Spock MC – O Caminho, a Verdade e a Vida no Hip-Hop #um

Spock MC, lenda do Hip-Hop e sua Literatura Interior faz 10 anos. O EP de estréia volta a internet e fizemos uma entrevista com o artista! 

Spock MC O Caminho

Existem muitas formas de se destacar em algo em que nos envolvemos e amamos, mas certamente aqueles que dão sua vida, que se entregam de corpo e alma à música sabendo qual é o seu lugar em tal contexto, serão lembrados. Não estamos falando aqui do “efeito midiático”, mas de quem viveu e vive certa cultura, esses certamente deioxam marcas profundas e serão lembrados. E nesse sentido quem viveu e vive a cultura hip hop em Salvador, nunca desconhecerá o nome de Spock MC, pelo legado que deixou e que temos o prazer de trazer a tona aqui, com uma entrevista em duas partes e o relançamento do seu EP de estréia: Literatura Interior(2010).

Quem faz da cultura hip-hop sua forma de se religar com o mundo, àquela forma de encontrare produzir conhecimento acerca da realidade em que se vive, conhecer o trabalho e o legado de Spock MC é fundamental. Fundamental por dois motivos: Excelência e Memória. Não é desconhecido de quem viveu o hip-hop baiano que Spock foi um dos maiores, quiçá o maior e melhor MC surgido no extremamente qualificado Rap baiano. Lembrar dele, é reconstruir a história do rap soteropolitano, do hip-hop baiano ligando pontos que são de uma riqueza imensa. 

Só podemos aqui apontar essas ligações, tecer brevemente algumas considerações que pensamos ser essenciais para se compreender a enorme potência de um artista hoje afastado do cenário, mas ainda assim núcleo fundamental de uma série de acontecimentos. O Literatura Interior (EP), lançado há 10 anos atrás pelo MC de São Caetano, contando com 7 capítulos é um documento histórico dos mais importantes da nossa cena, foi através dele que tivemos um primeiro contato com a obra do Spock MC.       

A Verdade

A rua se conhece e escutando Literatura Interior (2010), fomos tomados por um flow e por rimas tão bem costuradas com a ideia expressa no título que dificilmente – se não tivermos opacos já – seremos o mesmo. Como as grandes obras de arte, Literatura Interior (2010), nos transforma e nos remete a uma riqueza de conexões muito grandes. Conexões que ligam a cena de São Caetano, a banca SCP, Preto Seda e o falecido Praga, as festas da Freedom Rec Soul (DJ Leandro), Quilombo Vivo, 157 Nervoso e etc… 

Combativo, agressivo, original e ancorado em todas as raízes do rap entendido como expressão da cultura hip-hop, o EP de estréia e o único registro físico de Spock MC solo, Literatura Interior (2010) é um dos maiores documentos do hip-hop nacional. Uma série de músicas que carregam uma força absurda e que endossa os diversos relatos sobre quem foi esse artista em seus tempos de atividade na cena.    

Rimas e batidas que ali no período de virada do rap nacional para uma linguagem mais underground conseguiu uma expressão estética em altíssimo nível de formas das mais novas e originais, ao mesmo tempo em que fincou uma bandeira de resistência criada pela admiração e pelo conhecimento da geração anterior. É importante aqui marcar que Spock nesse sentido representa outros grandes artistas que eram seus parceiros e que formaram um modo próprio de fazer rap no Bahia.

A turma que representa o que hoje é conhecido como São Caetano Resistência. composta por uma série de nomes como Betinho, Gringo, Bruno Suspeito, Aliem MFV, Gomez, Haggar, Praga, Preto Seda, Kiko MC, Trevo e Baga. Essa turma que aqui misturamos de propósito em gerações diferentes, e em breve resumo, conseguem em seus trabalhos mostrar porque São Caetano é reconhecido como um dos pólos mais importantes do rap baiano.

Um pólo que esteve sempre em contato com outras localidades importantes da cidade, sendo celeiro e local de confluência das diversas outras quebradas da cidade. Literatura Interior (2010), contou com o apoio fundamental de DJ Indio Vitrola, peça da mais alta importância para o Hip-Hop baiano, que produziu a maior parte do disco. Um EP que conjuga toda a forte tradição e as mais recentes inovações técnicas, além da inventividade, com as rimas e o flow pesado de Spock e o comando das picapes de DJ Indio.

Spock Mc e DJ Indio Vitrola, fizeram algo histórico na marra, na vontade, no amor e expressando verdades que resistem a passagem do tempo. A participação do grafiteiro, tatuador e MC Baga, parceiro de Spock no coletivo SCP é um fechamento perfeito para tudo que dissemos até aqui. Além de tudo isso, Literatura Interior é também fruto da amizade entre Spock e Rapadura, evento histórico ocorrido pela vinda do MC cearense para Salvador onde morou por um tempo.  

A verdade de rimas que expressam ideias ancoradas numa caminhada limpa, firme e verdadeira ficam evidentes quando se pergunta quem foi Spock a quem o conheceu. Interlúdios, rimas, idéias, batidas, scratchs, flows, somos levados a visão de uma obra onde música, arte e vida não tem um milímetro de distância um do outro.

Visões políticas, raciais, a retórica utilizada, o flow sacado da manga, os samples riscados, e sobretudo como isso está amalgamado numa crítica ao mercado e ao público alienado. A construção de uma resistência do que se entende como  real cultura hip-hop é algo poucas vezes escutado com tanta qualidade. Criando assim uma narrativa literária em primeira pessoa, através de técnicas originais e imagens criadas a partir de suas vivências e influências, numa produção memorável feita literamente na raça. 

Spock MC A Vida

Como muitos ressaltaram durante nossas pesquisas sobre Spock MC, estamos diante de um homem que além da grandiosidade artística indiscutivelmente reconhecida, é um verdadeiro gentleman. Um cavalheiro que nos atendeu generosamente, e respondeu às perguntas com riqueza de detalhes. Sendo assim, não pudemos suprimir absolturamente nada do que nos foi contado dada a importância dos relatos e de suas minúcias. Dividimos a entrevista em duas partes, e esperamos que você leitor do Oganpazan, não desperdice nenhuma palavra, nenhuma das histórias que agora temos a imensa honra de apresentar. Conhecer e se aprofundar também é divertido!

Oganpazan – Como você começou a fazer rap, qual o seu contato inicial com a cultura hip-hop?

Spock MC – O primeiro contato com a cultura hip-hop foi através do grafite, ainda muito jovem – por volta de 14, 15 anos -me despertou atenção os muros grafitados e a própria pixação, e é lógico né? isso me levou diretamente a um mergulho na cultura hip-hop onde a música rap me encantou. Eu me lembro que eu tava ouvindo uma rádio e tocou uma faixa do Tupac, e quando eu ouvi foi um encanto, nossa aquilo ali me deixou muito entusiasmado e eu comecei a pesquisar sobre rap. Eu me recordo que no “largo da geral” em São Caetano tinha um camelô que vendia fita k7, eu juntei um trocado e lá eu encontrei três fitas de álbuns e me recordo até hoje que comprei: Baseado nas ruas do DJ Rafa e Consciência Humana, e não lembro qual foi o outro.  

E nesse processo aconteceu o despertar da escrita né, na verdade Deus nos dá essa graça de ter um dom e ele começou a despertar, aí comecei a escrever as primeiras linhas, ainda desorganizadas. Logo em seguida surgiram as amizades, eu fui conhecendo a galera das áreas que curtia também, Preto Seda, o finado Praga, e a gente começou a fazer improviso e nesse período o DJ Leandro (Freedom Soul Rec) ele fazia muitos eventos num casarão na Massaranduba, e começaram a surgir os primeiros convites. Aí fui dando continuidade nessa caminhada, segui escrevendo, as gravações ainda eram muito precárias, e sendo assim nós escrevíamos para ter o que cantar nos shows. Nesse sentido era uma período formidável para o improviso que desde o início eu sempre gostei e mergulhei a fundo.  

Oganpazan . Conta um pouco pra gente como era a vivência no hip hop em São Caetano nesse período.

Spock MC – Pra mim era algo mágico e único, respeitando a todas as outras comunidades mas São Caetano era uma imensa efervescência quando se trata de cultura hip hop, porque a gente incorporava o hip hop no sentido mais pleno como cultura, então a gente se envolvia muito, era como se fossem personagens reais: a forma de falar, de andar, de se vestir, os trejeitos, tudo isso era bem real, era um personificação de tudo que rolava no rap internacional. Nós passamos muito tempo com essa influência, claro que com a nossa essência de Bahia, de Nordeste, mas a gente sempre teve isso. Era evidente isso na nossa forma comprtamental. 

São Caetano sempre foi celeiro de improviso, de grafite, vinha muita gente de fora, eu me recordo que houve momentos que na quadra do São Caetano sem nenhum recurso, sem nada, microfone, caixa, nada, nós passávamos horas e horas fazendo freestyle. Isso começou a repercutir no entorno e começou a vir gente de outros bairros interessados em viver aquilo com a gente, e era muita gente ao ponto de lotar a quadra. Eu vivia pra isso intensamente, havia dias em que eu fazia duas horas de improviso. Boas recordações. 

Tivemos uma grande importância formativa naquele período, muitos que viriam depois paravam ali e viam a gente falando, improvisando, construíndo, e muitos se influenciaram e formaram grupos. E não só no hip-hop, porque São Caetano sempre foi muito eclética culturalmente com punk, com reggae, e a gente se misturava.   

Oganpazan – Como ocorreu o surgimento da banca SCP?

Spock MC – Eu junto com Preto Seda E Praga a gente eve a ideia de fazer um coletivo de Mc’s tendo como referência clara o Wu Tang Clan, e passamos a escrever coisas juntos e pensamos: – vamos dar um nome a isso e vamos começar a fazer na rua. Nossa casa era a rua, nunca houve pretensão assim de preparo, SCP sempre foi tudo muito a base de improviso, só que no caminho a gente terminou se dividindo. A SCP ficou sendo uma bandeira, pois Seda deu início no Afrogueto, Praga tava focado nas coisas dele, e eu comecei a colar com a 157 Nervoso. Logo após veio a segunda formação, que já foi em outro período. Nesta segunda “formação” nós já tínhamos intenção de gravar, de fazer shows, e aí colaram Baga, Betinho, Filó e Aladin.

Spock MC
Foto por: Fernando Gomes

Oganpazan – Qual era a sua missão dentro do Rap? Quem entra em contato com sua arte, vê o quanto o “Artivismo” era uma constante em sua letras, explica um pouco essa questão.

Spock MC – A missão sempre foi ser a voz, o rap me deu a oportunidade de poder fazer o que poucos outros jovens da minha idade conseguiram. Então quando você tem a oportunidade de falar você pode mudar muita coisa, por isso o cuidado de não falar qualquer coisa, de não influenciar de forma errada, de falar o que se pensa mas não de qualquer jeito. 

É algo muito louco, porque eu sempre escrevi com o desejo muito grande de trazer algo que mexesse com o íntimo das pessoas, que não fosse algo fugaz, algo vazio, mas que eu conseguisse preencher as pessoas com uma mensagem rica e ao mesmo tempo simples, embora algumas vezes mais complexo. Porque nem sempre dá pra gente ser tão claro no que queremos passar,  pois nossa mente trabalha muito, às vezes a gente acumula muita coisa, e precisamos liberar isso. e às vezes liberamos aquilo de modo não tão simples. Mas também, isso pode levar as pessoas a ouvir e querer meditar sobre. 

Eu nunca gostei de nada tão fácil, quando você pega um instrumento você precisa se dedicar bastante para que as notas e os acordes fluam, e eu sempre pensei que o rap era muito grande pra mim. Eu precisava estar à altura dele, e isso me levou a sempre querer fazer algo que tivesse uma mensagem, eu sempre me preocupei com uma mensagem que pudesse influenciar e impactar, porque eu sabia que eu estava sendo a voz de muitos jovens ali, meninos que não teriam essa oportunidade. E eu quis fazer disso algo não somente inovador, mas que trouxesse realmente um impacto, que viesse a influenciar o presente e as gerações futuras. 

E hoje eu estou tendo essa oportunidade de dar essa entrevista porque o que eu plantei lá atrás hoje tá tendo um certo impacto na vida de algumas pessoas. Então a missão foi sempre ser a voz, sempre saber o que falar, como se expressar, sem ferir, sem atacar ninguém mas fazendo um bom uso do rap com tudo que ele oferece. Foi assim no palco, foi assim nos improvisos, foi assim nos estúdios, no dia a dia nos diálogos, essa foi a missão.          

Oganpazan –  Quem mais lhe influenciava dentro do Rap, na construção do seu flow e do seu ataque, da sua lírica que conseguia unir uma agressividade limpa, nítida e bastante objetiva apesar de complexa.

Spock MC – Essa construção comigo foi algo bem espontâneo, na verdade eu sempre gostei de ouvir muita coisa, nunca tive uma preferência clara por determinado estilo, embora a minha linha sempre tenha sido a coisa suja mesmo, o underground, que é o que eu sempre me identifiquei. Na minha linha de escrita sempre teve um peso muito grande as influências estrangeiras. E isso é até hoje, minha esposa por exemplo gosta muito de black music, então temos influências pesadas de soul e R&B e eu sempre curti. 

Ainda muito criança eu gostava muito de Michael Jackson, então quando eu conheci o rap americano me impressionou muito a facilidade que eles tinham, apesar da barreira linguística, me fascina a forma como eles construíam os flows, a parte criativa sempre foi algo que gostei. E o Big Pun sempre me interessou, hoje eu vejo o filho dele destruindo – o Chris Rivers – o Wu Tang Clan sempre foi evidente, mas principalmente o Ghostface Killa que era o meu preferido. Big Pun e Ghostface Killa foram os dois que me trouxeram um peso para buscar melhorar.

Eu lembro que peguei com Juno – ele e DJ Bandido do Quilombo Vivo colecionavam muita coisa – o primeiro disco do Ghostface Killa, e eu fiquei aterrorizado, eu fiz uma fita e colocava no walkman e saia pela rua parecendo um louco. Hoje tá muito mais tranquilo mas na época éramos vistos como loucos.

E aqui no Brasil eu sempre gostei de muita coisa, o rap carioca, aquela equipe do Marechal, Shawlin, eu sempre gostei desses caras porque eu sempre achei eles muito eficientes e eu sempre gostei dessa coisa mais pra frente que exigisse uma construção. Mas boa parte da minha influência foi de fora. Eu sempre gostei muito de MPB também, mas o rap americano me trouxe um despertar para amadurecer, para me auto confrontar, para eu me conhecer, para que eu realmente soubesse qual era o meu perfil de MC.

Porque no palco eu tinha aquela referência né? A galera falava: – pô Spock manda bem, mas eu queria trazer para o meu conhecimento essa parte vocal bastante clara. E isso me surgiu até rápido, porque eu passei a escrever quando surgiu a fase dos estúdios e foi aí que eu passei a me ouvir, isso foi ficando cada vez mais claro, porque até então você escrevia, ia pro palco mas não se escutava. 

E eu costumo dizer que eu sou bem criativo, pois eu ainda escrevo, sempre escrevo a caminho do trabalho, e eu gosto de escrever coisas distintas, em bases mais pesadas ou em bases mais leves, em diferentes estilos. Eu gosto de me adaptar para ver o que sai, pra poder me escutar, para poder me ouvir.

Então essa parte de construção me surgiu de modo natural né, até por acreditar né… eu não gosto de falar muito nesse sentido, eu não gosto de enaltecer nada meu, mas eu acredito que é um dom que Deus me deu e nessa parte sou autodidata, mas a influência tem peso sim, porque tem muito monstro por aí, tem muito cara bom que você ouve e aquilo traz peso, traz inspiração, vontade de fazer, de manter a chama do bagulho acessa, viva.

Continua…

Em breve publicaremos a parte dois dessa entrevista, fiquem atentos e clica no sininho do site e nos siga nas redes sociais para não perder nada. Abaixo escute o clássico Literatura Interior (2010) do Spock MC que ele nos cedeu a oportunidade e a honra de relançar!         

-Spock MC – O Caminho, a Verdade e a Vida no Hip-Hop #um

Por Danilo Cruz 

 

 

 

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