Estudando o Frevo com o Maestro Spok, da SpokFrevo Orquestra

Uma das atrações do festival Rec-Beat, o maestro Spok conversou com o Oganpazan antes de show na edição 2021 do festival.

O Frevo é uma das manifestações mais pungentes da cultura popular brasileira. Tão rica e profunda, é fruto de um bioma cultural riquíssimo e que explodiu na forma de duas expressões artísticas complementares: a música e a dança Frevo.

Frevo
SpokFrevo Orquestra em apresentação no Marco Zero do Recife (Foto: José Britto/Divulgação)

Uma das maiores referências no assunto, o maestro Spok, nome artístico de Inaldo Cavalcante de Albuquerque, foi uma das atrações da edição online e audiovisual do Festival Rec-Beat, um dos mais tradicionais eventos da grade de shows brasileira, que para essa edição digital, teve patrocínio da Oi e apoio cultural da Oi Futuro.

Num line up que reuniu nomes de peso como Mateus Aleluia, O Terno e Céu, por exemplo, Spok trouxe um olhar focado à cultura pernambucana, com um show cinematográfico e que contou com a SpokFrevo Orquestra, tocando com o time completo de 17 músicos

A apresentação foi gravada no marco zero, um dos espaços mais marcantes da caravana carnavalesca pernambucana e a força do set reafirma a vitalidade da nossa própria cultura. Com tantos anos de Carnaval nas costas, o Oganpazan foi direto na fonte pra entender um pouco mais sobre as raízes do Frevo para conseguir contar essa história com a precisão histórica que a música – e neste caso também a dança – merecem.

O som da orquestra passei e incorpora diversos outros subgêneros brasileiros, viajando do Oiapoque ao Montreux Jazz Festival, sem nunca se esquecer de sua origem. Tem Jazz? Claro! Mas é Brasil papai, é o Frevo e com a palavra, Maestro Spok, senhoras e senhores.

Guilherme Espir (Oganpazan): Naná Vasconcelos me disse que o primeiro instrumento é o corpo. Pensando no Frevo, gostaria que você me falasse sobre a importância do corpo no som do Frevo, além da dança.

Que pergunta complicada, rapaz. Na verdade os meus primeiros instrumento foram as sensações e o corpo está dentro de tudo isso.

O meu pai era apaixonado por manifestações, festas, cultura popular e ele me levava pra ver e ter contato com todo esse universo.

O meu instrumento fora o corpo era ser um violeiro, mas da cultura popular, repentista, poeta popular mesmo, esse era o meu sonho.

Isso é muito presente na minha vida, isso e Luiz Gonzaga. Saindo disso, até a adolescência, o som que eu escutava o ano todo era dessa cantoria popular e principalmente Luiz Gonzaga. Acho que eu deixaria de ser músico e me tornaria um poeta popular, é tudo que eu mais ouço na vida. A minha relação vem dessas manifestações populares e o meu corpo está nesse contexto.

Guilherme Espir (Oganpazan): Mestre, visto que hoje existe muita informação errada na internet, gostaria de ouvir de você, músico natural de Pernambuco e conhecedor de tantas histórias locais, um pouco sobre a história do Frevo. O que você falar sobre isso?

Maestro Spok: Não me chame de mestre, menino. Eu sou só Spok, mestre é o Naná!

O Frevo está na vida do pernambucano. No meu caso, eu comecei a tocar saxofone, isso falando como instrumentista. Uma criança que toca sopro e percussão em Pernambuco já é jogada nas ruas pra ter a vivência do Frevo.

E olha, se o povo tem essa conexão, o músico tem ainda mais. No meu caso, a minha relação com o frevo é espiritual, sagrada mesmo. Eu observo sempre e tenho o Frevo como um amuleto perto de mim… Quase como uma proteção e sobre o surgimento, bom, historicamente falando, ele surge no início do século passado, final do 19 entrando no 20.

O Frevo surge em função do que se tocava na época. Musicalmente falando, ele bebe dos subgêneros que as bandas tocavam. Nesse tópico eu posso citar como exemplo a poca, maxixe, quadrilha, o dobrado… Dobrado é um irmão próximo do frevo, a dança nasce com a capoeira, como brincantes, mas com a função de proteção.
Aos poucos a música foi avançando, mas não existe registro, a dança foi se desenvolvendo junto e aconteceu isso, ela é uma música frevo, mas também é a dança frevo.

É proteção… Várias as vezes nós enfrentamos situações difíceis, dentro e fora do Brasil, mas o Frevo aparecia pra salvar a gente. Em todos esses momentos – até mesmo na pandemia – onde todo mundo está passando por situações duras… O frevo não está saudável como ele sempre foi… Mas ele continua nos ajudando.

Eu estou falando com você agora, justamente por causa dele. Ele nos ajuda, protege e eu respeito esse povo, essa alma, essa gente e estar por perto dessa musa me torna uma pessoa muito mais forte.

Guilherme Espir (Oganpazan): E como que fica o Jazz nesse contexto de Big Band? Como o Frevo dialoga com a improvisação?!

Maestro Spok:  Isso é muito difícil.

O Frevo surge num contexto de composição pra folia, dança… Era tocado para a diversão do povo. Eu vivi vários anos da minha focando tocando Frevo dessa forma, mas depois de viajar com Antônio Nóbrega, Alceu Valença e Elba Ramalho, por exemplo, como estudante de música – que acreditava no potencial da linguagem do frevo – e a força dele… Vendo esse potencial, nós, da orquestra, estudantes e apreciadores do Jazz, promovemos essa mescla.

O Dominguinhos fez isso muito bem, o Sivuca…. Todos eles promoveram ideias como essa, simplesmente geniais. O que a gente fez foi jogar essa ideia para orquestra, mas pensando o arranjo do Frevo, pensando em mudar o formato clássico, trazendo a improvisação dos solos, com o objetivo de entrar nesse circuito de festivais, estudando os métodos americanos.

É interessante, Guilherme, talvez o Jazz e o Frevo sejam 2 exemplos de músicas que nasceram de forma instrumental. Em termos de escola, nós somos resultado da escola europeia e americano por que era o que a gente tinha acesso. Aí criamos a orquestra e começamos a circular.

Com foco na sua pergunta, pensando na questão do Jazz e os elementos de improvisação dialogando com o Frevo, acredito que o que a orquestra faz é um som Jazzístico, em função da liberdade. Só que quando atacamos o Frevo, na hora da improvisação, é aí que aparece o nosso principal trabalho, que é conseguir propor possibilidades musicais numa escola sistemática para que o músico possa praticar a improvisação dentro da sua linguagem.

Só que a abordagem propõe isso sem ter que usar o livro de fulano e ciclano, sabe? Vamos usar o livro de Dominguinhos, o livro do Sivuca… Nós interpretamos a linguagem dentro da improvisação.
É um frevo jazzístico, é uma orquestra, em termos de formação, como as orquestras americanas. Só que a parte da estrutura, melodia, questão harmônica, de orquestração,  é sempre pensando também na dinâmica, tomando o máximo de cuidado com a execução tocada e escrita.

É muito legal ver a sua preocupação com a história do Frevo.

Acho que os mestres não estão tristes.

Com certeza não estão.

Guilherme Espir (Oganpazan): Pensando nos estudos da orquestra, nas fusões brasileiras que vocês fazem, como vocês conduzem essa pesquisa tão rica que é plano de fundo histórico desse som?!

Maestro Spok: É importante valorizar isso, Guilherme. Absorver, entender, estudar, pesquisar… desenvolver essas linguagens, por que Pernambuco é um lugar onde muitas coisas nascem. Eu tenho as paisagens todas dentro do meu corpo, sabe? Nasci aqui, sou brasileiro e nordestino. Eu não posso, nem quero de forma alguma me afastar disso.

Quando toco um baião de Luís Gonzaga – pois ouvi muito a música junina e carnavalesca – sei o que é um gado ajoelhado de sede e de fome. Sei o que é um músico na quarta-feira de cinzas com o instrumento sem case, uma cerveja quente na mão, triste por que acabou o carnaval.

Esses quadros estão dentro de mim e essas paisagens me fortalecem em cada sopro. Eu busco elas e as conheço, as manifestações estão presentes. Essas coisas são importantes pra que você se fortaleça frente a todo cenário de um povo e de um lugar. Elas importam pra minha vida e minha alma e acho que você deve – se possível – estar por perto dessas verdades e desse sotaque, é como uma língua.

Vai atrás de um livro que toca frevo… De Jazz, Blues, música erudita… Essas coisas você acha, mas livro de Frevo não. Eu estudei Jazz com um professor que nunca foi para os EUA, mas é diferente. Você tem que ter a vivência, tem que ir pra lá falar inglês, é igual a música.

Guilherme Espir (Oganpazan): Pegando um gancho nessa questão do idioma que você menciona, como é Levar o Frevo para o Brasil e mundo, ajudando a quebrar esse estigma do samba-jazz, pensando principalmente na carreira internacional da orquestra?

Maestro Spok: Tem sido lindo, são vários sonhos realizados. É impossível dizer o que a gente vive, a gente tenta falar, mas nunca passamos tudo que já foi vivido. Poder levar o Frevo e a linguagem dos mestres para lugares distantes é e sempre será motivo de felicidade, são muitas conexões.

Agora é cuidar da escola para que as crianças tenham acesso com mais estrutura, possibilidade e argumentos do que a gente teve.

Lançamos um filme sobre os mestres do frevo, chama “Os 7 corações”. Está disponível no YouTube. É um registro sobre os maestros José Menezes, Maestro Nunes, Maestro Guedes Peixoto, Clóvis Pereira, Maestro Duda, Edson Rodrigues e o caçula, Ademir Araújo.

Fizemos outro filme também, o “Orquestrão”, que é sobre a maior orquestra de Frevo do mundo no palco. Encerramos o carnaval de Recife todo ano. São 200 músicos. 50 trompetes, 50 saxofones… Consegue imaginar isso?

A gente vai lançar a qualquer momento também, mais um filme, o “Do Frevo ao Jazz” que é sobre a nossa ida aos USA pra tocar em salas de concerto, entre elas a Lincoln Center. O filme também retrata a vinda do Wynton Marsalis pra cá.

O enredo conta sobre a nossa ida pra lá e a vinda deles pra cá, junto com o Wynton, pra tocar em Recife. São 4 capítulos com duração de 25 à 30 minutos cada. Acabamos de soltar um play along também que chama “Solando Frevo”, reunindo 11 clássicos do Frevo com partitura para todos os instrumentos, todas harmonizadas, articuladas e com a base da nossa orquestra pra você solar e improvisar.

Nós estamos cuidando da sistematização disso tudo. O próximo passo é lançar métodos para os instrumentos, ensinar o Frevo e mandar para as escolas do Brasil e do mundo

Guilherme Espir (Oganpazan): Pensando nos estudos da música, nas fusões brasileiras presentes no som da orquestra, como vocês conduzem essa pesquisa tão rica e que é plano de fundo histórico desse som?!

Maestro Spok: Guilherme, eu acho que se a gente não tem formação hoje, imagina no século passado. Enquanto os americanos se preocuparam em guardar, registrar tudo, a gente estava preocupado com outra coisa e não registramos e cuidamos, sabe?

Precisa ter o desejo e o amor junto do que queremos fazer. É a crença na força da alma do povo, como eu sempre falo. Acreditem no poder da fora do seu lugar, acredite nela, trate com muito cuidado. Respeite, observe e trabalhe, por que o caminho será menos difícil e mais prazeroso. Não se afaste da força cultural do seu povo.

Guilherme Espir (Oganpazan): Muito obrigado pela atenção, Spok, foi uma honra e um grande aprendizado. Pra fechar eu queria que você falasse um pouco sobre o Wynton. Tocar ao lado dele e a Lincoln Center Orchestra deve ter sido maravilhoso.

Maestro Spok: O Wynton é genial, mas também é um cara que faz por onde demais. Possui uma disciplina que nunca vi igual, é também um grande incentivador. Ele estudava dentro do carro que levava ele pra almoçar.

Chegou ao ponto que ele pediu pra tocar um frevo com a gente. Levei a peça pra ele de manhã e o show era de noite. Nessa composição tem uma frase de trompete na segunda parte q é bem complicada e teve uma cena muito bonita envolvendo essa música.

Claro que todos os trompetistas da orquestra são fãs do Wynton, especialmente. Ele tem Grammy no erudito e no jazz, então você imagina como eles ficaram felizes com essa oportunidade de tocar com ele aqui no Brasil.

Teve uma hora que ele veio me perguntar como tocava a frase que eu comentei e eu chamei os músicos pra explicar para o Wynton como tocar. Foi muito engraçado por que um deles me olhou e disse: Para Spok, você está querendo me dizer que Wynton Marsalis não conseguindo tocar isso?

Eu e eu digo: Não! Vai lá explicar pra ele como conduzir a frase… Foi um momento muito especial pra eles e Isso diz muito, Guilherme. Isso demonstra uma humildade e uma sensibilidade muito bonita. Estavam lá os nossos 4 trompetistas ensinando a frase para os 4 trompetistas dele.

Ele faz um diário sobre a rotina e o dia a dia dele com a música. Quando foi falar cobre a passagem por aqui, disse que pra tocar o que ele tocou com a gente, precisaria estudar por uns 3 anos.

A orquestra dele ia dar uma oficina, mas ele pediu uma sala depois de um ensaio bastante cansativo que a gente teve. Algum tempo depois eu passei pelo corredor e lá estava ele sozinho, estudando e tirando o som devagar, justamente pra sair da forma mais limpa possível. Ele ficou 1h tocando devagar e quando pegou o carro pra almoçar, foi o caminho todo cantarolando a melodia…. É muita disciplina. É impressionante.
É inspirador, motiva você a ser melhor, sempre.

Assista ao vídeo completo com todas as atrações logo abaixo ou se preferir, busque o conteúdo no canal do YouTube do festival.

 

Mais entrevistas sobre jazz no Oganpazan:

Entrevista com Paula Valente da Jazzmin´s  

A Força Feminina do Jazz 3: Cecilia Wennerström

Articles You Might Like

Share This Article