Porque é tão difícil fazer rap sendo mulher e porque é tão necessário ouví-las

Porque é tão difícil fazer rap sendo mulher e porque é tão necessário ouví-las? Em artigo muito necessário Bruna Rocha descortina as repostas

Não esqueço de um dia que eu tava em essipê no show de uma banda de rock de umas minas amigas minhas e o som tava estranho, porque o operador de som tava zuando. Daí comentei com uma mana: o som tá meio estranho né? puts, parece que o cara tá zuando as meninas, né? Puts, tinha que ser uma mina ali na mesa. Daí a sista olhou pra mim e perguntou: tu conhece alguma operadora de som? 

Claro que foi uma pergunta retórica, aqui na Bahia dizemos: um chepo! Mas a real que ali, uns seis anos atrás ou sete, era essa a realidade dura. Muitas mina fazendo música mas muito poucas minas com condições materiais de ocupar a parte técnica e de tá na retaguarda que é necessária e fundamental para quem vai fazer o som.

Anos se passaram, mas a realidade persiste. Os homens ainda são maioria em todas as fases do ciclo produtivo da música e sobretudo no Rap. E a grande verdade é que o sistema machista se mantém a partir de uma rede de favorecimentos, privilégios e uma profunda lealdade entre os cara e é nesse fluxo que as mina se cria com muita porta fechada na cara. Mas resistem! E por que resistem? E porque é tão difícil fazer rap sendo mulher? E por que é tão necessário fazer rap sendo mulher?

A primeira pergunta tá meio respondida, mas tem outros fatores tão importantes quanto ou às vezes até mais. Quantas mulheres têm condições de seguir o sonho de ser artistas na sociedade patriarcal que vivemos? Quantas tiveram que abandonar os sonhos para cuidar de sua família, sejam filhos ou os pais, visto que a tarefa do cuidado e dos trabalhos reprodutivos quase nunca é compartilhada com os homens? Quantas abriram mão de suas carreiras pq engravidaram e foram ser as parceiras, produtoras, braço direito de seus maridos rappers? Primeiro obstáculo: o tempo. As mulheres têm objetivamente menos tempo para se dedicar ao seu próprio trampo pq a nós é dada a tarefa de cuidar de todo mundo e o cansaço muitas das vezes paralisa e desestimula.

Segundo obstáculo: o machismo é violento. Quantas minas deixaram de frequentar a cena por conta de assédio? Quantas deixaram de produzir porque os cara ouvia e dizia que seu som era de qualidade inferior? Quantas têm dificuldade de fazer um curso ou mesmo passar tempo em casa se dedicando a estudar beat, flow, conhecer os equipamentos de som, aprender a lidar com toda a parafernalha da música? Quantas foram agredidas, abusadas, exploradas, e viram seu algoz sendo abraçado pela cena e por isso se sentiu obrigada a se retirar?

Existem exceções? É claro. Porque as mulheres seguem sendo barril dobrado. É talento que transborda, garra de pantera negra, dentes de leoa e madeira de dar em doido. Não é à toa que a cena cresce e o contexto da mediatização vem facilitando muito as coisas. Primeiro, por democratizar os debates em torno do feminismo e publicizar as denúncias que até então eram abafadas pela falácia silenciadora de: não vamos queimar o movimento. Quando na verdade quem queima o movimento são os abusadores, os agressores e todos aqueles que dificultam que a voz mais potente das periferias urbanas tenha eco no HipHop: as mulheres pretas.

E por que que é tão fundamental assim que as mulheres façam RAP? Primeiro, porque somos maioria da população. Segundo, pq somos chefes de família nas periferias, ninguém entende melhor dessa realidade do que nós. Terceiro pq se RAP é rua, o RAP com maioria de homens conta a história pela metade. Pq ser mulher na rua não é a mema coisa que ser homem. A vivência é muito diferente. Se uns te enquadram e outros te protegem na rua, para mulheres, os dois grupos assediam, coagem, estupram e matam. Não tô falando das exceções não, sei que ela existe, mas tô falando da regra memo. 

As mulheres seguem sendo as principais vítimas da violência nos territórios, ainda que o genocídio atinja em maior quantidade os homens, as mulheres são profundamente afetadas por estas mortes, pois elas que têm que administrar as famílias e os territórios depois de uma perda violenta. Tive oportunidade de conhecer movimentos de mães que perderam seus filhos para a violência policial e estas mulheres são as sujeitas mais sofridos que a humanidade já produziu.  A maioria delas adoece, a maioria é abandonada pelos maridos, elas perdem a alegria de viver, muitas dizem “estou morta por dentro”, mas seguem vivas não por gosto, mas por sede de justiça. Seguem vivas apenas para honrar o sangue de seus filhos. É bonito? É heróico? Nâo, é deprimente! Não teve uma entrevista que fiz que não me escondi no banheiro pra chorar, pois não há precedentes para a dor destas mulheres.

Isto sem falar no feminicídio, que cresce em números alarmantes mesmo com tanto avanço nas pautas feministas. Aliás, ouso dizer, por causa mesmo destes avanços. Em retaliação. Não estou dizendo que existe problema A maior que problema B, estou dizendo que tem uma dimensão da realidade, das durezas, das dores e também das potências, das belezas e das possibilidades revolucionárias da rua que só pode ser traduzida pela boca de uma mulher, seja ela cis ou trans, com suas especificidades.

Portanto, é fundamental sim ouvir o que as mulheres tem a dizer e apreciar, porque o que não falta pressas minas é talento e rima boa. De Dina Di a MC Soffia, são muitas mulheres que estão revolucionando a cena não só com suas letras e beats ferozes, mas com uma postura e um entendimento que muitas vezes falta na cultura hip-hop. A autoorganização das mulheres no RAP tem muito a ensinar pros caras que perdem tanto de sua energia tentando fuder com o irmão. As mina tão construindo um império com quase nada, construindo o dobro com menos da metade e tão fazendo bonito.

São coletivos e mais coletivos surgindo Brasil adentro, festas para fortalecer, como aqui em Salvador a Batalha das Bruxas, projetos conjuntos como o Rimas & Melodias, Cachorra Kmikaze da Tasha, Traice & Ashira e excelente projeto Psicopretas, que dão o tom a um RAP cada dia mais diverso e pautado em valores de solidariedade e coletividade que são tão caros à vida das mulheres, visto que só sobrevivemos neste mundo bizarro graças às redes de mulheres que nos seguram a cada queda, a cada tropeço.

Não estou falando de inclusão, pois ninguém aqui é dono de nada pra incluir ninguém, tô falando de respeito, empatia e escuta. Se a opção for ficar atrás da porta segurando a fechadura, a queda vai ser certa, porque não vai ser só um pé não, vai ser o pé de uma galera pra derrubar todas as portas que ousarem querer se fechar na cara de uma mina que rima e que resiste.

E se você, boy, rapper, apreciador, beatmaker, MC, produtor, investidor, está afim de sair da zona do privilégio e fortalecer o fluxo das mina, dá pra fazer um pouquinho mais do que só ouvir o som e recomendar no twitter. Partilhe o seu quinhão com uma mina. Ouvir minas é bom, mas melhor mesmo é dizer: “cola aí mana, vamo pensar um festival juntxs”. “Pô mana, sei que tá dureza, meu estúdio tá à disposição viu”. “Mana, soube de um edital foda prum curso bala, vou mandar o link pra você”. “Mana, olha essa referência foda aqui de beat, o que você acha?” 

As mulheres são sujeitos, o protagonismo pode ser de todas e de todos e com as mina fica muito mais fácil o baguiu virar pra todo mundo. E não tô falando de apadrinhamento não. Tá na hora da gente abandonar essa cutura paternalista do colonizador e exercitar de fato a cultura ubuntu. Eu fortaleço ela não pra ela ser minha subalterna, mas pq fortalecendo ela, eu fortaleço a comunidade e com a comunidade mais forte eu também fico mais forte, É assim que se fala.

E pra quem tá interessadx em conhecer mais o trampo das mulheres no RAP, fica indicação de dois documentários que assisti nesses últimos tempos e que traz informações importantes. Claro que são limitados, ambos têm um foco no eixo sul-sudeste, mas é sempre um começo para depois ir buscando outras coisas. São eles O Protagonismo das Minas: A Importância das Mulheres no Rap de SP  da Nerie Bento, e As Minas do RAP , da Juliana Vicente. Certamente tem muitos outros registros, aceito indicações!

Aqui também segue algumas indicações de minas que eu curto, sou fã, acompanho, acho foda e que, para além de fazer rima, tão refazendo a cena a partir de processos de autoorganização das mulheres no RAP:

Alt Niss, AIKA, Aurea Semiséria, Bia Ferreira, Clara Lima, Clé, GABZ, Gabi Nyarai, Karol de Souza, LAELA , Laura Sette, Luana Hansen, Preta Rara ,  Yzalu  

-Porque é tão difícil fazer rap sendo mulher e porque é tão necessário ouví-las

Por Bruna Rocha

Emmer’C & Má Reputação

 

 

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