Voice Of Baceprot, banda formada por três jovens filhas de camponeses indonésios abalam o mundo do metal ao lançar seu álbum de estreia.
Em julho tive outro daqueles momentos nos quais o algoritmo das redes sociais tenta nos induzir a consumir algo, mas acaba nos dando uma dica cultural valiosa. Numa dessas situações apareceu o vídeo de uma jovem mulçumana trajando seu hijab e regaçando em cima do palco tirando um riff potente e selvagem da sua guitarra.
Lembrei imediatamente do documentário Global Metal do Sam Dum. Isso porque quando ele cai no chamado Mundo Árabe, revela o quanto o metal e todas as suas ramificações são populares entre os jovens daqueles países.
Fechados aqui em nossa bolha ocidental cristã, mesmo com a massificação da informação através da internet e das redes sociais, acabamos encastelados entre os muros da cultura de massa produzida pelos EUA.
Então ver três jovens mulçumanas fazendo metal de forma segura e apaixonada chamou atenção imediatamente. Assim como um soco no estômago, foi impossível ignorar. E as minas começaram a banda da mesma maneira como milhares de outros e outras jovens ao redor do mundo ao longo da história do rock.
Firdda kurnia (guitarra e vocais), Eusi Siti Aisyah (bateria) e Widi Rahmawati (baixo) frequentavam a mesma escola na zona rural de Java Ocidental na Indonésia. Filhas de uma humilde família de agricultores, vivendo numa região bastante conservadora de seu país, entraram em contato com o heavy metal pela primeira vez durante uma aula de música em 2014.
Segundo declarou a vocalista e guitarrista Kurnia, o metal foi responsável por fazê-la se encontrar. Reza a lenda que Ahba Erza, professor das amigas durante o Ensino Médio, “fez a cabeça” delas com Toxicity do System Of A Down. Daí em diante mergulharam nas profundezas do metal.
Erza ensinou as amigas a tocar seus instrumentos, que naturalmente as levou a formar a Voice of Baceprot. A palavra baceprot vem do sudanês, língua materna das minas, cujo significado é barulho. Então, traduzindo para nosso idioma seria algo como Voz do Barulho.
Se esta narrativa a respeito da gênese da Voice of Braceprot (fonte aqui) oferece uma visão romantizada sobre a formação da banda ou não, sinceramente, não tem a menor importância. Importa saber que fazem música politizada, bem feita, expressiva e com potencial transformador.
Sua música fala diretamente para jovens meninas ao redor do mundo, em alguma medida putas da vida quanto ao cerceamento a elas imposto pelo machismo nosso de cada dia, bem como pelas tradições religiosas e culturais que balançam mas não caem.
Embora o New Metal seja o estilo mais presente na sonoridade da banda, podemos identificar elementos do funk metal, crossover, grunge e se tiver um pouquinho mais de atenção certamente outras referências podem aparecer.
Em 2021 lançaram o Ep The Other Side Of Metalism (Live Sessions), trazendo suas referências diretas através de covers de Rage Against The Machines com a faixa Testify do álbum The Battle of Los Angeles de 199, I-E-A-I-A-I-O do álbum Seal This Album! do System of a Down e lançado em 2002, I Wear My Skin do álbum One Lie Fits All de 2003 dos irlandeses da One Minute Silence’s e Before I Forget do Slipktnot que faz parte do álbum Vol.3: (The Subliminal Verses) lançado em 2004.
O setlist deste Ep mostra claramente quais as referências da banda, não são apenas em termos de sonoridade mas de temáticas de caráter político. Retas, álbum autoral de estreia da banda trás nas letras de suas músicas temas pertinentes às novas gerações.
Um rápido parêntese. Fiquei muito curioso em saber o motivo pelo qual o título do álbum está em português. Apostaria ser por causa do Sepultura, mas é só especulação, não consegui nenhuma informação a respeito do título do álbum ser uma palavra em português.
Retas é um bom álbum de estreia, bem produzido, bem gravado, bem executado pelas minas. Em termos de sonoridade podemos considerar ser um álbum de formação. O considero dessa maneira pelo fato da construção sonora das músicas está muito ancorada nas influências das minas.
O ponto forte está nas letras. A banda parte das suas vivências pessoas para explorar temas comuns a todas as mulheres, a todas as jovens, em particular as oriundas do chamado Sul Global. Embora abordem as particularidades da repressão voltada às mulheres mulçumanas, existe uma transversalidade na temática, uma vez que a repressão é um problema compartilhado por todas as mulheres mundo afora.
A faixa 04 The Enemy of Earth Is You (O Inimigo do Planeta Terra é Você) trata das alterações climáticas provocadas pela forma predatória como as mega corporações da área da mineração e do petróleo e os grandes complexos industriais exploram os recursos naturais.
As altas temperaturas vitimaram milhares de pessoas na Europa em 2022 conforme noticiado por este site. Por todo planeta catástrofes naturais se tornam frequentes, mostrando já estarmos vivendo as consequências do desgaste do nosso planeta.
Segundo Kurnia em entrevista ao site Revolver: “Sentimos que já começamos a encarar o impacto da falta de consciência ambiental”. Questões ligadas aos recursos naturais são caras às garotas, porque sua vila na Indonésia sofre com o esgotamento das águas subterrâneas, a redução dos períodos de chuva e o aumento do nível do mar. Isso tem tornado difícil o acesso à água potável para a comunidade.
A faixa 8, School Revolution, lançada originalmente no formato single em 2022, aborda o preconceito e violência direcionados à tudo proibido pelos líderes religiosos mulçumanos. As três amigas sentiram na pele esse problema em suas madrassa (espécie de escola religiosa mulçumana), quando o diretor da instituição se referiu à música fita por elas como haraam.
A música tem partes cantadas em sudanês e inglês. Sua mensagem se refere ao fato de ser a música feita por elas uma forma de fazê-las se sentirem livres. E que os julgamentos morais a elas direcionados são maneiras de destruir seus sonhos e tornar suas almas estéreis.
O refrão diz Don’t try to judge us now (Não tentem nos julgar), um aviso de que haverá respostas a qualquer tentativa de censurá-las ou impedi-las de fazer sua música. A música fez um burburinho, ressoando forte o bastante para ganhar apoio de nomes como Flea e Krist Novoselic.
Na mesma direção de enfrentamento das imposições religiosas e culturais vai a letra da faixa 7, God, Allow Me To Play Music (Deus, Permita-me tocar música). O título é repetido inúmeras vezes em sequência durante o refrão, soando como orações direcionadas a deus solicitando sua permissão para continuarem fazendo sua música.
Denota a conduta ética das minas com relação à sua religião, o apreço por ela devido à compreensão de se tratar de um elemento característicos da sua cultura, portanto, de suas identidades pessoais. Leva-nos a concluir que o alvo consiste nos administradores das instituições religiosas, responsáveis por instrumentalizá-las e fazer delas ferramentas de controle, principalmente, dos corpos e mentes das mulheres.
A faixa 6, [Not] Public Property (Não É Propriedade Pública), ataca a objetificação dos corpos femininos. Enfatizam o posicionamento de luta contra a conversão das mulheres em simples objetos de satisfação sexual masculina.
Our body is not public property (Nosso corpo não é propriedade pública), We have no place for the sexist mind (“Não temos lugar para a mente sexista”) são versos que rechaçam esse lugar sob o qual a tradição islâmica, tão patriarcal quanto a cristã, quer aprisionar as mulheres.
Retas é uma estreia de peso, reflexo de uma sociedade pautada na violência e desigualdade social. Interessante o recorte de gênero e cultura feito pelas três, preocupadas em discutir questões que perpassam mulheres em todo mundo, a partir das suas vivências paticulares.
Voice Of Baceprot nos lembra em Retas, do poder da música enquanto ferramenta de ativismo e conscientização política. Articulando raiva e graciosidade, elas unem uma série de influências do rock clássico ao thrash e ao pop rock moderno em canções que podem muito bem representar a luta de uma geração de mulheres.
