Parteum e os ensinamentos de um griot para MMXX

Parteum e os ensinamentos de um griot para MMXX, o cultivo da arte e o fortalecimento da cultura hip hop, são alguns dos temas de nossa reflexão

 

Comecei a ouvir RAP em 2007. Eu já ouvia uma música ou outra, mas quando você mergulha nesse universo é diferente. Era algo completamente novo pra mim, muito conteúdo em poucas linhas, eu ainda não entendia muito bem as técnicas de escrita, os flows, não curtia os beats, mas o conteúdo me fisgou, como acho que acontecia com a maioria.

Naquela época o RAP já era bastante acessível na internet, mas era mais trabalhoso encontrar coisas novas. Quando você conhecia algum MC e estava ávido por mais não tinha como procurar playlists, recomendações e não havia lançamentos quase todos os dias, como hoje, então você pesquisava sobre o MC nos sites de RAP, baixava a discografia inteira, pesquisava as participações, as discografias das participações, trocava com os poucos amigos que também ouviam, comprava mixtapes e EPs da mão do MC e assim por diante.

Era uma espécie de rede de compartilhamento, de influências e através da rede Emicida, Marechal, Quinto Andar e Kamau eu cheguei até o Parteum. Acho que eles foram os MC’s que eu mais escutei até hoje, todos com suas particularidades, mas o Parteum era diferente de tudo, nem melhor nem pior, vocês estão ligados. Parecia uma mistura de Griot e Zen budista, recitando provérbios e koans a cada linha. Eu internalizava alguns versos e ficava dias pensando sobre outros, sem entender muito bem. A quantidade de referências era impressionante e bastante diversa, e a sonoridade também.

Muita coisa mudou desde então, da produção do RAP à forma como o público consome. O Parteum já não lança mais tantas mixtapes e EPs quanto antes, mas uma coisa se tornou tradicional, os sons de início de ano. Desde 2016 todo o início de ano o Parteum solta uma música e esse ano foi a vez de MMXX, 2020 em algarismos romanos. 

Eu iniciei esse texto falando de quando comecei a ouvir RAP porque acho que existe um valor nisso, talvez baseado em uma visão romântica, mas que tinha um peso de valorização cultural e artística muito grande. Algo que me deixa um pouco triste nesse contexto atual de streaming, Youtube e de flerte com a indústria cultural de massa é a forma como o RAP é enxergado por uma parcela do público novo.

Muitos o vêem como mais um estilo musical, talvez pela quantidade de músicas lançadas diariamente, a facilidade em ouvir, as indicações dos algoritmos das plataformas, os novos referenciais do que é bom ou ruim dentro do RAP, em suma a efemeridade com a qual o RAP é consumido hoje, o que faz com que aquela visão de que o RAP era algo diferente, algo capaz de mudar a vida das pessoas, não por quanto dinheiro um rapper ganha, mas pelo conteúdo que as músicas trazem, se torne para alguns retrógrada.

Assisti há poucos dias a entrevista do Letterman com Jay-Z e ele falava a respeito da produção musical atual que se foca principalmente em conquistar os ouvidos do público para funcionar e ser atrativa em um dado momento específico. Músicas que estouram em um período e no outro ninguém lembra que existem. E ele dizia que o foco dele estava em se manter relevante a ponto de compor uma obra que não fosse efêmera, que se passassem décadas e as pessoas continuassem ouvindo, como os discos de 50 anos atrás que ele permanece escutando. Essa visão me remete bastante à obra do Parteum, mas principalmente a MMXX.

Parteum inicia a primeira estrofe com o verso “Alguns dos meus heróis já não respiram em seus corpos/Transitam sem peso/Senti-los é preciso feito absorver luz/Eu sempre sou coeso ao determinar que a tinta que a caneta chora é mágica”. Esses versos parecem à primeira vista opostos aos do início da segunda estrofe: “Ouvi dizer que as almas não têm nome, fantasmas não têm casa”. O que diferencia os heróis do Parteum das almas sem nome é o impacto que eles causaram em vida.

A arte, o afeto, a significância em relação ao outro, a produção de algo que não seja efêmero e sim mágico como a tinta que a caneta chora. Para Parteum, através da sua arte ele faz “os sonhos se curvarem enquanto eu mando em todos eles”. Sonhos que atingem uma dimensão onírica expressa em “ando com anjos, rasgo a língua de demônios” ou mesmo utópicas como em “Escrevo livros com natais incríveis, moleques pretos vivos/A única polícia é a do Sting no mundo material/O único governo é o da cabeça dançando com o coração”. Ou seja, a arte possui um caráter transcendental, uma força de retirar o indivíduo de uma vida programada, mecanizada, através dos seus elementos, como o grave que ele cita na letra,  que toca os indivíduos em um lugar fora do óbvio e os retira da inércia. Essa é a diferença da qual o Jay-Z falava na entrevista, entre arte e produto, algo que impacta de forma duradoura e algo efêmero, a diferença que coloca MC’s como Parteum em outro patamar em relação aos rappers medianos. 

Algo que sempre me impressionou é a forma como Parteum utiliza referências ricas e de campos completamente diferentes. Em “T’Challa versus Namor, água pra todo lado/O Inimigo depende da posição e o meu legado é derrubá-lo/Xadrez com capoeira na velocidade cósmica” ele vai de Xadrez a Marvel, para falar das batalhas nas quais entramos, nem sempre por escolha própria. Sejam as batalhas entre os MC’s que primam pela arte e os rappers medianos que copiam os originais, seja em referência às batalhas sociais e raciais que nós travamos diariamente para nos mantermos vivos e em última instância sermos relevantes para os nossos.

A batalha é complicada como T’Challa versus Namor em que o campo é do adversário e lutamos na água contra o príncipe dos Atlantis. No xadrez as peças brancas sempre iniciam o jogo e há em uma das partes mais importantes da estratégia a noção de posição. Uma forma simples de explicar isso é com o exemplo do cavalo. O cavalo pode alcançar oito casa diferentes, mas quando está posicionado no canto do tabuleiro fica limitado a quatro ou duas casas possíveis. Portanto a posição das peças é uma vantagem. A analogia do campo de batalha ou da posição no xadrez é óbvia em relação aos privilégios que alguns recebem em detrimento de outros, seja na sociedade ou na indústria cultural.

Parteum diz que “o inimigo depende da posição e o meu legado é derrubá-lo”. Nosso legado é sermos melhores, mais inteligentes, mais fortes, ou como diz Parteum ao lutar contra Namor “desencapo fios de cobre, cobro a dívida no choque”. É a noção de que devemos ocupar os espaços que merecemos, mesmo com todos os obstáculos e adversários pelo caminho, e de que precisamos ser relevantes para os que nos cercam, seja através da arte, dos ensinamentos ou do afeto, para não nos tornarmos fantasmas sem casa e sim ancestrais que precisam ser sentidos e lembrados como T’Chaka.

Os singles de início de ano do Parteum são um alento para começar bem o ano. Poucas linhas e muita ideia. Por isso a única resolução de ano novo que eu posso querer é que outros MC’s tão relevantes quanto Parteum e Don L – que dessa vez atrasou um pouco seu Verso Livre – como Stefanie, Kamau, Matéria Prima, Karol de Souza e Ogi, adotem essa tradição pra gente começar o ano com o pé direito.

– Parteum e os ensinamentos de um griot para MMXX

 Por Andre Clemente de Farias

 

 

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