Rodrigo Ogi da cidade cinza pRÁ dentro de si: Pé no Chão. Uma reflexão sobre alguns aspectos presentes na obra desse que é grande no hip hop !
Na faixa “Redenção”, preesnte no EP Pé no Chão (2017) Rodrigo Ogi nos dá uma pista que serve-nos bem como gancho para uma intuição que tivemos sobre o conjunto da sua obra solo até aqui. “Eu uso a arte para o muro quebrar e com isso não me deixo no apuro ficar” é a primeira parte do refrão que nos remete ao mesmo tempo a duas questões. A primeira delas diz respeito a um desenvolvimento intrínseco presente na obra do rapper paulista. E a outra, diz respeito a uma questão relacionada a primeira e que nos mostra como o rap e a arte de modo geral é sempre a expressão de uma grande saúde, mesmo quando fruto de doenças!
Conhecimento, domínio da técnica artística do campo em que atua, vivência de rua no grafite e no pixo, Rodrigo Ogi, é um daqueles artistas que quando nos aproximamos um pouco, percebemos que há muito o que aprender. Não resta dúvidas do grande papel e importância que o artista paulista possui para a cultura hip hop brasileira, mas também já para a própria música popular. Ainda assim, é como muitos trabalhadores brasileiros alguém que permanece tendo que lutar todos os dias- no sentido de ralar realmente – para conseguir lançar seus trabalhos.
Participante do hoje já clássico grupo Contra Fluxo, Ogi participou dos dois álbuns lançados: Missões e Planos (2005) e SuperAção (2007), junto aos DJs Big Edy e Willian e os mcs Munhoz, Mascote e Deja Vu. Início profissional de uma caminhada que aqui, por si só, já denota muito respeito mas que é engrandecida e prossegue em sua carreira solo. O fato é que o mc paulista permanece na contra mão, permanece produzindo uma obra que é essencialmente hip hop porque segue sendo contra-cultural. Uma obra que hoje caminha para o terceiro disco cheio, e já possui também um EP, diversas participações, colaborações em projetos e cyphers.
Aqui nesse texto vamos trabalhar uma ideia que nos ocorreu em um ônibus vazio em um final de noite, durante a semana na volta do trabalho. Os discos do Ogi possuem a não tão óbvia qualidade de sempre ser uma imersão dentro de um mundo complexo de referências, ideias e sentidos que dialogam com diversos campos da arte e temas múltiplos. A sensação geral é sempre de uma conversa, o que não é a mesma coisa de um diálogo, ao invés de responder questões pré-programadas, as rimas e beats estão ali falando de assuntos que possuem uma certa ordem mas que nunca são respostas pré fabricadas.
E foi numa dessas conversas que uma certa intuição emergiu e começamos a ver na obra supra mencionada um desenvolvimento que vai do diagnóstico dos problemas sociais para um mergulho em si mesmo. Um certo entendimento de que através de um mergulho na exterioridade entendemos melhor os problemas que nos aflingem enquanto indivíduos frutos de uma sociedade e de um tempo histórico. O entendimento do rap como um exercício de crítica às mazelas sociais, mas também a compreensão de que os monstros enfrentados podem e muitas vezes nos tornam um igual, fazendo com que a ascese se torne necessária.
O grandioso – em vários sentidos – disco Crônica da Cidade Cinza (2011) é talvez a melhor apresentação do alcance que a arte de Rodrigo Ogi possui, a capa clássica já negocia com o grafite autoria d’ Os Gêmeos. O disco é organizado como arcos de um quadrinho, e nessas sagas e aventuras temos uma míriade de temas abordados que com certeza nos propõe um retrato bastante fiel não apenas da cidade de São Paulo, como de aspectos presentes em várias outras das grandes capitais do país: “Megalópole é megalópole em qualquer lugar”. Um mergulho nas diversas camadas que compõem um mega cidade caótica, que quanto mais se apega em aspectos próprios de SP, mas alcança universalidade.
Perpassa-se ao longo dos arcos e sagas, por temas que prospectam diversas formas de desigualdade social e como estas geram diferentes formas de violência que afligem a população, indo até questões que remetem aos costumes. Heranças dos fliperamas, cultos da umbanda, as vivências na rua, suas angústias, bom humor e situações inusitadas do cotidiano, herança familiar, e um olhar sempre aguçado pela poesia mirando ao redor quase que a 360º. Tudo isso filtrado por um Eu-lírico que mesmo escrevendo em primeira pessoa, apresenta um certo distanciamento, quando não totalmente ficcionalizado (o arco do Zé Medalha).
Aqui, nem riscamos a superfície das questões e técnicas utilizadas, visamos apenas apontar o que consideramos o núcleo do trabalho. Porque, nessa perspectiva que ressaltamos acima, essa complexidade que é apresentada tem uma solução de continuidade se metamorfoseando nos trabalhos seguintes. Talvez um dos maiores storytellers do rap nacional, o mc paulista cria uma crônica de uma cidade adoecida, perigosa e caóticamente organizada, onde ele mesmo está estilhaçado entre as experiências, história, ideias, personagem reais ou não.
Em seu álbum de estreia, encontramos um Rodrigo Ogi olhando para fora, refletindo, ou seja, dobrando o exterior dentro de si mesmo e produzindo críticas, trabalhando sua memória, mas ainda numa distância segura, sem digamos assim, se derramar. Mais num exercício de estilos que alcança expressões de excelência, que obviamente não é “parnasiano”, mas no que entendemos e queremos mostrar mais pra frente, não tem ainda o grau de “nudez” que os próximos trabalhos vão apresentar. As cores e o tom apresentado dentro do disco é também uma certa torção e atualização da linguagem do grande mestre Plinio Marcos, um santista que retratou ao seu modo – proximo do Ogi – os marginalizados da cidade e a própria cidade sob a perspectiva desses. Não atoa são audios dele que abrem e fecham o disco.
Leia uma análise detalhada do disco aqui
Quatro anos após seu primeiro disco, RÁ (2015) vem a luz e com ele começamos a ter um acesso maior a interioridade do artista, que começa aqui um processo de auto ascese disfarçada no disco como sessões de terapia. Não esperem encontrar aqui acesso a algum tipo de choramingo ou como chamou Henry Miller: “a água suja do inconsciente”. Pelo contrário, as multisilábicas são punchline contra concepções teatrais do inconsciente, e o mister Hayashi já parte para luta na primeira faixa onde de saída já ouvimos em “Aventura”: “A selva cinza vou conquistar. disseram para eu não me aventurar, mas eu sou louco e ligeiro“. Dentro da obra do poeta, vamos percebendo como as referências extraídas de filmes, quadrinhos, videogames, literatura, servem como linhas de fuga para que ele e nós mesmos, possamos enfrentar nossas questões, são sempre aberturas, nunca aprisionamentos, ou mero capital simbólico.
As figuras poéticas elaboradas por Ogi brilham, mesmo que retiradas imediatamente da lama. O boombap é uma profissão de fé mas de uma crença nada dogmática. Como artista versátil que encontra no amplo conhecimento musical e domínio total das técnicas de construção de rimas no rap, rima obviamente em qualquer beat e flerta também com as composições mais tradicionais do samba. E aqui temos também um outro exemplo fantástico de como sua arte serve sempre a propósitos superiores. “HAHAHA” é uma faixa que mexe ao mesmo tempo com a imersão nos desejos do inconsciente através dos sonhos e com as técnicas mais apuradas.
Sempre que escavamos ou que percebemos a interioridade do rapper notamos como a arte é o elemento principal a povoar sua subjetividade. Notamos o quanto as referências à literatura, ao samba e ao brega antigo (50, 60 e 70), povoam sua mente de modo a enriquecer a sua própria arte, e consequentemente a cultura em que se insere. Se há uma imensa profundidade nesta obra e no próprio artista, a mesma não deriva apenas da técnica e das referências, mas em como os conteúdos e as participações de grandes nomes em seus discos servem sempre ao sentido da arte que o mc deixa como subtexto de suas produções. A criação artística aqui é a “chamada” para dançar das suas/nossas dores e angústias, aquilo que todos nós seres humanos possuímos.
Como artista, como poeta, como mc, Rodrigo Ogi aprofunda essa questão em RÁ (2015), mostrando de que modo apenas a arte é capaz de nos agenciar momentos de êxtase e alegria de modo transcendenteal, transmutando sofrimento em potência. Dos poucos artistas do rap nacional que conseguem encontrar um campo de comunicação com os mais diferentes publicos, e ao mesmo tempo, ser de algum modo de “raiz”. Hoje, a mesma estratégia é por alguns mc’s da cena utilizada de modo esvaziado porque lhes falta algo primordial: vivência e auto-reflexão, auto critíca, mas talvez e sobretudo lhes falte o entendimento de que as meras referências a cultura exterior ao hip hop por si só não se mantém de pé.
Ao seu próprio modo, o artista e consequentemente o homem, vem ao longo dos anos criando as condições para encontrar uma serenidade capaz de lhe manter de pé diante dessa guerra que chamamos rotina e essa busca é o tema da faixa “Correspondente de Guerra”. A guerra que travamos dentro de nós mesmos para estarmos em paz diante dos acontecimentos externos muitas vezes encontra alívio em soluções rápidas. Queremos por vezes calar a multiplicidade que nos compõem em diversos níveis e encontrar uma unidade – por falta de palavra melhor – para os tantos eus que possuímos e ou que querem em nós incorporar.
A questão das drogas está ali presente no disco numa “Trindade” que não tem nada de santa, antes é humanizada na medida em que se intercala as perspectivas. Aqui podemos perceber a grandiosidade do poeta que assume as vozes e personas distintas mas que representam a rede de drogas, violência e caos social em que todos nós estamos presos, um exemplo de crítica social e de auto-reflexão dos mais potentes. Ogi nos faz perceber que poderíamos ser qualquer um daqueles personagens, e que no limite temos em nós essas possibilidades em menor ou maior escala, nada do que é humano deveria nos assustar, somente a falta de humanidade que produz a barbárie.
RÁ (2019) prossegue ao longo de suas 16 faixas perseguindo um Eu-lírico que nesse disco incorpora os problemas, não mais os narra apenas à distância e esse efeito ocorre exatamente por esse simulacro de terapia que chamávamos atenção acima. A cartografia ampla e complexa dos afetos, das nossas escolhas, se amplia numa das mais bonitas – senão a mais – reflexões poéticas da suas músicas. “Virou Canção” sintetiza como um pequeno diamante a força de sua arte, e vai nos conduzindo para o entendimento do quanto o rap e a cultura hip hop se bem conduzidos são um agenciamento capaz de imprimir vida em nós. Um devir-criança antes relatado ao psicólogo numa das vinhetas, é aqui colocado em prática.
Não há espaço também para a moralidade judaico-cristã e a concepção de culpa e os julgamentos rasos e perversos que essa concepção nos imprime, como uma sombra pálida de justiça. E como fechamento da consulta uma constatação trágica que reafirmar o que dissemos aqui: enteder o sem sentido da vida, suas contradições, seus acasos, as escolhas, nossa formação complexa como indivídeuos e como sociedade. É a arte quem pode também nos ajudar a jogar essa partida que tem um final marcado, e que chamamos vida. Entendendo as derrotas, as bolas nas costas, as faltas cometidas, os gols que marcamos, como essa luta diária que imprimimos para criar um sentido para o nosso time, que chamamos de eu.
A arte de escrever como um modo de ser visceral, “uma vida não refletida não é digna de ser vivida” é o que ouvimos de uma outra inspiração literária cara ao Rodrigo Ogi: João Antônio. E aqui a nudez se faz inteira e percebemos o Rodrigo Ogi por inteiro com os dois Pés no Chão(2017). O eu-lírico aqui é exterminado por uma primeira pessoa que caminha na nossa frente após povoar seus desertos com a arte. Aquela serenidade que mencionamos encontra um objeto, seu filho, e nos é apresentado um auto-retrato que tem alcança uma força inaudita se compreendemos, como aqui queremos ressaltar, toda a trajetória.
Rodrigo Ogi nos apresenta uma faceta nova em sua arte, aqui a ascese é plena e nua enfrente aos espectadores, como se ele tivesse quebrado a quarta parede. “Anjo Caído” retrata com uma humildade muito forte nossas buscas por drogas capazes de arrefecer a luta que travamos constantemente conosco e com os outros. O assassinato poético de Mephisto é um símbolo presente numa imagem poética que é bastante interessante, pois nos mostra sem julgamentos morais, de que modo podemos entender o combate contra as drogas, a vontade de viver.
“Nuvens” toca sem sentimentalismos baratos em outra questão crucial de sua existência, a morte de sua mãe e o nascimento de seu filho. Depressão e auto controle encontrados através de vetores afetivos e familiares, ao mesmo tempo em que reflete-se sobre o impacto da ausência da paternidade em nossas comunidades.
Há uma discussão estúpida no rap nacional que eclode vez por outra, e que diz respeito a utilização ou não de referências exteriores a cultura hip hop e seus influenciadores. “Redencão” é aqui ponto central do nosso texto e de qualquer sorte elimina essa discussão boba sobre a utilização de referências. Com rimas afiadas como uma Hatori Hanzo, o sensei Hayashi desfia uma ideia que é muito presente em nossas reflexões: “Rarificar o vulgo e vulgarizar o raro”.
A arte é sempre um excelente companheira para que tenhamos forças e nos conciliemos com nossa solidão. É curioso que em tempos de informação grátis na internet, e pessoas que possuem certa instrução, não entendam como a conectividade total é um controle para nos afastar da nossa solidão que é talvez nossa maior condição existencial. Não podemos nos purificar nesse ruído de comunicação que é a vida e a internet como reflexo controlado da mesma. É no contato com si mesmo, no pensar-se a si mesmo como um outro e na reflexão sobre o nosso próprio pensar, que somos capazes de enfrentar os nossos “demônios”. E alcançarmos uma liberdade que possamos chamar de nossa. “Deixe-me” estende o tema anterior, indo exatamente na direção de uma liberdade que não se reconhece nas prisões a dois.
Pé no Chão (2017) é um exercício potente sobre arte, familia, drogas, posição existencial, mercado, tudo com uma forma que não se distancia mais, ou que aqui não se colocou a distância como nos trabalhos anteriores. É um salto pra frente de um artista que aqui se mostra mais humano e próximo, e utiliza com uma precisão cirurgica suas armas poéticas e musicais para rachar o muro das significações clichês, das armadilhas existenciais, do conservadorismo que assola muitos depois de uma idade. Cria-se aqui uma brecha por onde tudo o mais passa pela sua propria represa arrastando junto os discos anteriores.
Há aqui tambem uma concepção da vida como um eterno devir, consequentemente um enfrentamento da morte, que na verdade aponta para a aceitalão da mesma como constitutiva da vida. A obra de Rodrigo Ogi se erige entre outras características nessa trajetória, e é ainda um colosso em movimento, nos apontando direções e se firmando no movimento hip hop como um farol dos mais seguros. A sua fé na arte, expressa em toda a sua trajetória, sua erudição não acadêmica e obviamente sua qualidade poética conquistada, nos imprime essa ideia forte, de que precisamos desse mesmo desejo para constituirmo-nos em seres humanos melhores. Basta uma olhadinha para o meio em que estamos metidos politicamente, para percebermos a força e a generosidade que essa obra nos oferece. Orrevua!
Leia uma resenha do EP Pé no Chão (2017), aqui
-Rodrigo Ogi da Cidade Cinza pRÁ dentro de si: Pé no Chão!
Por Danilo Cruz