sódan lançou seu segundo EP Caraíva (2022), um movimento de renovação após hiato, com participações de Duvô, MANDNAH e Sergio Estranho!
Existe uma imagem do que é atualmente o rap nacional, veiculada, reforçada e repisada diariamente nos feeds das redes sociais, em muitas páginas e perfis de “divulgação”, que se baseia apenas em números e no bom e velho hype. Essa representação totalmente rendida à indústria cultural, projeta luzes sempre no mais do mesmo, com raríssimas exceções que terminam por serem apagadas nesse turbilhão de uma repetição vazia.
O espaço para a expressão da diferença é algo cada vez mais mínimo ou muitas vezes inexistente nesses espaços de incentivo ao “consumo musical” do rap nacional. A ausência de pensamento aliado ao marketing da pior espécie, junto a necessidade de surfar no último corte polêmico de um podcast qualquer se pretende cobertura do cenário rap. Porém, só consegue encobrir a vasta produção diversa que inunda os streamings vindo de todas as partes do país.
Ora, a repetição é um dos traços constitutivos do rap, no entanto é no brilhantismo de uma produção diferencial que essa repetição elevou esse gênero musical à posição artística de maior relevância nas últimas 5 décadas. No país de origem dessa forma de música, o reconhecimento da diversidade das produções foi um dos fatores de “enriquecimento” industrial e mercadológico. O que nos leva a uma contradição entre os especialistas no rap norte americano que não conseguem nem lamber o conjunto da produção nacional para além da superfície.
“Fujo do óbvio, não vejo graça em rótulos, viver na bolha é estranho, só existir me causa incômodo!” sódan, Alcatraz (2020)
A frase acima não é um mero braggadocio, o MC carioca incorpora existencialmente essa busca que transparece nos seus trabalhos. Após o seu primeiro EP Crise Da Meia Noite (2020), sódan lançou recentemente Caraíva (2022), um segundo EP contendo 5 faixas em clima de reconstrução, de retomada após um ano de hiato. Em seu instagram, o artista descreve o título Caraíva como algo mais do que um lugar, do que um simples título, mas como um estado de espírito, como um real batismo. Trabalhando com quatro beatmakers: Ciano, Noshugah, CJR Beatz e G.RRAN, o trampo nos comunica uma introspecção, abordando uma caminhada ao longo das músicas.
Há uma complexa construção de sentido que atravessa Caraíva (2022) e que se sacode e nos envia em direções distintas de “Diafragma” até “Outono”, do músculo responsável importante para a respiração até a estação de transição. A luta pela vida, para além da mera sobrevivência e a necessidade de leveza e entendimento para as escolhas necessárias, está presente em “Colisão” faixa que traz além da bonita voz da MANDNAH no refrão, as rimas confluentes com o tema, do Sergio Estranho.
Uma lírica intrincada que soa como um enigma, entoada em um flow suave e melancólico é a tônica de “E se o Mundo Acabasse Hoje?”, que recebe a luxuosa participação de 1LUM3 que segue a toada: “Talvez um sinal, talvez um troféu, me leve pra perto dos meus!”. A música com produção do Noshugah apresenta uma cadência africana que nos encaminha para um entendimento de certo comunitarismo, de busca e talvez até de ancestralidade do sódan.
Muitas vezes é risível percebermos como muitos MC’s se arvoram uma versatilidade que não possuem, a dinâmica das redes imprime em alguns a necessidade do falatório que certamente é o contrário do ofício dos poetas.
A faixa “Esquiva” surpreende, mas apenas a quem mesmo diante de um trabalho tão fora da curva ainda espera algo formatado ao gosto do freguês. Aqui temos um drill – essa coqueluche dos dias atuais – trabalhado com originalidade – palavra gasta – e uma poética que foge muito do senso comum. Doce até, sódan rima amor, a busca por si mesmo no rolê, o indivíduo em meio ao aglomerado de milhões tentando sorver o que resta de natureza e de natural em meio ao caos.
O EP se encerra com a deliciosa “Outono”, um house cortesia do G.RRAN, onde sódan e MANDNAH cantam amor. A faixa recebeu um audiovisual com direção de Gerran Bevitori e nos parece que o videoclipe conseguiu captar bem o fechamento de Caraíva. Em imagens e som, o audiovisual mais do que representar, alcança o ponto de chegada onde a alegria, a consciência de si e a liberdade conseguem ser muito bem transpostas como sentido da obra.
O universo em progressiva degradação denunciado na faixa de abertura, tem o seu ponto de chegada neste “Outono”, poético em áudio e vídeo. A música “Diafragma” abre os trabalhos com o Duvô cantando sobre o movimento de respiração que pode ser facilmente entendido como um movimento não apenas de reflexão mas também de alteridade. Flexionar pra dentro e expressar pra fora nossas dores, nossos anseios, nossos desejos inconfessos, é movimento fundamental para a desconstrução de um ego que pode ser prisão, ponto de parada das forças do indivíduo.
Esse sacolejo na busca da construção de um sentido mais autêntico, mais adequado ao artista é o que sódan nos parece alcançar com o seu trabalho atual, Caraíva (2022) pode ser lido como essa estação de transição. Dentro de um cenário impositivo de fórmulas comerciais, de clichês do que é ser negro dentro da cultura hip-hop, visibilidade e representação se tornam prisões para construções estéticas que fujam ao padrão, tais como às que sódan nos apresenta em seu segundo EP. O tambor quase seco presente na produção de Ciano que abre a sonoridade do disco, vai aos poucos ganhando outros contornos possíveis e direções líricas que transparecem a luta do artista.
Um trabalho que acalenta e nos dá a pensar, que nos apresenta um artista iniciante com muito potencial e qualidade, sódan nos oferta poesia e ousadia, uma coragem em se expor nu tomando banho de mar em uma praia lotada no Rio de Janeiro, onde as pessoas só prestam atenção aos kits!
-sódan e as folhas caindo de uma árvore renovada, Caraíva (2022), reflexões!
Por Danilo Cruz