Ravi Lobo, uma história verdadeira no drill, Shakespeare do Gueto (2022)

Shakespeare do Gueto é a continuação de um livro sem final, que tem sido escrito por Ravi Lobo no Hip-Hop baiano, com muita vivência!

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre

Em nosso espírito sofrer pedras e flechas

Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,

Ou insurgir-nos contra um mar de provocações

E em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir: não mais.”

Na virada da primeira década do século XXI surge o Rap Nova Era que ao longo de sua trajetória se confirmou como um dos grupos mais importantes da história do rap baiano. Grupo atualmente formado por DJ Kbça, Moreno e Ravi Lobo, o Nova Era como é chamado pelos seus fãs, lançaram três discos e dezenas de clipes, se apresentaram em diversos estados do Brasil e fazem parte da UGangue. 

Sua gênese é uma das histórias mais impactantes dentro de um cenário formado por outras tantas grandes narrativas que reúnem vida e arte. Moreno – o “coroa” do grupo – com a dissolução do Milicianos, grupo que possuia junto ao grande Tiago Negão, já conhecia Ravi do skate. Durante sua estada no sistema carcerário, Ravi recebia cartas do amigo, que lhe fortalecia espiritualmente e numa dessas cartas, Moreno lhe convida para fazer um grupo de rap, o resto é história que segue de lá pra cá sendo construída de modo ininterrupto. 

São hoje, 12 anos de trajetória dentro de uma cultura que transformou vidas e nos presenteou formando um verdadeiro MC, um mestre de cerimônias que possui muitas milhagens e uma inquietude pouco vista. O monólogo de Hamlet, peça do escritor, poeta e teatrológo William Shakespeare, é sem ter sido lida, ilustrada pela força do exemplo. Ravi Lobo escolheu ser, percebeu os mecanismos que formam o crime, que levam milhões dos seus iguais a escolherem viver na dúvida!

Shakespeare do Gueto e as raízes para uma flor de Lis! 

Começando uma carreira solo, Ravi Lobo optou por gravar um EP dentro da estética do drill, sem contudo, acabar com o icônico Rap Nova Era. O motivo desta carreira solo é simples, artistas que muito produzem precisam dar vazão as suas ideias, e Ravi meteu marcha. Shakespeare do Gueto ganhou seu primeiro single com o premiado clipe da faixa homônima ao disco, que inclusive foi premiado no festival M.V.F (Music Video Festival Awards) no ano passado. 

Música que abre o trabalho, agora plenamente apresentado, é uma verdadeira abertura da caixa de ferramentas com as quais o artista manipula sua poética. Como um bom alquimista da cultura Hip-Hop, a faixa é um gangsta rap real dentro da perspectiva estética do drill. No Brasil, a cultura chegou e tomou contornos próprios, aqui tanto o drill quanto o rap gangsta possuem outras intenções históricas que não as de origem. 

Enquanto hoje vemos um monte de artistas que nunca tiveram vivência de crime, exaltarem acriticamente armas e drogas nos clipes e músicas, gente que é sabida e publicamente oriunda de outro contexto social, Ravi como a faixa demonstra na lírica e no excelente audiovisual premiado, busca o afastamento de seus iguais desse movimento. Sim, a indústria cultural branca não perdoa e tem elevado muitos artistas fakes a ícones de um gênero musical que é oriundo de uma realidade desconhecida dos mesmos, ou meramente mimetizada. 

Para além, desse marketing pessoal falso e transformado em produto, Ravi Lobo dropou na faixa nos mostrando que é sempre possível um outro caminho. Para tanto, a jovem estrela Lis foi convocada a participar da música e do clipe, uma fadinha que serve-nos de exemplo do que um pai de verdade faz, cuida e instrui. Lis é talvez a afirmação, a flor que Ravi nos oferta como exemplo de uma ilusão deixada para trás, como reabilitação dos erros cometidos, como canta na sua música o grande Djavan. A ideia de que o fim do amor pode ser perdoado por Deus, e que os erros do passado não devem ser repetidos!

As histórias pessoais não podem servir de critérios para que entendamos a arte como uma espécie de predição moral, como um conjunto de boas intenções que só por isso, valham. Se me refiro aqui a história que vem sendo construída pelo artista dentro do cenário é por perceber que a vivência – algo fundamental na cultura hip-hop – encontra em sua arte um eco verídico e muito mais, é a substância na qual a mesma se sustenta e se transmuta, lhe modificando. 

“Malandro é uma coisa, vagabundo é outra, vagabundo é o periculoso, malandro é o artista”

Uma distinção que deveria ser amplamente conhecida em nossa sociedade mas que infelizmente segue sendo tomada como o mesmo. A faixa “Quem Bate Esquece” versa dentro desse contexto de superação, de onde a memória saudável não guarda ressentimento, mas busca sua melhora. Terceira música do EP, Ravi une Baco Exu do Blues com o jovem talento Suiky, “Uber Black” traz o eu lírico de Baco, as rimas de Ravi e o refrão de Suiky, numa dobradinha que mostra a união da 999 com a UGangue!

O disco possui em grande parte o impulso de Baco (999) que ofertou estrutura e conhecimento para os trâmites mais burocráticos e técnicos para a sua feitura. Após essa triangulação artística uma dobradinha from bairro da Liberdade. O MC convida Cronista do Morro, a braba, para uma das parcerias que já foram lançadas como single, com audiovisual pesado sobre o qual escrevemos aqui. Se o drill não tem hip-hop em sua essência – ou se está sentido falta – “Manda Buscar (prod. Raonir Braz)” na Liberdade. 

O disco traz a produção do beatmaker JLZ que faz aqui um trabalho impecável, servindo os drills onde Ravi Lobo encaixa perfeitamente flows distintos e entonações diferenciadas de acordo com o clima proposto. A música “Maloka Viva” é de certa forma uma das músicas onde o MC consegue resumir melhor sua caminhada, sua conduta, sua formação, seus alvos. Sem participações, é uma música onde quem já esteve na Lemos de Brito e voltou para levar Paz, Amor, União e Diversão como artista reflete sobre o estado de coisas da cidade hoje e ainda dá um aviso a que cópia estéticas:

“Seu ice e seu drip enfio no seu cu, meu gueto precisa de educação, tá tudo estranho só o céu azul, a cadeia cheia, superlotação!” 

Consegue ainda fazer uma contraposição interessante sobre o que seria projetar um futuro melhor que realmente o fosse : 

“Tipo uns canto do parafal uns pedido do brilho na estrela cadente, não existia fome, nem facção, nem polícia matando inocente.” 

E na sequência vem o questionamento: 

“Cê faz o que pela sua quebrada, cê faz o que pelos seus irmão, maloka viva rap de rajada, tipo um remédio cura depressão. Informação, Revolução,  tipo passar a visão e se manter vivo…”

Ravi LoboCara feia, arma falsa não mata ninguém e pior ainda não informa ou não esclarece ninguém, isso é lixo produzido de fora da cultura e vendido como música para os nossos jovens no gueto perceberem como algo real. Ravi tem uma consciência muito afiada, que ele tem transformado em música, fruto dessas vivências de rua mas também, de suas vivências em família, com o Lobo Reponsa pai e com a Peróla Negra mãe, dona Neliana. Base com a qual ele conta e poetiza como um casal “punk” pra começar a faixa “Bruxa do Gueto”. 

Ninguém aprende amor, lealdade, carinho, auto cuidado apenas por conta de uma cultura, o Hip-Hop é um dispositivo, uma possibilidade de encontro com um modo de ser e fazer que atribui sentido. Essa faixa onde Ravi Lobo fala dos seus pais e ao mesmo tempo mescla com uma lírica rua, é a prova de que processo de criação revelam a verdade de quem participa. Ravi certamente é um pai melhor pois aprendeu com o processo do seu, da mesma sorte que é um MC capaz de transitar por diferentes sonoridades pela vivência mas também pelos exemplos com quem convive e viveu!

Outra triangulação é feita entre Pernambuco, Bahia e Angola, Diomedes Chinaski, Ravi Lobo e o mano Migas49 fecham na penúltima faixa “Fábrica de Reis”. Menção ao nosso filósofo da physis em Uchuaia, um flow nervoso mais entoado com a discrição necessária, pista como local de lucro existencial como ele ou de outras formas no desespero, Ravi abre para Diomedes rimar sobre suas dififuldades vividas nos últimos tempos, onde o MC de Jardim Paulista – RE, mostra por que é um dos melhores do país quando se trata de rimas. Armações em um fakegame são constantes, mas não sabidas pelo público. Fechando a faixa o caboverdiano radicado em Angola Migas49 dialoga abertamente com o recifense, avisando sobre a inveja que pretende derrubar, onde o mano rimar sobre a importância do trabalho, que é o que de fato vai ficar.

Fechando o trabalho Ravi colocou a faixa “Sonho Com Você (prod. JLZ e Nath)”, onde o mano manda umas linhas pesadas sobre relações na quabrada, dialogando com o pagodão e com o gangsta, em ritmo de drill. Uma faixa que fecha um trabalho muito forte, por todas as impressões acima mencionadas, mas sobretudo por nos demonstrar que a cultura hip-hop pode ser o guia de discos que transitem sob quaisquer sonoridades. 

Em sua estreia solo, Ravi Lobo nos entrega um breve EP que contém o acumulo e a depuração bem feita de vivências que transbordam em sua lírica, com um único conteúdo realmente expressivo, fazer da Linha 8 um imenso cantinho da reflexão!

-Ravi Lobo, uma história verdadeira no drill, Shakespeare do Gueto (2022)

Por Danilo Cruz 

 

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