney bem na época que ele lançou “New”, um de seus discos de maior sucesso nos anos 2000.
Como o Paul McCartney é uma pessoa no mínimo famosíssima, Don conseguiu focar ainda mais no disco em questão, deixando de chover no molhado, o que é um feito e tanto, se tratando de projetos que envolvam ex membros dos Beatles.
Entrevista com Don Letts:
1) Don, pra começar, obrigado pela oportunidade, realmente significa muito. Em 2023 você vai lançar seu primeiro disco solo “Outta Sync” e eu queria que você comentasse sobre o processo de gravação e desse alguns detalhes sobre a produção do disco.
Meu amigo, eu tive 67 anos para pensar sobre isso! O maior problema para concretizar o projeto foi lockdown, em decorrência da pandemia do COVID. Essa é provavelmente a gravação mais honesta que eu já fiz na minha carreira.
Todos os meus pensamentos e jornadas culturais estão presentes nesse disco, mas ele só sai em setembro.
Sim, eu vi que você precisou jogar a data pra frente.
Sim, o plano inicial era fazer o lançamento em maio, mas tivemos algumas questões com a gravadora do Terry Hall (que canta duas faixas no disco). Wayne Coyne também vai participar do projeto.
2) Como foi o processo de trabalhar com o Gaudi, produtor italiano especialista em Reggae e música eletrônica? Sei que vocês já trabalharam juntos antes.
Até a gravação desse projeto eu tinha feito apenas alguns remixes com o Gaudi. O cidadão definitivamente é um gênio e sem ele o meu disco não seria possível.
Ele me ajudou a criar uma trilha sonora para a minha mente. Ele trabalhou com muita gente, você pode inclusive pesquisar a relação de grande artistas que já trabalharam com ele.
Sim, já fez projetos até com o Lee Perry.
Sim, já trabalhou com o Horace Andy, Steeel Pulse, enfim, muitos artistas.
3) Em 2021 você lançou “Late Night Tales” e eu não pude parar de pensar em como esse projeto reflete esse trabalho de pesquisa que você desenvolve há tantos anos.
Essa é a minha vida, eu crio para mim mesmo e torço para que isso se conecte com as pessoas. Essa compilação que você citou (“Late Night Tales”), bom, eu fiquei muito feliz em fazer esse trabalho, pois eu cresci em UK e eu tive o Reggae/Dub entrando por uma orelha e a música Pop pela outra.
Eu sou um produto dessa combinação, por isso que essa compilação reflete tão bem a mistura do Pop com o som dos graves.
4) Como um grande fã de Reggae, o que você pode falar sobre a gravação do documentário que você fez sobre o Lee Perry?
Nossa, cara, você sabe de uma coisa? Eu não tenho mais o arquivo original, eu perdi o filme. O documentário se chama “Return Of The Super Ape”.
Você já viu?
Claro, dezenas de vezes!
Onde?
No YouTube! Não está na melhor qualidade do mundo, mas dá pra ver o filme todo. São quase 30 minutos de imagens.
Eu não tenho a cópia mais, mas que bom saber que você conseguiu assistir. O Lee Perry era o Salvador Dali da música jamaica e foi uma honra crescer ouvindo a música dele e fazer um documentário sobre ele. Ele é um artista que faz muita falta. Nunca teremos outro Lee Perry.
5) Outro documentário seu que eu assisti centenas de vezes, foi sobre o George Clinton (“Tales Of Dr. Funkenstein”). Qual é o desafio na hora de criar esse plano de fundo para um artista tão complexo como o mestre do P-Funk?
Eu não vejo essa questão como um desafio, é uma honra. O George Clinton literalmente explodiu a minha mente. Eu como um jovem negro na época… As coisas que ele fez eram únicas, nenhum outro artista negro fez algo parecido na época.
E ele sempre colocou os homens negros em posições da sociedade que ninguém havia imaginado, graças a essa ponte com a arte que ele fazia tão bem. Ele levou o homem negro para a Casa Branca, para o espaço sideral e etc.
Exatamente, o George Clinton não refletia apenas a malandragem das ruas, ele estava em outro lugar, provavelmente com as estrelas. Ele foi muito importante pra mim. Ele não era um artista que podia ser definido por sua cor de pele.
6) Quando eu vejo seus documentários, Don, bom, eu fui muito influenciado por eles. Em 2023 o The Last Poets veio para o Brasil e eu só ouvi falar no grupo, graças ao seu documentário sobre o Gil Scott-Heron. Como é esse exercício que você faz de mostrar a grandeza, principalmente dos artistas negros com os quais você já trabalhou.
Se você olhar para a criatividade desses nomes que você citou. O Sun Ra, Lee Perry, Gill Scott, The Last Poets… A capacidade criativa desses artistas é incalculável. Talvez algumas pessoas não compreendam, mas talvez esse tipo de arte não seja feito para elas.
O único desafio que eu enfrentei nesse sentido foi conseguir encaixar tanta história, criatividade e conhecimento num espaço tão de tempo muitas vezes curto.
Sim, são legados tão profundos que você tem muita oportunidade para trabalhar e explorar.
Sim, a questão é justamente essa, como agregar tantas informações e mesmo assim conseguir contar uma história coesa.
Na década de 1970 você influenciou bastante a cena Punk. Fez com que muitos deles gostassem de Reggae e Dub.
Sim, de fato influenciei muitas pessoas, mas não todo mundo.
O que você pode falar sobre a cena europeia, considerando o espaço que o Reggae teve em países como Inglaterra, Alemanha e França, por exemplo?
Você sabia que na inglaterra os adolescentes brancos tem o costume de adotar a música negra como se fosse a dose de rebeldia deles? É o som que eles utilizam para se rebelar.
Na década de 1950 e 1960 a “geração windrush” trouxe muitos jamaicanos para a Inglaterra e eles trouxeram a música do seu pais consigo e esse música se tornou a trilha sonora para a rebeldia branca na juventude.
O que você está falando ainda é um traço contemporâneo.
Com certeza.
A cena de Jazz de Londres surge desse mesmo plano de fundo.
Sabe o que é engraçado? Grande parte da música que é liberada em UK hoje em dia está conectada com a cultura do Sound System. Diversos estilos, como o Jungle, Grime, Dubstep e até mesmo a galera do Jazz. Se você ouvir vai perceber isso, eles trazem as lições que aprenderam da cultura Sound System.
A música eletrônica ainda é amplamente influenciada por isso.
Absolutamente. Os experimentos que foram criados nos estúdios da Jamaica são parte elementar da música popular.
7) Don, você passou alguns anos junto com o “Big Audio Dynamite” e também teve o projeto “Screaming Target”. Essa música influenciou muito a cena de 1980 e 1990 e eu queria que você comentasse um pouco sobre esses experimentos.
Fiquei cerca de 8 anos com o Big Audio Dynamite. A primeira coisa que posso dizer é que me sinto muito honrado pela oportunidade que tive de escrever música junto com o Mick Jones.
Tenho muito orgulho do Big Audio Dynamite, justamente por que era uma mistura do baixo da música jamaicana, beats de Nova York, Rock ‘N’ Roll e eu estava ali fazendo os samples e todas as coisas analógicas. Esses ingredientes que eu citei são coisas que eu gosto até hoje, por isso tenho tanto carinho por esse projeto.
8) Don, obrigado pela oportunidade. Eu cresci vendo seus documentários, aprendi e aprendo muito com você sempre. O que te mantém tão ativo, sempre produzindo música e os projetos audiovisuais?
O que me faz seguir trabalhando tanto? Bom, eu moro em Londre, tenho duas filhas adolescentes e é tudo MUITO caro!