Senhorita Morello, se quer ensinar precisa aprender!

Senhorita Morello: O rap como gênero musical é livre para que todos apreciem, mas como parte da cultura hip hop precisa de mais aprendizagem 

https://www.youtube.com/watch?v=vhowIA4q9ho&fbclid=IwAR2aKVyc4cab2ezxDP4Kno1n4uzQmFc2CYNdzCQ56-a8rGpdLWDRAdjN_NY

“Interseccionalidade é uma encruzilhada pra Exu nunca mais comer marxismo”.  Carla Akotirene

 

Recentemente um dos pilares da cultura hip-hop esteve num clipe com a filha do Fábio Junior. A artista que herdou o DNA talentoso da sua familia, assim como seu irmão Fiuk, resolveu agora fazer música, Cleo Pires escolheu Mano Brown como ator para o seu video clipe. Convite prontamente aceito pelo rapper, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos, e certamente a figura viva mais importante da cultura hip hop, que atuou como par romântico da cantora de ocasião.

Tal episódio gerou manifestações por parte de uma grande e significativa parcela das muheres negras que compõe a cultura hip hop e a militância anti racista e feminista negras. Dentre essas manifestações Nerie Bento, assessora, produtora e integrante da Frente Nacional Mulheres no Hip-Hop, fez um texto pontuando quais os problemas que o clipe traz, sob a perspectiva da industria musical. Chamando atenção para o fato de que Mano Brown, até então nunca tinha participado de uma música, clipe e/ou convidado uma mulher negra para trabalhar em suas músicas ou vídeos.  A professora do departamento de Letras da UFBA e poetisa Livia Natalia, também se manifestou pelas redes sociais, tecendo criticas pertinentes. 

E qual foi a reação da senhorita Morello que habita dentro da branquitude de esquerda? Como podemos ver no vídeo acima, a intenção foi deslegitimar com uma tranquilidade assombrosa, uma luta que no ponto de vista da jornalista não interessa, a saber, pautas raciais. No fundo da esquerda branca brasileira, e de muitos brancos inseridos em culturas negras, mesmo que apenas em sua vertente artística e musical, dorme uma senhorita Morello.

Personagem da série Todo Mundo Odeia o Chris, ela é aquela professorinha que mascara seu racismo entre afagos e censuras. A senhorita Morello que mora no âmago da branquitude, acorda em momentos onde é preciso tirar a atenção, ou regular o debate centrando-o em questões mais “importantes”.

A fala da jornalista Nathalí Macedo diz com todas as letras, a questão racial não é uma necessidade real das massas. Ela tem a certeza que a academia branca lhe incultou, de que os problemas ressaltados pelas mulheres negras que se manifestaram, não são importantes. Tecer críticas a Mano Brown, sob a perspectiva da afetividade da mulher negra, da invisibilização das mesmas, seria um exemplo – talvez escuro demais – de problematizações chiques, de acordo com a jornalista. Isso não importa, isso não interessa.

Por sua vez, o jornalista, comunicador e youtuber Ronald Rios, proprietário de um dos grupos sobre rap mais ativos dentro do facebook, o Rap Cru (nome de seu programa de rap), teve coincidentemente uma atuação parecida diante do caso. Só que não ficou apenas em um vídeo, onde o racismo epistemológico é notório, como no caso acima mencionado.

Diante do ocorrido que dividiu opiniões dentro da comunidade do rap e da cultura hip hop, dentro de um grupo onde muitos são comunicadores, jornalistas, artistas e ativistas do movimento negro, primeiro o administrador Ronald Rios  utilizou o argumento (ou a inexistência dele): “Existem problemas maiores”. Mas depois, sendo obviamente confrontado pela ativista e produtora Nerie Bento, por algumas outras pessoas e por alguns moderadores, passou a utilizar um procedimento fácil de exclusão de pessoas que discordavam da sua forma de ironizar as pautas e comentários.

Na última sexta feira Ronald publicou um texto após algumas postagens criticando as manifestações contrárias, no Uol. Penso que é sabido, pra qualquer pessoa minimamente educada, o quanto Mano Brown é importante na cultura nacional e de que modo sua altura dispensa apoios nesse nível, e quanto sua inteligência também dispensa esse tipo de justificativa sobre ser livre.

Mano Brown alcançou uma liberdade artística que já o colocou no panteão dos deuses da música brasileira, será mesmo que isso o exime de alguma forma de critica? Aliás, é comum, dito melhor, é parte do senso comum do rap nacional, que qualquer crítica seria um desserviço. Certamente, o Mano Brown, poderia gravar um disco quádruplo com a Cleo Pires e isso nunca e em hipótese alguma chegaria perto de arranhar sua carreira musical, seu papel político e sua representatividade enquanto homem negro.

O que nos parece bastante estranho é a noção que prevê liberdade humana, e ao mesmo tempo, não tolera a possibilidade da crítica nesse caso, que diga-se de passagem é condição de nossa liberdade. Junto a uma noção infantil de que hoje o facebook é apenas um território de aparências controlado por algoritmos. Vem no bojo dessa concepção ela: a senhorita Morello.

É como se o Caruso fosse bater no Chris e a senhorita Morello dissesse: não faça isso, ele é um menino negro sofrido. Será mesmo que Mano Brown “vê bicho pra Caruso” ? Certamente esse não é o caso do Mano Brown, que tão maior se torna quanto mais enfrenta adversidades, as quais é um expert em driblar e transformar em arte. É preciso que sempre aprofundemos os nossos debates e ideias sobre as coisas que nos cercam, mas sobretudo que sejamos capazes de reconhccer nossos privilégios, nossas posições existenciais e sociais, ou seja, o nosso lugar de fala.

Em seu grupo, Ronald Rios reconheceu que deu uma bola fora, no preterimento das pretas que problematizaram o que lhes doí. Inclusive, abriu espaço em sua coluna para quem se dispôr a escrever. Da mesma forma, convidou os moderadores e as pessoas que foram expulsas do grupo a retornar.

É um episódio que deveria nos ensinar, principalmente nos nossos tempos atuais, que problemas micropoliticos e macropoliticos estão dialeticamente ligados, e que apesar do ruído na comunicação que as redes sociais produzem, as manipulações de informação e o controle não são a totalidade destas.

A produção de narrativas e de visões críticas, os diálogos respeitosos e construtivos estão por lá também, e há uma enorme disputa em curso, exatamente sobre essas. O nosso atual presidente foi eleito em grande parte pelo apagamento de seu racismo flagrante. Não seria um momento de realmente darmos um passo atrás e ouvirmos as negras, ouvirmos as outras tantas pautas que estão em curso? Sejam em problemzações vazias, em textões lúcidos, em links de matérias, em debates. É preciso que consigamos nos comunicar melhor, pensar melhor, nos aliar, ou seja, precisamos voltar pras bases como disse o próprio Mano Brown.

Ouçam as minas pretas!

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