Vinicius Terra numa viagem combativa na lusofonia, segue o trabalho de pensar e agir de modo ativo nas diferenças presentes na nossa língua!
É uma felicidade pra mim quando ouço um disco bem trabalhado, sem pressa, pensado nos mínimos detalhes para não ser um produto e sim uma obra de arte. Esse é o caso do disco Elxs Ñ Sabem a Minha Língua (2019), lançado agora em setembro pelo MC Vinicius Terra. Vivemos em uma época de mudança no Rap. Uma época que impõe um gradiente de visibilidade sobre os artistas, privilegiando determinados álbuns através de veículos de mídia de massa e algoritmos nada justos, enquanto vários ótimos discos mais underground ficam apagados, muitas vezes pelo próprio público. Em um cenário como esse é comum, embora não desejado, que artistas se enquadrem aos desejos do público e do mercado, produzindo discos com discursos óbvios e mastigados, e com prazo corrido, sem tempo de trabalhar com carinho a produção e o conteúdo dos mesmos.
Nesse prisma, discos como o do Vinícius Terra, apenas por essa preocupação artística já se tornam símbolos de resistência cultural, dentro de um ritmo que está em franca ascensão no Brasil mas que se não tomar cuidado vai ter o mesmo destino de todos os outros ritmos nacionais que tiveram seus componentes de crítica e cultura esvaziados. Mas o novo álbum do Vinícius Terra não encerra sua importância nisso, pelo contrário, esse cuidado é apenas um sinal de que o artista tem muito a dizer através de sua obra, cabe a nós escutar.
Vinícius é um dos maiores representantes do Rap lusófono no Brasil. A busca por aproximação com outros países falantes da língua portuguesa é uma constante em sua carreira. Em seu último disco ele atinge o auge desse desejo por interculturalidade e lança um dos trabalhos de lusofonia mais importantes de um artista brasileiro, no qual a união das culturas é tema central. O disco se inicia com uma ode às figuras femininas sem nome que sofreram por séculos os efeitos do colonialismo e, de um modo mais geral, com as dores causadas pela dominação e exploração que se modificaram durante os séculos, mas permanecem até os dias de hoje.
Grandes figuras femininas das diversas culturas homenageadas no disco são invocadas durante a música, a fim de representar essas mulheres sem voz. A faixa conta com a participação do duo português Lavoisier, com um instrumental cuja sonoridade lembra bastante as guitarras portuguesas, instrumento tradicional característico dos fados e das modinhas lusitanas. Na passagem para a segunda faixa surgem os sons das palmas e da percussão, mostrando a diversidade musical presente nos países de língua lusófona, tendo a África como raiz cultural.
A música, chamada Cafuso, apresenta uma invocação à luta de maneira unida contra a exploração e morte representadas pela lama, algo tão simbólico para o povo brasileiro no contexto dos acontecimentos em Mariana e Brumadinho. E é assim, através do pedido de benção e da chamada à luta que se inicia essa poesia épica musicada na qual o poeta narra a busca por integração e troca entre as múltiplas culturas dos povos de língua lusófona como forma de resistir às opressões particulares a cada povo e aos problemas gigantescos que temos em comum.
Um dos pontos altos do álbum é o dinamismo dos instrumentais que transitam entre a sonoridade suave e melancólica da música portuguesa, os tambores tão característicos das múltiplas culturas presentes na África e de suas ramificações, cujo ponto alto no Brasil tem como representante a Bahia, e o tamborim e o violão de 7 cordas tão atrelados ao Choro e ao Samba carioca, todos eles mesclados aos nossos tambores modernos das bases de Rap.
Esses múltiplos elementos que compõem tão bem a sonoridade do disco mandam um recado implícito de valorização às diversas culturas, sem que haja uma hegemonia entre os ritmos. Essa falta de centralização em torno de uma cultura dominante é por si uma posição importante. Nós conhecemos como ninguém o discurso vazio de integração multicultural e racial que no fim das contas termina por descaracterizar as culturas originárias e rebaixá-las a uma cultura dominante europeizada ou americanizada. Vinícius, pelo contrário, evoca uma integração real das múltiplas culturas como forma de resistência e de luta contra as inúmeras violências que nossas quebradas sofrem diariamente.
As participações também mostram muito da intenção do artista. Ele montou um time de peso com grandes nomes da música lusófona. Além do já citado Lavoisier o álbum conta com as participações dxs portuguesxs Dino D’Santiago, Keso, Maze, Denise e Mynda Guevara, dxs moçambicanxs Azagaia e Selma Uamusse, da guineense Karyna Gomes e dos brasileiros Dexter, CHS e Akira Presidente. Elxs Ñ Sabem a Minha Língua mostra como a mutação da língua portuguesa através das influências linguísticas dos povos originários brasileiros e dos diversos povos africanos que passaram pelo processo traumático da tentativa de colonização provocou o inverso do que os colonizadores desejavam.
No início da comercialização de escravos para fora da África no século XVI a língua desempenhou um papel de dominação muito eficaz. Como as diferentes etnias africanas possuíam linguagens diversas, uma prática comum entre os escravistas era misturar africanos de diferentes etnias e proibir as tentativas de comunicação para desestimular possíveis formas de organização. No entanto, com o passar do tempo e da incorporação dos diferentes idiomas a língua se tornou mais um fator que permitiu unir diversos povos em prol de uma noção de resistência cultural e desenvolvimento artístico, tendo a música e a literatura como dois grandes expoentes dessa junção e influência mútua entre os povos, ainda que de forma tímida. Aliás não só a língua, como expressão canônica de comunicação, serviu como forma de integração, como também as gírias e dialetos que permitem uma comunicação e organização estrita daqueles aos quais o discurso é necessário, confundindo os “novos colonizadores” presos às formas rígidas da língua. Isso fica expresso nos versos do Dexter, quando ele fala sobre o quanto o Hip Hop o fez crescer como ser humano e no fim diz
“Tenho sim desejo de paz como Azagaia, Guevara e Terra
Mas não se iluda, também tô preparado pra guerra!
Me tornei um cavalo selvagem, te decepcionei
Você não sabe a minha língua, né?! Mas a sua eu sei!”
e nos versos de Azagaia que representam essa tomada da língua portuguesa no sentido de ressignificação para unir os povos contra o dominador
“Quando cospem o seu rap revolucionário, Não entendem porque a África é que escreveu o dicionário. E se mandarem pra América outro Cristóvão Colombo, Vamos tirar-lhe a língua pra se falar num quilombo”
O Hip Hop por si só já possui essa característica de união entre povos como algo intrínseco ao seu papel cultural e, atrelado ao idioma, permite uma ligação e troca de experiências que põe medo em qualquer ente de dominação, seja do capital ou da hegemonia cultural. É extremamente irônico que uma cultura popularizada no país que mais representa essa noção de hegemonia, como os EUA, e uma língua europeia originalmente de colonizadores, como a portuguesa, se fundam para desempenhar um papel de resistência a essas dominações. Mas é exatamente disso que se trata o disco do Vinícius Terra.
Vinícius utiliza bem a metáfora camoniana retratada nos Lusíadas sobre o ímpeto humano de se lançar no desconhecido para enfrentar seus medos e seus inimigos aparentemente mais poderosos, representados na obra de Camões pelo gigante Adamastor, para aludir à possibilidade de comunhão entre os guetos de diversos países lusófonos para se oporem aos nossos problemas em comum como o racismo, a fome, a violência e a opressão, mas também para tomar o protagonismo da produção cultural e criar um laço que atravessa o Atlântico, entre artistas e públicos de diferentes realidades trocando experiências e vivências através da arte. Em suma, além das figuras óbvias de opressão, os obstáculos a essa aproximação e ascensão cultural são os nossos Adamastores. Essa imagem é tão forte na obra que a capa do disco é a representação da figura do gigante mítico em chamas.
Acima de tudo o disco do Vinícius é o trabalho de um professor que entende que a cultura e a comunicação através da língua e de suas particularidades são forças de resistência e de luta que têm o poder de unir as quebradas do Brasil, de Angola, Guiné Bissau, Portugal, Macau, e mesmo as outras quebradas do mundo não tocadas pela língua portuguesa mas pela cultura universal do Hip-Hop.
-Vinicius Terra em uma viagem combativa na lusofonia!