O MC curitibano Relvi lançou seu disco de estreia com a produção do grande Traumatopia, muita lírica em beats drumless e boombap style!
Em seu disco de estreia, Relvi apresenta um trabalho muito sólido, digno de grandes veteranos do cenário nacional do rap underground, mas especificamente da sonoridade e da estética do boombap contemporâneo. Certamente, a assinatura da produção feita por Traumatopia complementa e ajuda a solidificar essa impressão, pois estamos falando do produtor de duas das grandes pedradas que saíram no ano passado, os discos: Diatribe, Vol.1( com os MC’s Nairobi e Thestrow) e Anti-Lock projeto capitaneado pelos MC’s Galf AC, Nairobi e Mistah Jordan, e do qual Relvi fez parte.
Porém, como nada é por acaso, apesar de “Cinza com Azul Mesclado” ser o seu primeiro disco solo, Relvi não é nenhum novato chegando agora na música. Com uma caminhada de mais de 20 anos em projetos musicais com bandas como “41B” e “Carta Preta” e trabalhos solo, recentemente o MC foi responsável pela composições vocais de 20 músicas que compõem a trilha sonora do filme Low Movie, produção da crew de skate da qual o artista faz parte: Low Pressure!
Em seu perfil no Spotify, Relvi começou a soltar singles em 2020 com a faixa “Bad Milk”, agora em 2023, o primeiro movimento para o lançamento do seu disco solo foi com o videoclipe da segunda faixa do disco: “Névoa”. Lançado no youtube no dia 11/03, o audiovisual e primeiro single do trampo, conta com a direção e edição do próprio Relvi e do Rafão VM, parceiros de Low Pressure. O clipe traz para a tela muito skate, com Arthur Cercal e Kovalski dando rolê, as pinturas rupestres da cultura urbana com pixadora e grafiteira Trevinha e o seu letrado e o mestre Traumatopia riscando os toca-discos e na selecta master class.
Essa ambientação presente no vídeo de “Névoa” é de certo modo reveladora do clima presente no disco, a fotografia em preto e branco, nos parece ser a mais adequada para o clima que nos é apresentado ao longo das 10 outras faixas que compõem o álbum. Afinal, estamos falando de um disco onde letra e música não cessam de versar e ritmar ideias fundamentais para todes que admiram a cultura hip-hop. Em adequação ao tempo em que vivemos, não há espaço para otimismos, mas antes reforços para a luta e críticas certeiras às posições ético-políticas que estão rendidas ao mercado.
No entanto, é preciso um leve recuo para entendermos a coesão estética do álbum, efetuada através de um processo muito refinado de ritmo e poesia. A faixa título que abre os trabalhos, Cinza com Azul Mesclado, referência direta ao céu de Curitiba, serve-nos como uma espécie de abóbada celeste de lírica, flow e beat, um drumless safra new golden era.
Deste momento em diante, o ouvinte começará a ser constantemente atingido pelas estrelas cadentes de ritmo e poesia, colhidos através do conhecimento amplo e irrestrito da cultura hip-hop. Sem espaço para jogadas de marketing de retorno do boombap, o cosmo habitado por Traumatopia e Relvi é o de artistas que tratam a cultura de modo digno e não sob a influência de modas e ou determinações da indústria cultural.
Nesta faixa de abertura, Relvi mescla uma sequência de linhas, de imagens poéticas, uma construção lírica intrincada, com a mescla de diferentes flows, apresentando de saída uma caixa de ferramentas muito ampla. Versando sobre política, sobre postura, análises certeiras da nossa atual situação social, com uma qualidade muito grande. Não seria exagero dizer que todo o resto do disco é uma derivação do magma poético e ritmico presente nesta abertura que em certo sentido serão solidificados e escorreram para outros recortes e variações de temas presentes já nessa música. O tom épico do beat nos consolida essa impressão.
Do céu ao chão, da imensidão celeste aos trajetos e caminhos da rua, “Névoa”, faixa que ganhou clipe, traz a imanência da vivência na pista. Traumatopia acrescenta ao loop de piano, as batidas para cadenciar no corpo a caminhada, rememorações dos anos 90 estão presentes na lírica de Relvi. “Cria do solo, rua abraça quem não tem mais nada”. O refrão chama-nos a atenção em sentido amplo, para a importância e para o descaso com o espaço público em nosso país.
A terceira cadenciada “Sempre Só”, com o sample abolerado, apresenta a afirmação da vitória que é conseguir realizar uma obra tão bem acabada e construída sob firmes fundações. Apegado e continuador da imensa tradição de boombap underground de sua cidade, Relvi exibe técnica na criação de imagem poéticas que dialogam internamente com a construção de suas letras. Longe de fazer uma apologia vazia a um individualismo alienado, o seu “flow LSD” derrete a montanha de bobagens expressas como certezas em diversas das produções atuais. Afirmando um sempre só como condição existencial íntima, porém plenamente ciente da necessidade do trabalho coletivo, estético, cultural e político.
Com a participação de Galf AC, os MC’s atacam na sujíssima “Pensa Bem”, a produção soturna de Traumatopia com um sample de piano que poderia ter sido facilmente retirado da trilha sonora de O Bebê de Rosemary (1968), do polonês Krzysztof Komeda, dá o tom, onde a dupla versa sobre anti-fascismo, política, postura, drogas como combustível e como armadilhas. Traumatopia complementa o sample de piano com um hi hat aberto e uma combinação de bumbo e caixa em pique de marcha fúnebre.
Há um realismo crítico, talvez uma espécie de pragmatismo da ação, presentes nas ideias apresentadas pela poesia do Relvi que vão progressivamente dialogando com os temas expostos, como apontamos acima. Em “Sonhos” ele abre cantando: “Sonhos sempre serão sonhos, realizar é outro sonho né?”, uma afirmação seguida de uma interrogação desconcertante, em tempos onde milhares de artistas querem “virar” no game, onde algumas dezenas que conseguem se manter louvam uma meritocracia que confirma a regra principal do capitalismo: a exclusão e nos tempos atuais, a precariedade.
Mas a frente na música ele prossegue: “Soluções não trabalhadas geram ilusões, dia a dia aguenta o peso das desilusões”, que é a regra implícita na falsa meritocracia, a regra no sistema capitalista são as desilusões, as frustrações dos sonhos de grandeza, alimentados pelo próprio sistema.
“Pela sombra, só o fogo vai se destacar, chama no peito que não apaga, quitada, preço quem paga não vaga, de alma lavada no alvo, mira focada cidade limite, foda-se! Barras no estúdio queimadas, tem que pagar pra ver, tem que pagar pra ver”
Essa potente e bonita construção ao final da faixa, embalada pelo recorte do Traumatopia de uma guitarra de teor um tanto melancólico, nos mostra que o artista está ciente dos preços que se paga e da necessidade de estar inteiro e sem ilusões no processo, tendo quitado os desejos de sucesso, sendo possuidor dos valores necessários para estar batendo de frente nestes limites. Este tema da competição, da concorrência, da luta pela sobrevivência vai ser aprofundado na música seguinte: “Ouro e Sangue”, nem vou me alongar aqui, escutem.
Na escolha dos timbres, nas cadências produzidas, na produção dos loops drumless, nos samples recortados pelo Traumatopia, a excelência é inconteste. “Sorrisos” é um desses exemplos onde o beat nos faz produzir aquela carinha de nojo ouvindo, e o Relvi não deixa baixo não. Nesta faixa, vale a pena destacar a qualidade dos refrões do disco, que tem nessa música um dos muito bons exemplos: “Sombras não tem mais fim, seus sonhos sorriem mas a noite te traga, sorrisos que não tem fim, semeiam o fim”.
Em “Ilusão”, o beat jazzy com samples de baixo acústico e sax, o clima esfumado incensado pela produção, recebe o complemento lírico adequado ao tema, forma e conteúdo muito bem amarrados. Em “Inóspito” temos o segundo e último feat do disco e traz um dos grandes nomes do boombap nacional: Thestrow. Talvez seja impressão minha, mas os dois feats são as duas faixas mais sujas do disco, inclusive com fortes semelhanças na construção dos beats, e cá entre nós entre artistas desse naipe nada é por acaso. Ouçam e depois me contem!
As duas últimas faixas do álbum só reafirmam a qualidade presente até aqui. “Escolhas (Um Novo Começo)” traz um beat todo quebrado e com mudanças de andamentos e de elementos, falando sobre recomeços, sobre a necessidade de não nos curvarmos diante das dificuldades do dia a dia e muito menos ante relações que fracassaram. “Esquecendo o Mundo” vem groovadíssimo, com linha de baixo swingando e ataques do naipe de metais, tudo recortado pelo maestro Traumatopia. A faixa é toda rimada para reforçar as ideias de independência, de movimento, de luta ou seja, de não se render aos poderes que forjam ilusões e estimulam posturas mesquinhas.
Quanto mais ouvimos “Cinza com Azul Mesclado”, percebemos uma simbiose muito rara entre os climas de cada beat e os temas poéticos desenvolvidos, que nos remete a descrição feita no começo deste texto. Em seu disco de estreia Relvi apresenta 11 faixas, produzidas por um dos grandes produtores do rap contemporâneo no Brasil, ao qual recheia com uma chuva de rimas e flow muito bem iluminadas por ideias coerentes com uma visão crítica apurada e uma qualidade poética que está longe dos clichês.
-Relvi lança o disco “Cinza com Azul Mesclado” em parceria com Traumatopia! Resenha
Por Danilo Cruz