Há 30 anos a Timbalada lançava seu clássico disco de estreia com fortes influências do samba junino e pitadas caribenhas!
“Oh dona da casa, por Nossa Senhora, dai-me o que beber senão eu vou me embora”
Afirmar que existe uma música baiana antes e depois da Timbalada, não é nenhum exagero. Porém, essa afirmação precisa ser realçada pelo forte papel desenvolvido pelos sambas juninos na transposição do samba feito nos terreiros de candomblé ou sambas de caboclo, para as ruas da cidade de Salvador durante os festejos juninos. Gerando um importante movimento que ao longo dos anos e por diversos motivos foi sendo apagado da história do desenvolvimento da música afro da Bahia.
O samba junino é uma manifestação típica da cidade de Salvador, porém o movimento de durante os festejos juninos reunir um grupo de músicos a tocar samba de roda e passar de porta em porta das casas cantando, sendo recebidos para comer e beber, possui registros também no Recôncavo baiano. Esse movimento iniciado primeiramente com poucas pessoas numa dimensão comunitária, cresce durante os anos 70, para a criação de agremiações organizadas de samba junino, que não mais passariam de casa em casa, comendo e bebendo, mas se uniam em seus bairros para desfilar, soltando fogos, com camisas personalizadas, mulheres dançando como rainhas do grupo e em grandes números.
Por pelo menos duas décadas, os sambas juninos de Salvador, foram responsáveis por serem vitrines “profanas” de músicos, muitos deles com origens e cargos de ogans e alabês em terreiros de candomblé. Ao mesmo tempo, espalhava pela cidade uma forma de se fazer samba que deriva musicalmente dos sambas de caboclo e do samba de roda do Recôncavo. Recebendo tratamentos e formas criativas diversas com desenvolvimento de convenções, de levadas, com a inclusão de instrumentos para além da formação clássica composta por timbau, tamborim e surdo ou marcação.
Eram nesses espaços criativos, espalhados principalmente pelos bairros do Nordeste de Amaralina, Garcia, Engenho Velho da Federação, Engenho Velho de Brotas e adjacências que muitos nomes de renome da percussão baiana surgiram, como também serviram de espaços de estudo rítmico para outros grandes nomes que não são oriundos do movimento. Ramiro Musotto (argentino radicado na Bahia), Valtinho (Chiclete Com Banana), Carlinhos Brown, Wesley Rangel (dono dos estúdio WR).
Carlinhos Brown do Acordes Verdes à Nova Iorque
Longe de ser o inventor ou de ter colocado o timbau de pé – pois o instrumento já era tocado deitado por afoxés – Carlinhos Brown com a sua veia criativa e pesquisadora, além da sua forte trajetória na história da música baiana e brasileira, foi o responsável por entender a força e as possibilidades que os sambas juninos continham. E a partir disso, propor com uma mescla de influências e trânsitos organizativos e estruturais, que continha como fonte, o samba junino ou samba duro, a música caribenha e o samba-reggae, uma nova forma musical percussiva.
Desde de 1979, Carlinhos junto a Tony Mola integrava a cozinha inovadora da banda Acordes Verdes que acompanhava Luiz Caldas. Antes disso, Brown já havia tido uma rápida passagem pela clássica banda de rock Mar Revolto. Do final dos anos setenta com então 17 anos até o começo dos anos 90, Carlinhos Brown alicerçou uma carreira como um dos mais importantes percussionistas e compositor da música baiana e brasileira. Acumulando “hits” carnavalescos e músicas que estouraram nas rádios baianas desde os anos 80, Brown vinha em uma crescente criativa muito forte, que o levou a ser percussionista e compositor de Caetano Veloso.
Trajetória que iria desaguar em um Grammy junto a Sérgio Mendes no premiado disco Brasileiro, onde o “Cacique Marrom” apresentava 5 composições das 14 faixas do disco, e no mesmo ano de 1992 na participação no disco do baixista e produtor americano Bill Laswell, Black Bahia – Ritual Beating System. Neste disco em especial, dividindo faixas com nomes fundamentais da história do jazz como Wayne Shorter e Herbie Hancock que neste disco gravam duas faixas com o Olodum, presentes no disco onde mais uma vez Carlinhos registra 5 composições, quatro delas solo, e uma delas com o batuqueiro nova iorquino Larry Clark.
O nascimento da Timbalada e o recrutamento de um exército, as referências!
No entanto, é o registro de dois discos no ano de 1988 em Salvador que nos oferece um norte entre a trajetória individual do mestre Carlinhos Brown e o exército percussivo e inovador dos timbaleiros. Segundo o professor de percussão popular da Escola de Música da UFBA Iuri Passos:
“O Samba Fama era tão forte que muitos músicos iam para lá aprender esse movimento. (Carlinhos) Brown se inspirou muito no Samba Fama para criar a Timbalada. Muitas pessoas ainda hoje acham que Brown inventou até o timbau, mas foi a partir do movimento do samba que ele chamou vários timbaleiros para compor a Timbalada”
Apesar de uma força enorme enquanto movimento cultural e musical durante pelo menos duas décadas, os sambas juninos possuem apenas duas gravações em disco. A primeira delas o disco do Samba Fama, Swingue. Lançado em 1988 é uma obra que ilumina a percepção da força percussiva contida nos sambas juninos de modo geral e como particularmente isso é transposto e está fortemente presente na formação rítmica da Timbalada. O grupo foi formado no Candeal no verão de 1991, inicialmente pelo trio composto por Cícero Menezes, Carlinhos Brown e o seu companheiro de Arcos Verdes, Tony Mola.
Grande parte das centenas de timbaleiros que viriam a formar a Timbalada foram recrutados diretamente nos sambas juninos, especialmente um núcleo duro de músicos que integrariam mais tarde a banda show. Alexandre Guedes e Ninha (Leva Eu), Coelho, Augusto Conceição e Cabo Del (Samba Fama), Careca (Unidos do Capim), Lombinho, Dum e Jó (Samba Mulatos) são apenas alguns dos inúmeros exemplos.
Neste contexto, a Timbalada se insere dentro de um cenário onde os Blocos Afro de percussão, já possuíam uma estética rítmica e musical definidas. As singularidades que diferenciam blocos como Muzenza, Olodum, Ilê Ayê e Malê de Balê eram já amplamente conhecidas em Salvador e no caso do Olodum, por todo o mundo. Logo, não cabia a um percussionista do nível de Carlinhos Brown fundar um bloco afro percussivo que não se diferenciasse totalmente dos já estabelecidos.
Assim como os personagens convocados por Brown nos sambas juninos, a formação percussiva da Timbalada é o ponto focal para entendermos a forte influência do samba junino em sua criação. Ao contrário da clássica formação dos grupos composta por: repique, tarol e surdo, a Timbalada apresenta a formação com timbau, bacurinha e marcação, com isso apresentando um som completamente novo e que iria gerar influências diretas nas percussões das bandas de axé e mesmo no que hoje é chamado de pagodão baiano.
Um primeiro aspecto rítmico musical é a diferença entre repinique e bacurinha, a bacurinha é um híbrido da mistura entre repique e tamborim, e foi inventada na Timbalada. É ao mesmo tempo uma diminuição horizontal do repinique e um alongamento vertical do tamborim. E será tocada emulando tanto um quanto o outro instrumento, com duas baquetas que ora intensificam o papel do tamborim como são utilizados nos sambas, ora se diferencia das levadas clássicas do samba reggae. A música que abre o disco de estreia da Timbalada é um excelente exemplo do que acima afirmamos.
Um segundo aspecto são as quebras do timbau, que ficam bastante evidentes para qualquer ouvido atento, e obviamente pela própria formação dos timbaleiros, são oriundas dos sambas juninos. Se o gênio criativo e organizacional de Brown se manifestou com a Timbalada foi exatamente o de perceber a possibilidade do Samba Junino em variações e conjunções com o que era feito já no samba-reggae, e na mescla com outras rítmicas.
Um exemplo disso é a faixa Mulatê do Bundê, música que abre o disco de estreia homônimo da Timbalada em 1993 onde é possível vermos ao mesmo tempo como a Timbalada faz uso das influências rítmicas oriundas do samba junino, de que modo se diferencia e ao mesmo tempo se aproxima da rítmica dos blocos afros. O começo da música traz a bacurinha em um toque clássico de chamada dos Sambas juninos, enquanto os Timbaus executam dobras de improvisação e os surdos começam a marca o ritmo, para em seguida entrarem juntos numa releitura rítmica entre o samba junino (bacurinha e timbal) e o samba reggae (os surdos).
A música Mulatê do Bundê é uma composição de Carlinhos Brown e é cantada por Augusto Conceição que é também multi-instrumentista e compositor, e um dos muitos elos de ligação entre a Timbalada e o Sambas Juninos. Filho do grande maestro Vivaldo Conceição, ensinado e introduzido pelo próprio pai no estudo formal de música, logo o jovem Augusto seria atraído pelo Samba Junino e se transformando em um verdadeiro erudito musical das ruas. Augusto Conceição começou a colar no Samba Fama aos 13 anos, em entrevista ao Rumpilezzinho em podcast, o músico nos conta a influência do samba junino nos sambas de carnaval e como estes absorviam as invenções rítmicas e de dança em suas apresentações. Assim como seria anos mais tarde referência para a fundação da Timbalada.
Uma outra faixa que também é bastante representativa das influências do samba junino na música da Timbalada é a clássica “Canto Pro Mar”. Uma faixa toda construída dentro de uma estrutura de chamada e resposta, seja na lírica, seja no instrumental potente. Começando com uma convenção de timbal que convoca uma resposta dos outros instrumentos, a faixa é comandada pelo grande mestre Ninha que puxa o imortal: “Vou pra Timbalada oia,canto pro mar” para receber a resposta do coro. A convenção que abre a faixa é uma composição do mestre Cabo Del, que a compôs quando tocava no Samba Skorpio, junto ao cantor Tatau. E assim a música inteira é construída numa conversa muito próxima de clássicos do Samba Junino!
Tendo isso em vista, não é difícil perceber que o trabalho de Carlinhos Brown com a Timbalada é o de reger e propor outras informações, coadunando o seu trabalho como músico e compositor à outras vozes e dialogando com os músicos. Não queremos dizer com isso que não há nada de novo e que as influências se sobrepõem ao trabalho da Timbalada, muito pelo contrário, o que pretendemos mostrar aqui é a forma como Brown e companhia subvertem o Samba Junino, no sentido de mudar a direção daquilo que subjaz o seu próprio trabalho e as bases nas quais foram montadas e amplificadas por eles.
Bahia-Caribe, Boleros, rumba, merengue, pitadas incorporadas!
Em entrevista a Goli Guerreiro, antropóloga baiana autora do livro A trama dos tambores, ed. 34, ele cita a banda Rumbahiana como uma fonte de pesquisadores radicais, e nesse sentido o disco Negra Sinfonia lançando também em 1988, como o do Samba Fama, nos parece outra vertente importante para pensarmos a gênese da Timbalada.
Desde os anos 40 há uma profunda influência da música caribenha em Salvador, com boleros, rumbas e merengues, principalmente, algo que se mantém até os dias atuais. E certamente é possível perceber que parte do desenvolvimento rítmico de Carlinhos Brown e Tony Mola – fundadores da Timbalada – passa por estudo e produção de música afro-caribenha (termo que é uma redundante).
Uma das grandes pérolas da música feita na Bahia, o disco da Rumbahiana, Negra Sinfonia traz não por acaso algumas composições de Brown. A ficha técnica deste disco é um espetáculo para qualquer pesquisador musical com nomes como Fred Dantas (trompete), Joatan Nascimento (trompete), Paulinho Feijão (voz), Eládio (piano), Plínio Coelho PC (teclados), Keko Villarroel (baixo), Gini Zambelli (guitarra), Claus (sax e flauta), Bastola e Toni Mola (Percussão), Jean Pierre (flugelhorn), Carlinhos Brown (percussão), Washington do Gera Samba (percussão).
Aqui temos uma banda com músicos estrangeiros radicados na Bahia e músicos negros e não negros em um dos diálogos mais interessantes e desconhecidos da nossa produção fonográfica. Na faixa “Da mesma Praia” temos um excelente exemplo de uma salsa “cubaiana”, um dos pontos altos do disco, essa música se encerra com um toque típico do candomblé. O Rumbahiana foi ao longo de suas formações, uma das bandas mais interessantes da música baiana entre o final da década de oitenta e o início dos anos 2000.
Aqui só podemos indicar o que nos parece uma referência rítmica indireta nas produções da Timbalada, algo como uma substância interna de acesso fugidio, não facilmente racionalizável, mas que independente da ligação direta, estava no âmago da formação musical de Carlinhos Brown e do Tony Mola, dois dos nomes fundamentais da banda. As levadas da Timbalada parecem guardar uma mescla própria do samba junino com uma espécie de tempero caribenho em músicas como U-Maracá por exemplo.
Ora, mesmo que indiretamente a dupla supracitada aprendeu cedo a importância do incremento de instrumentos melódicos junto à percussão, e neste sentido também a Timbalada inverteu a estrutura, colocando os instrumentos melódicos na cozinha, e a percussão na sala. Desde os seus começos em produção fonográfica a banda trouxe metais de sopro, teclados, baixo e guitarra nas suas músicas. Um dos grandes diferenciais da música da Timbalada para outros grupos percussivos dos Blocos Afro.
Certamente, esse texto é parte de uma pesquisa que venho realizando há pouco tempo, muito fruto de conversas com percussionistas amigos como Heverton Didoné e com o grande amigo e mentor Ed Brass (músico e produtor musical e cultural). Foi através de inquietações solitárias fruto de audições acumuladas ao longo dos últimos 30 anos, de vivências com a mesma data junto ao samba junino, e nos alucinados shows da Rumbahiana no final dos anos 90 e começo dos 2000 no Pelourinho, que os interroguei.
O fato final é que é impossível aprisionar a música da Timbalada dentro de um rótulo, porém é essencial lembrar que muitas vezes esquecemos que o que “parece óbvio é fundamental”, apesar do que se configurou em termos de produção científica e jornalística sobre a Timbalada que muito dentro de um afã de achar um responsável – uma estrela – o colocou como alguém que levantou os timbaus e “inventou” a Timbalada, apagando com isto uma constelação de estrelas que ultrapassam inclusive a própria banda. Por uma mera questão de lógica histórica, timbaleiros já existiam, e foi o que Brown percebeu e reuniu nesse projeto.
-As influências do Samba Junino e da música caribenha no surgimento da Timbalada! – Artigo
Por Danilo Cruz