Zudizilla lançava a sua mixtape de estreia Luz, há dez anos, contendo 20 faixas o trabalho é o início de um ciclo que se fecha esse ano.
“Aquele que sacrifica a liberdade por esperança, não merece nenhum dos dois!” Zudizilla
Atualmente, Zudizilla é sem dúvida alguma um dos melhores artistas do cenário rap/hip-hop em nosso país, com uma discografia composta pela mixtape de estreia Luz (2013), o disco Faça a Coisa Certa (2016), o EP JazzKilla (2019) e uma trilogia com dois discos já lançados e potentes, que encontrarão a sua conclusão este ano. O MC de Pelotas, atualmente residindo em SP, conseguiu o feito de sair do interior do Rio Grande do Sul, e escrever o seu nome com brilhantismo na história contemporânea da cultura.
Com toda certeza, toda essa caminhada que não é fácil, encontra uma força e uma certeza de si que é o motor para seguir produzindo em meio às dificuldades de quem não tem investidor. Mas não se engane, não estamos falando aqui de mero egocentrismo, muito pelo contrário, o trabalho e a obra em progresso que Zudizilla vem construíndo é toda calcada em uma visão político racial e em uma “estética radical”, sem concessões e onde o alvo é o coletivo, aquilo que ele identifica como o seu povo.
A internet criou um curioso fenômeno que se exprime muitas vezes com tentativas de revisar, apagar ou pelo menos invisibilizar o passado. Obras de artistas são pontos focais de momentos onde o desenvolvimento do mesmo, o contexto social e político, a estética pretendida fixa-se e arremessa sua proposta para o futuro. Os começos de grandes artistas como Zudizilla servem para que possamos perceber, limitações, traços, linhas, cores, inflexões, que ao longo do tempo vão sendo domados, retraçados, e recebendo outras luzes e perspectivas.
Artistas e pensadores não evoluem, eles domam os domínios técnicos e bebem da tradição na qual se vinculam assumindo ou colocando novos problemas de ordem estética, que já foram colocados antes, em seus próprios termos. E neste sentido, ouvir hoje Luz, dez anos depois, no momento em que Zudizilla passa a ser mais conhecido, é fundamental para compreender seu caminho artístico. Para ter pelo menos, um vislumbre de compreensão daquilo que hoje é feito pelo MC.
“Não cabe, no campo da arte, a ideologia do progresso – nem a do retrocesso. No campo da música, da literatura em prosa ou em poesia, da pintura, da escultura, não há evolução ou involução. Há diferentes formas, diferentes técnicas, estabelecidas a partir de diferentes lugares e tempos, com as suas circunstâncias políticas, religiosas, filosóficas próprias.” Gustavo Bertoche
Curiosamente, Zudizilla identifica o começo de sua carreira como MC com o lançamento da mixtape Luz em 2013, ele que até então fazia uns “raps num passado recente”, estava mais vinculado ao grafite – sua via de entrada na cultura hip-hop. Simbolicamente, o título da mixtape e essa identificação é bastante representativo do que se tornaria a sua carreira dentro do rap nacional, atualmente um farol do que pode ser feito fora do eixo, que ilumina outres artistas do rap gaúcho e nacionais que conhecem o seu trajeto. Sobretudo para os MC’s que se recusam a seguir a moda, ele é um dos MC’s de maior iluminação quando se trata de lírica e flow e é importante que ele venha conseguindo reconhecimento.
A mixtape Luz é composta de nada mais nada menos do que 20 faixas, e como uma obra de estreia de um “novo” MC é com certeza uma obra que merece menção por diversos motivos. Primeiro, porque apesar da produção ser caseira, e estar aquém do que Zudizilla vai alcançar nos anos seguintes, é um retrato muito fiel de um começo onde as músicas já deixam claro que o Zudizilla de hoje estava ali presente em potência. A essência permaneceu ao longo dos anos, mas a sua teimosia lapidou o talento que ali vinha à luz.
Segundo porque com certeza, a mixtape é um exemplar histórico não somente da sua carreira como de um momento de sua vida e das suas condições de produção, e também da forte cena e de um coletivismo presente no hip-hop de Pelotas (RS). Em entrevista ao “Az Ideias” podcast, o artista conta que os beats eram feitos em um computador meia boca do Pok Sombra – nome fundamental da cena pelotense e do sul do país – ou em “Lan houses”. Além de só existir um microfone para todos em sua cidade gravarem.
“Eu continuo o mesmo cara que ninguém dava nada quando caminhava por aí, só que agora o meu boné é novo, não mudou nada é meu boné que é novo!” Zudizilla
Com uma trajetória de formação que passa pelo hardcore e metal, e uma caminhada de estudos no campo da história da arte e do design – Zudizilla faz até hoje as suas capas de disco – ele encontrou no Hip-Hop a cultura na qual podia se reconhecer enquanto homem negro. Porém, essa formação que passa também pelo amor aos escritores do movimento Beatnik, lhe deu régua e compasso para entrar na cena e permanecer com uma forte essência combativa, tratando o rap e a cultura hip-hop como aquilo que ela é em essência: Contracultura.
A passagem da Intro para a faixa “Eu Sou a Luz”, nos mostra um jovem homem negro que assumiu ser luz para assim irradiar conhecimento e postura para outros dos seus. A faixa em questão nos remete ao discurso clássico do grande líder negro Nelson Mandela:
“Nosso medo mais profundo não é que sejamos inadequados.
Nosso medo mais profundo é que sejamos poderosos demais.
É nossa sabedoria, nossa LUZ, não nossa ignorância, nossa SOMBRA,
o que mais nos apavora.” Nelson Mandela
Isso será iluminado por toda a mixtape com uma sequência de punchlines poderosas e combativas que mesclam o som e fúria de um jovem MC em início de carreira, com condições precárias de produção, buscando um sentido e a inserção em uma cultura preta. O talento nas rimas e no flow ficam evidentes à medida que avançamos na mixtape, porém o que nos salta aos ouvidos é a proposta político-social e estética, que será desenvolvida ao longo dos próximos anos.
Em “Alguém Sabe” a proposta de alguns braggadocios revela a intenção de ser um construtor de propostas coletivas, de um promovedor da cultura através da sua arte. Para além de mera imagem, a singularização estética é exaltada, como todos os bons artistas buscam. “Eu Busco Sempre Mais”, que traz as participações de Maninho RH e DJ Micha, é uma a mais das pesadas que compõem essa primeira parte da mixtape. Com riscos e inserções de samples do DJ Micha, a dupla versa sobre a busca pelo engrandecimento da cultura e dos seus, num período onde cantar sobre meras conquistas individuais não eram travestidas de ideologia meritocrática como “Favela Venceu ou Pretos no Topo”.
Aliás, o amor pela cultura e pelo rap como arma de transformação é algo que permanece até os dias atuais no trabalho de Zudizilla. A busca por se inserir no mercado, não transformou a arte do gaúcho de Pelotas em mera mercadoria de consumo rápido e esquecível. A crítica certeira a elementos alienantes e a indústria cultural está presente em seu trabalho desde o início mas sem apologia à precarização, muito pelo contrário.
Na música “Posso Falar?” com produção do Pok Sombra, beatmaker e MC que é responsável por grande parte dos beats da mixtape, Zudizilla apresenta uma lírica e um flow pesadíssimos que refletem muito do seu approach hardcore, “Bad Brains Zen”, espancando em linhas muito incisivas visões limitadas e redundantes do que seja o game. “Underground é o caralho”, se trata sempre se ser um duplo daquilo que se canta, “tem que ser o rap” propaga o MC, mas com um entendimento límpido de que ser o rap é muita coisa, é um compromisso com a palavra e com a cultura, com a condição do seu povo e com a invenção livre de amarras.
Lutar pela sua família, para não entrar nas estatísticas é também não comprar os sonhos que são implantados em nossos inconscientes via mass media. A faixa “American Dream” mais uma produção do Pok Sombra digna de menção, traz essas críticas muito bem elaboradas por um artista que compreendeu o que significa “On The Road”. Para os mais atentos ouvintes, essa faixa traz o germe do primeiro disco da trilogia da Ópera negra que Zudizilla está produzindo, com um verso incrível sobre está com os pés no chão.
A mixtape prosseguirá com outras tantas faixas pesadas falando de amor, e elaborando outros tantos petardos mais calmos do que na primeira sequência de faixas sobre política, sobre a cena, sobre o social e racial no nosso país e em sua subjetividade transformados em poesia ritmada. A mixtape de estreia do Zudizilla é daqueles disquinhos que quanto mais ouvimos mas vemos que dialoga firmemente com sua obra posterior.
O disco conta com beats do Felipe Keels, Matheus Menega, Godfather Sage, Rodrigo Perelló e Nick Beats, que contribuem para pegadas R&B’s, G-Funk’s e boombaps diversos numa mixtape pesada. Um artista aqui neste momento nascendo para a música, para o rap, mas que trazia já uma bagagem de vivências muito bem ilustrada, que transformou dificuldades de produção em uma trilha cantada em forte Luz desde o início.
Os sonhos do Zudizilla não eram demais, porque ele conseguiu fincar os dois pés na terra, não apenas na sua em Pelotas, mas sobretudo na diáspora e não tem se rendido ao mercado. E esses sonhos foram projetados desde essa primeira mixtape, que jogou sua Luz para frente, e serviu como um farol invertido, não trouxe um navio em segurança, pelo contrário explodiu com um fecho de esclarecimento para o meio do mar bravio da indústria cultural. O MC segue navegando e enfrentando a natureza predatória desse mercado nessa luz inicial e tem dado certo!
-Dez anos atrás Zudizilla estreiava com a sua primeira mixtape de estreia: Luz!
Por Danilo Cruz