Original Camacã e a luta ancestral contra a Babilônia

Original Camacã, novo manifesto rastafari de Prince Áddamo nos convoca à luta e nos mantém conscientes de mantermos nossas conexões ancestrais africanos.

“- Todos os africanos gostam de reggae. Está no nosso sangue.

– Eu não sou africano. 

– O que?

– Eu não sou africano …

– Broder, você é africano. 

– Não sou. Posso ser negro, mas sou de Surrey. 

– Comé que é?! Que conversa é essa? A Babilônia fez uma lavagem cerebral em você. Puseram detergente no seu cérebro.

– Quem é a Babilônia?

– De onde tirou esse cara? Do que está falando? A Babilônia não é uma pessoa. É o sistema político que oprime todas as pessoas negras. 

– Onde fica no mapa?

Risos, muito risos!”

O diálogo acima foi extraído de uma das cenas mais importantes do episódio 4 da série Small Axe do diretor britânico Steve McQueen. Nela, Alex Wheatle está sentado na cadeira do barbeiro enquanto as pessoas conversam sobre acontecimentos presenciados nos últimos dias. Assim a cena se desenrola até chegar no diálogo acima entre Alex e o homem que irá fazer-lhe o corte afro que havia solicitado. 

Alex cresceu em orfanatos, tendo pessoas brancas como figuras de autoridade responsáveis por lhe “instruir”. Já adulto, entra num programa do governo de reinserção social, que o leva a um bairro negro de Brixton, no qual ele entra em contato com sua cultura ancestral e aos poucos vai recebendo a formação política que o leva a entender o contexto social no qual está inserido. 

Este diálogo é importante para nossa matéria, por mostrar o lado político do rastafarianismo. A comunidade negra britânica é formada por imigrantes oriundos de ilhas caribenhas, tendo a Jamaica como principal representante. Sendo assim, a presença da cultura jamaicana, em especial de sua música, tem papel central nessa comunidade. 

Por isso o barbeiro usa a Babilônia como metáfora para representar o sistema político social, o capitalismo, que oprime brutalmente as pessoas negras. Ele busca conscientizar o jovem Alex sobre o modo como o arranjo político capitalista o enxerga e busca administrar a vida de pessoas como ele. 

Não deixa de chamar atenção de Alex para o reconhecimento de sua ancestralidade através da observação de que sim, ele é africano. E é por isso que o reggae corre em suas veias. Porque o reggae é mais do que música, o reggae é uma das armas de libertação, que permite lutar contra a opressão e consequentemente jogar por terra a Babilônia. 

O reggae é libertação porque conscientiza os negros em diáspora sobre sua origem africana, sobre a realidade opressora na qual vivem, sobre a necessidade de lutar contra essa opressão, superá-la e enfim, encontrar uma realidade de justiça e prosperidade. 

Prince Áddamo sempre seguiu os preceitos do rastafarianismo, o reggae é sua vida! Vive através do reggae, e este vive através dele. Sem o reggae sua vida não tem significado. Por isso mesmo a música de Prince Áddamo transcende a função comercial de entreter que a Babilônia, pra usar a metáfora do barbeiro, estabeleceu para a música cuja função original é reverenciar a sacralidade da vida, é fortalecer para a luta, a música não está desassociada da vida social. Por isso é importante ouvir o que diz o rasta. 

Original
Capa de Original Camacã. Arte por Luiz Terra.

O novo Ep de Prince, Original Camacã, é fruto da luta pela sobrevivência numa realidade em que a Babilônia arrefece suas investidas e nos fustiga cotidianamente. A pandemia no Brasil é conduzida como meio de exterminar a parte da população fragilizada socialmente. O governo, que deveria combater a pandemia, a usa para encher os bolsos da cúpula governamental, ao custo da vida de mais de meio milhão de brasileiros. 

Original Camacã só foi possível porque houve mobilização de uma rede de companheirismo desenvolvida através de um projeto de crowdfunding, que permitiu levantar a verba necessária para produção e gravação do Ep. Impossibilitado de fazer shows, Prince, como bom guerreiro de Jah, encontrou meios de resistir e permanecer firme.

Quem conhece o trabalho de Prince sabe que seu envolvimento com o reggae tem raízes profundas. Pois o reggae, como diz o barbeiro, está no sangue de todo africano. Isso porque todo africano conhece sua história, sabe a respeito da transformação de seu povo em mercadoria pelo europeu e está consciente de que a luta contra essa conversão ainda está sendo travada.

E a música de Prince Áddamo reflete essa luta. Basta ouvir seus trabalhos, desde Viva o Natural (2014), passando pelos singles Cartão Postal (2018) e Gente Maldosa (2019).  Original Camacã perpetua essa postura combativa da música de Prince. 

Abre o Ep a música Estatística Mente, cujo título faz um jogo de palavras que remete à manipulação das estatísticas pelas secretarias de segurança pública a fim de apontar diminuições do número de violência em determinadas localidades. A letra denuncia a opressão exercida pelo estado sobre as pessoas pretas que moram nas periferias. A diminuição da criminalidade, nesta estatística da morte, é representada pela quantidade de “cpfs cancelados” nas ações da PM nas periferias.  

A  polícia militar é usada como instrumento que efetiva o exercício de opressão, que podem ser vistos nas chacinas promovidas nas periferias, como a Chacina do Cabula, efetuada em 2015 e que contou com uma passada de pano tremenda do governador Rui Costa para os peemes envolvidos. 

OriginalO refrão da música pede para que pare a matança do povo preto, das pessoas do gueto. Há na letra a expressão da dor sentida pelos familiares e amigos que tiverem seus filhos, filhas, irmãos, irmãs, maridos, esposas, amigos e amigas mortos, mortas, desaparecidos, desaparecidas depois de ações da peeme. A música denuncia o assassinato sistemático da juventude periférica e do constante clima de terror no qual vivem as pessoas nas favelas Brasil afora. 

A estrutura sonora com a qual o lamento melódico de Prince se articula, confere à música seu caráter melancólico, sem fazê-la perder o teor combativo presente na letra. Por isso mesmo, a cadência por ela criada, gera o swing necessário ao transe que coloca o ouvinte imerso ao som e à mensagem contida na letra. 

Sem amor fica difícil ter disposição para manter a luta viva. Quando fazemos algo movidos pela paixão, o empenho é maior, o amor é o combustível que nos mantém resistentes nas trincheiras.  Em Cisma Prince aborda o amor e as conexões que ele estabelece entre as pessoas. 

Destaca principalmente seu caráter de reciprocidade entre os amantes, capaz de gerar o querer bem do outro e se sentir bem com este estado de espírito de quem se ama. Podemos expandir essa imagem para as relações fraternais e de companheirismo que travamos com as pessoas que estão do nosso lado do front. Mostrando a necessidade do cuidado mútuo entre os pares para que avancemos coletivamente na construção de uma comunidade que se auto preserve. 

Mantendo o desenvolvimento dessa compreensão do amor como elemento vital para a vida humana, Reflexões de um Cidadão Comum, questiona sobre a angústia diante da existência. Nossas expectativas acerca dos desdobramentos da nossa vida, das consequências de nossas escolhas, da dinâmica existencial que nos leva às dores e às alegrias, a busca da superação das dificuldades e da melancolia, a constante perseguição da felicidade a nos escapar assim que a alcançamos. Os olhos que espelham todo turbilhão de sentimentos e sensações que tentamos esconder no interior de nossas almas. 

 Essa música possui uma carga emocional acentuada e o desenvolvimento pouco a pouco do instrumental ao longo da introdução vai gerando esse ambiente emotivo, que nos convida à imersão ao contato com o abstrato de nossos sentimentos. Temos um contato com o lado meditativo do reggae, que traz à tona sua sacralidade, responsável por nos conduzir de modo natural, quase automático, pois ativa nossos instintos, ao transe.

Concomitante ao desenvolvimento tecnológico promovido pela humanidade, ocorreu o domínio da natureza. Sua conversão em matéria prima, a compreensão da natureza como mero objeto inanimado a ser explorado em benefício humano. Aliás, em benefício das castas humanas que monopolizam o poder político, social e econômico o qual é usado para escravizar o restante da população. 

Aqui Se Faz, Aqui Se Paga levanta essa questão, encerrando o Ep com esse canto de contestação e conscientização sobre repensarmos nossa relação com a natureza. A necessidade de construirmos nossa compreensão sobre a mesma como um ser vivo como nós. Expõe a necessidade de voltarmos a viver o natural. 

Original Camacã é uma referência às raízes de Prince, sempre prestando respeitosa reverência à sua terra, celebrando as suas origens. Precisamos manter essa ligação, precisamos ser uma península, uma extensão de onde viemos, para sempre termos nosso referencial cultural, social, sabermos quem somos. Pois se formos uma ilha solta no mar, a Babilônia irá fazer isso por nós e podemos não ter um barbeiro que nos conscientize sobre a prisão invisível que nos cerca e faz de nós servos pacíficos de senhores ferozes. 

***

Sobre as participações do projeto Original Camacã

O EP conta com a participação dos músicos João Teoria, Angela Lopo e Vinícius Freitas, que já gravaram e acompanharam artistas a exemplo de Lazzo, Gilberto Gil, Edson Gomes e Carlinhos Brown, além de Juliano Oliveira, Israel Lima e Sidnei Santos ,atuantes em diversos trabalhos e que já acompanham Prince a alguns anos.

As composições tem parceria com Zezão Castro e Jodil Sobral O EP traz o panorama do que estamos vivendo na atualidade , sendo mais um braço de apoio às lutas dos povos originários e da população que vive nas periferias

A escolha de cada faixa foi bastante criteriosa, apresentando o EP como uma forma de agradecimento a todas as pessoas que acreditaram, acolheram e apoiaram o projeto

Articles You Might Like

Share This Article