Em “Your Queen Is A Reptile”, Shabaka Hutchings questiona o colonialismo britânico, enquanto mostra novos caminhos para o Jazz.
Um dos músicos mais interessantes dos anos 2000 é o saxofonista e clarinetista Shabaka Hutchings. O multi instrumentista está na linha de frente de diversos projetos, encabeçando uma nova geração comprometida em deixar uma marca duradoura na cena musical da Inglaterra.
Com apenas 38 anos de idade, Shabaka goza de uma notoriedade que já o colocou ao lado de grandes cânones da improvisação contemporânea, como o saxofonista, compositor e arranjador Roscoe Mitchell, por exemplo – um dos líderes do Art Ensemble Of Chicago – o percussionista etíope Mulatu Astatke e o líder da Sun Ra Arkestra, Marshall Allen, guardião das tradições de Sun Ra.
Líder de 3 dos projetos mais interessantes da cena Jazz, Shabaka lidera o trio The Comet Is Coming, o quarteto Sons Of Kemet e o sexteto Shabaka and The Ancestors, explorando veias criativas diversas e identidades sonoras marcantes, mesmo em meio a estímulos completamente diferentes.
Com o Sons of Kemet, o grande X da questão é a dinâmica musical. São duas baterias e 2 metais, sendo que o baixo é feito por uma tuba. O repertório é intenso e se conecta bastante com as raízes da música caribenha, afrocubana e africana. A tuba do Theon Cross é especial.
Com o The Comet Is Coming, Shabaka toca Jazz com Rock Psicodélico e música eletrônica. Feliz como uma criança no playground e em trio, o saxofonista mostra sua visão espacial do Fusion. Já ao lado do Shabaka and The Ancestors, a troca acontece em meio a uma banda formado por britânicos e sul africanos, unindo as influências da música local e de Barbados, terra dos pais de Shabaka.
São diversos discos de estúdios, lançados pelos mais célebres selos de Jazz, como a IMPULSE!, por exemplo. Cada um dos grupos possui uma discografia sólida e que se renova frequentemente. É até difícil escolher por onde começar, mas talvez pelo meu fraco por discos conceituais, “Your Queen Is a Reptile“, terceiro disco de estúdio do Sons Of Kemet, lançado em 2018, seja uma boa porta de entrada para o universo do compositor.
Line Up:
Shabaka Hutchings (saxofone)
Tom Skinner (bateria)
Nubya Garcia (saxofone)
Theon Cross (tuba)
Seb Rochford (bateria)
Josh Idehen (vocal)
Eddie Hick (bateria)
Miles Body (bateria)
Congo Natty (toaster)
Joshua Idehen (poesia)
Track List:
“My Queen Is Ada Eastman”
“My Queen Is Mamie Phipps Clark”
“My Queen Is Harriet Tubman”
“My Queen Is Anna Julia Cooper”
“My Queen Is Angela Davis”
“My Queen Is Nanny Of The Marrons”
“My Queen Is Yaa Asantewaa”
“My Queen Is Albertina Sisulu”
“My Queen Is Doreen Lawrence”
Sons Of Kemet – Your Queen Is a Reptile
Para começar essa história é primordial abordar a questão da herança histórica do conteúdo que sustenta essa gravação, em função de suas diferentes raízes, até por que a miscigenação de raças no Reino Unido contribuiu diretamente para essa nova Renascença Jazzística.
O Shabaka Hutchings nasceu em Londres e se mudou pra Birmingham com 2 anos de idade. Aos 6 anos, sua família resolveu voltar para a terra natal (Barbados) e o futuro músico lá permaneceu até completar 16 verões.
Alguns anos mais tarde, ele voltaria para Londres para estudar clarinete – com formação clássica (na prestigiada Guildhall School Of Music & Drama) – mas Londres já não era mais a mesma.
Sua geração conta com nomes como a saxofonista Nubya Garcia, o baterista Femi Koleoso, o pianista Ashley Henry e o trompetista Ambrose Akinmusire. São vários músicos com heranças caribenhas/africanas, todos responsáveis por colocar o Jazz londrino no posto mais alto da música contemporânea, algo que não acontecia na terra do chá das 16h desde os anos 60 (!)
Todos esses músicos trouxeram uma bagagem histórica que é a síntese de tudo que esses nomes citados estão criando para, dia após dia, seguir revolucionando o estilo. Um dos pontos que mais impressionam durante o tempo que o “Your Queen Is a Reptile” está no play, é algo que você só vai entender se já foi pra Barbados ou tem primos lá.
A dinâmica instrumental é um reflexo dos anos de Shabaka morando com seus pais. Ele mesmo já deu explicações sobre isso, pois um dos detalhes que mais chama a atenção da sua banda é o fato de contar com duas baterias, um saxofone e uma tuba.
É notável como dessa maneira ele descentraliza a “obrigação” da bateria prover apenas ritmo enquanto os metais contribuem pra isso. O sax de Shabaka preenche o vácuo do groove e a tuba (Theon Cross) funciona como um baixo.
“Not being from the place that jazz is born from means that I don’t feel any ultimate reverence to it. It’s just about finding ways of reinterpreting how we’re thinking about the music.”
Essa frase foi dita pelo Shabaka Hutchings durante uma entrevista recente. Além de uma fala poderosa e corajosa, ela também traduz a maneira como os novos músicos de Londres estão enxergando o Jazz.
Na mente do pianista Joe Armon-Jones, por exemplo, o Jazz é uma intervenção. Essa fala do Shabaka dialoga muito com a clássica resposta que o Miles Davis deu para uma jornalista, instantes antes de subir ao palco no festival da Ilha de Wight (1970). Perguntado sobre o seu set list, Miles respondeu: “call it anything”. Chame do que quiser… É esse ímpeto de mudança que formou esse disco e essa cena.
As convenções do Jazz já foram para o espaço na mão dessa galera e quem ganha com esse experimento são os ouvintes. Um disco ambicioso, “Your Queen Is a Reptile”, cria climas sinfônicos na conserva de um etílico Afrobeat com influência da música de Barbados.
Disruptivo desde a capa, o título do disco e seu conteúdo desafiam as convenções do nacionalismo e da monarquia britânica. Hutchings oferece sua própria versão de uma família real, formada apenas pelas mais importantes e visionárias mulheres negras. Nomes como Yaa Asantewaa, Angela Davis e a própria bisavó de Hutchings, Ada Eastman.
Na faixa que abre o disco (“My Queen Is Ada Eastman”), o fala do Joshua Idehen é tão poderosa quanto o explosivo groove do quarteto. A fúria de sua voz promove um contraponto interessante frente ao que acontece no instrumental. É interessante como o som cresce, conforme o trabalho de voz fica mais intenso, como se fosse o termômetro da faixa.
Em “My Queen is Mamie Phipps Clark”, Shakaba entrega um Dub liderado pela produção de Congo Natty. Sim, um Dub sem Soundsystem, sem baixo e com a voz de Joshua mais uma vez emulando a presença de um mestre de cerimônia. A densidade dos dois metais e a sessão ritmica criam uma parede sonora intransponível.
Mamie Phipps Clark, foi uma psicóloga social que pesquisou os efeitos prejudiciais da segregação em crianças afro-americanas.
Aliás, aqui vale um parenteses importante, o próprio Hutchings sempre exalta a cultura Hip-Hop em seus trabalhos e principais influências. Vale lembrar que foi assim que ele deu seus primeiros passos no clarinete, tocando por cima dos discos do Tupac e Notorious B.I.G.
“My Queen is Harriet Tubman” chega em forma de um Fusion muito bem torneado e repleto de quebras de tempo, uma constante nessa gravação. Seria essa a visão do músico para o Jazz Rock?
Harriet Tubman foi uma abolicionista e espiã do Exército dos EUA durante a guerra civil americana. Harriet nasceu numa época bastante pesada para a segregação. Mesmo em regime de escravidão (1822) ela conseguiu fugir e promover missões para resgatar escravos.
Anna J. Cooper, por sua vez, foi uma das maiores e mais importantes professoras negras dos Estados Unidos. Depois de receber seu PhD em História pela universidade de Paris, Anna Cooper se tornou a quarta americana a chegar ao doutorado.
Todo o seu esforço ganhou um dos arranjos de maior sensibilidade e leveza do disco. Uma peça que mostra como o som desse combo muda o tempo todo. Mostrando-se hora melódico, hora intenso, quebrado ou Funkeado, a tônica dessa gravação é o vigor dos metais e a flexibilidade que os músicos possuem dada a estrutura da banda.
Em temas como “My Queen Is Angela Davis”, por exemplo, é inviável não ouvir o som e refletir sobre o papel dos instrumentos.
Angela Yvonne Davis é uma professora e filosofa americana. Na década de 70 seu nome rodou o mundo graças aos seus esforços para a conquista de direito para as mulheres, além de lutar contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos.
Em “My Queen Is Nanny Of The Marrons”, por exemplo, o arranjo invoca os clássicos Spirituals da IMPULSE! e presta contas à Nanny Of The Maroons, retomando as influências jamaicanas de “My Qeen Is Mamie Phipps Clark”, dessa vez apenas com mais leveza e uma suave linha percussiva.
Nanny Of The Maroons foi uma das mais populares líderes quilombolas jamaicanas, que eram conhecidos como “Marroons” no período (século XVIII).
Faixa após faixa a banda joga uma nova referência nos seus ouvidos. Com a já citada “My Queen Is Yaa Asantewaa” – que conta com a participação de Nubya Garcia no sax – o grupo mostra habilidade técnica para trazer uma melodia que pulse nos intrincados caminhos rítmicos sem perder a cadência. Já em temas como “My Queen Is Albertina Sisulu”, o groove se mostra um caminho inevitável, cortesia dos carnavais de Barbados.
Yaa Asantewaa foi rainha-mãe ashanti que lutou contra o colonialismo britânico no início do século XX.
Outro elemento que vai pirar seus ouvidos são as 2 baterias. É interessante acompanhar como elas se conversam. Num dos temas mais Funkeados do disco – a sinuosa “My Queen Is Albertina Sisulu” – é notável como essa dinâmica beneficia todo o contexto do som.
Nontsikelelo Albertina Sisulu, foi uma ativista sul africana. Importantíssima na luta contra o Apartheid no país, Albertina era a esposa de Walter Sisulu, outro nome primordial para o movimento.
E para concluir toda a espinha dorsal histórica, Shabaka entrega “My Queen Is Doreen Lawrence”. Com uma das abordagens mais densas e pesadas do disco, essa faixa marca pelo retorno das vozes, com uma base que parece conectar Londres, Barbados e a herança do colonialismo com uma MPC.
É impressionante como o grupo tensiona as texturas e camadas instrumentais em cada proposta.
Doreen Delceita Lawrence é uma militante britânica-jamaicana e mãe de Stephen Lawrence, um adolescente britânico negro que foi assassinado em um ataque racista no sudeste de Londres em 1993.
Mais do que ressignificar suas próprias raízes, o Shabaka Hutchings promove seu DNA, exaltando a música negra, as minorias e as mulheres negras, sempre utilizando a música para canalizar uma revolução (quase 100% instrumental). Viu por que eu falo tanto da cena Jazz de UK? Bora compra uma tuba, meu chapa.
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