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Rap Nacional, qual será o seu futuro? – Artigo

O Rap Nacional hoje envolto pela Indústria Cultural e nas redes sociais neste século XXI, perdeu sua combatividade? Como pensamos o seu futuro?

Era começo de 2019, eu conversava com um mano de uma mídia de rap nacional sobre a possibilidade de pôr em prática uma ideia que eu vinha discutindo com outras pessoas do meio, fazer divulgações em rede de matérias de diferentes portais e sites de modo coletivo. Ou seja, um portal tem uma matéria com potencial de se destacar, a gente se organiza, mobiliza os outros e divulga em massa nos sites e nas redes sociais. O objetivo era impulsionar as mídias em grupo, de forma coletiva, mas obviamente a ideia não foi pra frente. Nessa conversa algo me chamou a atenção. Surgiu algumas vezes a ideia de “vamos fazer o nosso sozinhos e com o tempo a gente vai conseguir, vai estourar”. Na hora isso me surpreendeu porque essa fala vinha de uma pessoa que claramente tinha um posicionamento mais à esquerda, ao menos nas redes sociais.

Passados três anos desse fato e observando o cenário atual do rap nacional, as formas de consumo e as mídias, me bateu a vontade de sintetizar um pensamento que eu venho construindo desde então. O título desse texto parece bastante pretensioso, mas meu objetivo não é ser o Nostradamus do rap, de modo que a minha ideia não é falar sobre “o futuro” de fato e sim sobre a nossa capacidade de imaginar futuros possíveis.

Arte como construção de futuro

Um livro muito importante pra mim durante o início da juventude foi O Princípio Esperança, de Ernst Bloch. O livro é dividido em três volumes e embora não seja tão popular, visto que falar sobre utopia em círculos marxistas no início do século XX não era algo tão bem visto assim, carrega reflexões muito úteis para pensar a sociedade atual. O autor exemplifica e destrincha diversas fontes de utopia e subjetividade e fala sobre como esses elementos alimentam nosso desejo de mudança e de construção de um futuro possível. Uma das fontes mais ricas dessa construção, que não fica apenas no campo das ideias mas que alimenta o desejo de ação, é a arte. A arte tem a capacidade de inocular nos indivíduos o desejo do novo, da contracultura, do que está fora do status quo e nos dá a sensação de que é possível construir outras formas de relação, de organização, de sociedade, em suma, de futuro.

Pensando no RAP nacional, na minha visão existem três momentos identificáveis como pontos de virada no RAP, com algumas obras que podem ser reconhecidas como registros de um período e ao mesmo tempo motores de influência que ensejaram nos MC’s e no público uma ânsia por transformação. O primeiro é o da ascenção do Rap Nacional a partir da Old School, cujos grandes representantes, entre muitos outros grupos e MC’s importantes, foram os Racionais. Sobrevivendo no Inferno foi um divisor de águas, influenciou a visão de mundo de uma parcela expressiva da população, salvou vidas e formou várias gerações de rappers que surgiram posteriormente.

O segundo momento, entre 2000 e 2007, teve grande influência da internet, do compartilhamento de música e da pirataria. Talvez, o disco que melhor represente o período seja Piratão do Quinto Andar. O discurso contra a propaganda e a ideia do rap como um produto se encaixavam muito bem no meio virtual da época e o disco disseminava principalmente o incentivo a formas de interação com a arte fora do mercado, através do compartilhamento, da venda informal e da pirataria. A força das ideias e da estética desse período foi tão significativa que parte considerável do Rap nacional underground atual continua sendo influenciado por ele. 

O fechamento desse ciclo começa em 2007 com o início da popularização do YouTube. Também nesse ano o Costa a Costa lança a mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, cuja influência sobre o RAP da época, principalmente mas não só o nordestino, e a consolidação das mixtapes como forma de comercialização musical no Brasil modificou de maneira expressiva o mercado “interno” do RAP. A partir daí surge a mixtape Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe, do Emicida, florescendo uma nova geração que se consolida entre 2007 e 2012, mas também se estabelecem na cena de RAP grupos que carregavam parte da estética construída no período anterior, mas com uma proposta de conteúdo diferente, pra dizer o mínimo. E existe um motivo pra isso.

 Se 2000 a 2007 representou um período em que a internet foi utilizada como instrumento alternativo às formas de produção mediadas pela indústria cultural, na década passada (2010-2020) a internet se tornou o ambiente principal dessa mediação do mercado. Basicamente, os rappers já estavam lá compartilhando suas músicas por download, o mercado tomou conta, inseriu monetização e algoritmos de recomendação e o tempo se encarregou do resto. Poucos anos depois o RAP estava tomado por grupos brancos que dominavam os circuitos de show e embolsavam grande parte do dinheiro que circulava em um mercado em ascenção.

 

A partir dessa provocação surgiu o terceiro período de mudança que teve múltiplas faces, mas que foi influenciado diretamente por Sulicídio, de Baco, Diomedes e Mazili, em 2016. A reivindicação batia de frente com o racismo e a xenofobia, mas a partir disso surgiram outras vozes que entraram com o pé na porta e questionaram a hegemonia hétero, masculina e sudestina presente no rap. Artistas e grupos como Monna Brutal, Rimas & Melodias, Rap Plus Size, Nic Dias, Hiran, Victor Xamã, entre outros, ganharam algum destaque, mesmo que esse espaço ainda fosse muito aquém do potencial desses artistas e fosse conquistado a passos de formiga. Além disso, paralelamente, a partir de artistas como Raffa Moreira e Da Lua, o trap ganhou força no Rap Nacional e influenciou artistas que hoje se destacam nacionalmente.

O que todos esses momentos tiveram em comum foi que as obras produzidas influenciaram fortemente os demais artistas e o público. Existiu a partir delas um desejo de mudança, a construção de valores diametralmente opostos ao status quo e principalmente a crença de que essa mudança seria possível, tanto no RAP quanto na sociedade. Podemos questionar os resultados desse desejo coletivo e o quanto essa construção durou, mas são inegáveis os frutos surgidos a partir dessas obras.

O meio no qual a arte está inserida

Ao identificar esses vários pontos de virada, que foram pinçados pra ajudar na reflexão, mas que obviamente não chegam nem perto de encerrar as mudanças ocorridas na cena de rap, existem pontos que podem passar despercebidos à primeira vista. Duas coisas aconteceram na década passada que foram determinantes para o que parte do RAP se tornou e para o que o público consome majoritariamente. A primeira foi a entrada do mercado no game, através do Spotify, YouTube, redes sociais, Onerpm… e a segunda foi o domínio do público por ouvintes de RAP que não ouvem RAP. A soma desses dois fatores criou uma força contraria a tudo o que o RAP era antes de 2010, por um motivo simples. Quem alimenta os algoritmos que decidem o que é ou não indicado para quem ouve RAP pelas plataformas, que é a maioria esmagadora dos ouvintes, é justamente esse público “não ouvinte”, uma massa de pessoas que só ouve um ou dois artistas, ou que só ouve um tipo de RAP que esteja no hype, mas que cria um peso grande na classificação do algoritmo. Ou seja, tudo tem a ver com números e consumo de pessoas que não têm nenhuma relação com a cultura e que querem ouvir um tipo de RAP que não casa em nada com o que o movimento Hip Hop construiu historicamente no Brasil e com o que o RAP underground continua produzindo até hoje. É por esse motivo, além de outros como jabá no caso das playlists do Spotify, que alguns são mais recomendados que outros, entram em playlists temáticas, aparecem na página inicial dos aplicativos e etc. 

Temos três classes de artistas: a meia dúzia que lucra muito com essa lógica, alguns que estão no meio termo e ao menos conseguem se sustentar e uma massa precarizada que não consegue viver de RAP. Ou seja, essa lógica de consumo fez com que a gente reproduzisse as formas de exploração do mainstream, sem precisar das gravadoras, empresários e produtores pagos por eles. E quem não segue essa lógica se torna invisível, com raras exceções.

Além disso, a relação dos artistas e das mídias com o público é mediada por redes sociais mainstream (Twitter, Facebook e Instagram) que possuem algoritmos para decidir o que vai para a timeline ou não e que tipo de assunto terá mais impulsionamento. Observando esses dois fatores não precisa pensar muito pra entender porque alguns conteúdos são invisibilizados em detrimento de outros, porque mídias de rap que mais parecem o TV Fama ganham tanto destaque e porque um disco como Piratão, dentro do formato de distribuição e divulgação existente hoje, seria impensável. Soma-se a isso todo o prejuízo aos indivíduos gerado pelas redes sociais, com o adestramento provocado pela arquitetura delas, a perda gradual da concentração, a super oferta de “informação” e de microestímulos constantes que esgota mentalmente os usuários e fica fácil entender porque os acessos às mídias é minguado, o público prefere músicas repetitivas e com pouco conteúdo reflexivo e os MC’s que propõem inovações em termos de conteúdo em geral são desprezados.

O que queremos?

Uma das características mais notáveis do rap da década de 2000 era a reflexão sobre a relação arte/produto e a oposição mercado x arte. Isso norteou a produção e a visão de mundo de muitos artistas e de parte do público e se opôs a uma visão de mercado que vinha se impondo desde meados do século XX. O domínio da indústria cultural que antes visava transformar arte em mercadoria, se aprimorou, se transformando em um desejo por transformar o próprio artista em produto. E com a ascensão das redes sociais e dos streamings isso evoluiu para a transformação até mesmo do público e dos usuários em produto, através da análise e da venda de dados produzidos pelos usuários dentro dessas plataformas.

Lembra do início do texto quando eu falei do mano reproduzindo sem querer um pensamento liberal? O Zudizilla diz em I Can See the Sun, “Como que nós vai vencer deles, se nossa ambição ainda é tênis…”. O projeto mais bem sucedido do capitalismo do século XXI é a morte dos sonhos, literal e figurativamente, da visão de futuros possíveis além desse para o qual nós somos empurrados diariamente, é a ideia de que o que está estabelecido é o natural e não apenas uma construção que pode ser negada ou até demolida. E o que supre a ausência desse desejo são os sonhos vazios do consumo e da meritocracia que individualmente podem satisfazer em algum nível, mas coletivamente são vazios. Infelizmente a gente se convenceu dessa busca pela vazio e opera nessa lógica. Nós sabemos que as redes sociais são prejudiciais em termos coletivos, vemos os efeitos disso diariamente na política e na saúde mental das pessoas, mas nos mantemos lá porque é o que é e a gente não tem escolha, embora tenha. 

Sabemos que essa lógica de “favela venceu”, da ostentação e da busca desenfreada por dinheiro em um país com 15 milhões de desempregados, um terço da população passando fome e a desigualdade estralando, não vai dar em nada que preste, mas continuamos repetindo e endossando isso nas músicas, sem pensar no que essa ânsia por consumo pode provocar na cabeça de um moleque negro de quebrada sem a grana que alguns rappers dizem que têm. Sabemos que essa lógica precarizada de centésimos ou milésimos de centavos por reprodução fode a maioria dos artistas independentes e underground, mas continuamos usando os streamings sem pensar em alternativas porque como a gente iria fazer algo diferente disso?

Se inscreva no canal do youtube do Oganpazan

Há uns meses atrás assisti a entrevista do Aganju, MC do underground baiano, no canal do youtube do Oganpazan e ele falava sobre a vontade que o coletivo ao qual ele pertencia tinha de construir um estúdio pra geral colar e produzir a baixo custo, sem lógica de exploração, organizar circuitos de shows e talvez até uma plataforma de streaming própria pra não depender das comerciais. Alguns meses depois vi uma entrevista do Galo de Luta em que ele falava algo parecido no caso dos entregadores, sobre no futuro criar um aplicativo de entrega coletivizado, sem empresário pra intermediar. Em RPA2 Don L constrói o ideário de um futuro possível da forma como ele visualiza e compartilha a construção simbólica desse futuro com a gente através da música. Esses artistas e militantes continuam construindo possibilidades, pensando e incorporando outras formas de interagir, se organizar e produzir. Algumas dessas visões podem parecer utópicas demais, mas tudo parece impossível quando a gente se conforma com o estado das coisas.

Minha ideia de futuro possível passa pela visão de mundo do Don com a visão da cena de rap do Aganju, com o underground fortalecido, circuitos de shows, estúdios acessíveis, fora das plataformas de streaming comerciais, longe das redes sociais mainstream, com as próprias marcas de roupa, sem exploração, lógica de consumo predatório, e sem Lacoste, Nike, Adidas, Calvin Klein… O quinto elemento mediando a relação do público com a arte e não um algoritmo, artistas underground vivendo de rap, sem serem obrigados abandonar a carreira por falta de grana, incentivo ou saúde mental, mais conteúdo e menos fofoca, tretas e divagações sobre nada. Por enquanto, permanecemos pensando na coletividade sozinhos e construindo futuros “impossíveis”. Mas o fato de ser assim não significa que precise continuar sendo.

Os textos em sites de música geralmente terminam com caixas de comentários com login do Facebook e são compartilhados em outras redes sociais, como o Twitter. Eu não uso essas redes há quase 3 anos, mas frequento as redes sociais federadas. Quem quiser conhecer melhor como elas funcionam ou quiser trocar ideia sobre o texto é só clicar no meu nome abaixo, meu perfil no Mastodon está linkado nele.

-Qual será o futuro do Rap Nacional? – Artigo

Por André Clemente de Farias

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