Preto Sem Açúcar, o terceiro disco de estúdio do grupo baiano OQuadro e sua polifonia de ritmos e líricas entre a banda e as participações!
Do conflito interno de um inferno particular à diáspora do Preto Sem Açúcar
Em seu novo disco de estúdio, Preto sem Açúcar (2021) a banda de Ilhéus no sul da Bahia, OQuadro, elaborou uma construção cheia de participações de estilos e gêneros diversos, alcançando assim uma polifonia de vozes que atravessa todo o disco. Soma-se a isso uma ideia presente em todo o disco, que é uma variação constante de ritmos, algo já “comum” nos discos anteriores, que neste alcança seu melhor resultado até então.
O disco chegou às plataformas nesta última sexta feira e foi lançado pelo selo musical Isé, além de toda a qualidade musical, a obra apresenta também uma arte visual muito bem pensada. A concepção visual do trabalho é uma parceria entre Orixá Africano e Izolag, que representaram o Preto Sem Açúçar em alguns de seus momentos cada um referido a uma música. Esta arte pode ser observada no youtube, porém deveria também estar em bonitos encartes de CD, Vinil e fitas K7, além obviamente de poderem ser apreciados em quadros, dada a beleza das fotos.
O desenvolvimento de uma linguagem musical própria não é algo simples e ou comum, muito pelo contrário, gostamos de rap ou de outros gêneros e muitas vezes admiramos artistas que inserem pequenas variações dentro de seus gêneros. Entonações, ataques, timbres vocais, mas sempre nesses casos, dentro de um molde já previamente desenvolvido pelos pioneiros, absorvido pelo artista e conhecido pelo público. OQuadro, ao longo de sua trajetória nunca repetiu fórmulas, como uma banda que reúne muitos músicos, com influências diferentes entre si, do grindcore ao reggae, da música eletrônica a MPB, do jazz ao trip hop, seu trabalho sempre absorveu e desenvolveu essa potência da diferença.
Isso se refletiu e se reflete com muita intensidade no novo disco, com a beleza e a força de quem não faz o esperado, surpreende e demonstra que na música e na arte de modo geral é a busca que precede a realização completa. Procura essa, que no caso da banda OQuadro possui uma longa história digna de um documentário, de livros e filmes autobiográficos, pois material humano, histórico e artístico para isso não falta. E neste sentido, em todos os aspectos, Preto sem Açúcar se diferencia por demais de tudo que tem sido feito e do que foi feito em termos de rap no Brasil.
Em um período histórico onde os mais velhos são descartáveis, onde a história passa por revisionismos absurdos, onde o conhecimento é constantemente desvalorizado, onde há um império da novidade redundante, OQuadro e o seu Preto Sem Açúcar (2021) é a diferença. Primeiro por ser uma banda de rap em atividade há mais de 20 anos, composta por artistas com média de idade de 43 anos, mas que nesse disco mostram que antiguidade não necessariamente é posto, e que antes é preciso prová-la. Segundo por ser um dos poucos grupos que não pararam no tempo, que não ficam falando merda na internet, que seguem como pesquisadores, como MC’s que discotecam, como instrumentistas e poetas que estudam de fato seu ofício, como pessoas que se desenvolvem.
Resultados grandiosos como esse disco Preto sem Açúcar, acumulam tanto sofrimento, dúvidas, esforço, vivências, estrada, que é até difícil dimensionar isso em relação à novos artistas que com 2, 3 anos de carreira reclamam do mercado. Ou ainda, comparar um trabalho desses com jovens artistas alçados ao patamar de gênios com pouquinhos trabalhos e muitos irrelevantes em termos de construções e propostas realmente novas.
Ora, sendo um grupo majoritariamente negro, sem capital para investimento em matérias pagas em grandes portais, produzindo com intervalos grandes, a permanência no underground é certeira. A sedução dos influencers que ditam as regras para o público algoritmicamente guiados custa dinheiro, dinheiro para aparecer em portais “grandiosos”, para aparecer em sugestões no youtube e para adentrar nas playlists do momento. Infelizmente, ao longo de três discos, uma mixtape, alguns audiovisuais, turnê europeia e participação no Festival Roskilde não lhes rendeu esse capital, e não apareceu nenhum investidor montado na grana para impulsionar o “trabalho”. Essa é a realidade de pretos artistas na diáspora!
Contra esse e outros mecanismos de morte planificada pela branquitude, Preto sem Açúcar chega com uma potência muito bem direcionada e conceitualmente elevada. Esse novo disco d’OQuadro foi construído como uma máquina louca e singular que absorveu mais de 10 participações e ainda assim encontra uma identidade muito própria a quem conhece o trabalho da banda. No caso do OQuadro a identidade é fixada num momento musical e estético retirada do devir criativo cultivado pela banda!
Participações já amigas e novas parcerias que engrandeceram por demais o trabalho e que certamente merecem ser abordadas com mais profundidade em um faixa a faixa:
O disco abre com uma faixa que é uma carta de intenções e apesar de estar em primeira pessoa, “Um Brinde a Minha Gente” se configura também como um solo do qual o próprio personagem conceitual do disco parte. Com a produção do Ricô Bass e a percussão de Jahgga, essa música se diferencia do restante do disco e ao mesmo tempo é um elo de ligação com as origens da banda e o seu alicerce na cultura hip-hop. Em suas linhas, Nêgo Freeza cita o escritor beatnik Jack Kerouac e o ícone Tupac Shakur, elaborando um relato onde as violências e o extermínio racista entram em um diálogo entre o individual e o coletivo. Nesse pique, Nêgo Freeza aka Exu Ciborgue produz uma abertura que leva o ouvinte ao universo de nascimento de Preto sem Açúcar, mas não os prepara para o que vem a seguir.
Acorda baby, Jah Iluminou
O caldo começa a engrossar e vai seguir lentamente em banho maria, sem com isso estar ou permanecer morno. A bonita voz de Ricô Bass que é um músico, produtor e cantor em pleno desenvolvimento, abre a faixa como nos chamando para um novo dia, novo som, novas possibilidades. Com Jef Rodriguez em alto nível e a grandiosa Ellen Oléria na voz e no flow cheios de Sauce, junto a Ricô que abre dentro da estética trap com as guitarras de Pedro Itan e o violão de Rodrigo Dalua, dando sustança. Política e suingue irresistível em “Kalashnikov”, cantos e rimas que nos levam conscientes rumo a negação de diminuições por nossas origens e reconhecimento de trabalhos duradouros: “Semente finca na terra, brota raiz nas estrelas”.
O aspecto atmosférico presente na produção de Ricô Bass de “I Can Feel “ como na produção da faixa anterior abre um espaço lírico para o seu canto e rimas, com Nêgo Freeza pulando na faixa com uma verdadeira aula de flow e lírica. Mesclando entonações e andamentos diferentes em suas linhas, Freeza nos faz “feel the power” de sua caneta, dialogando com a citação de “One Love” de Ricô com uma citação dupla de Tim Maia e Racionais MC’s, entre réu confesso e malandrão insensível! Essas duas faixas produzidas por Ricô poderiam ser brilhantemente lançadas como um single duplo dada as suas similaridades e força. E por fim, mas não menos importante, a música ainda conta com Orixa Africano (bateria), Ricô (baixo), Jahgga (percussão) e Rodrigo Dalua (guitarra), o corpo e o espírito d’OQuadro!
É do DJ Mangaio o beat mais pesado e adequado a “Motor da Fome”, que traz uma parceria muito bonita de um “velho” e de um “novo” MC do rap baiano. Jef Rodriguez e Davzera nos proporcionam uma conversa realmente bela. Enquanto o coroa desenha um retrato de apuro realista e firme de nossas quebradas, Davzera ao seu estilo caminha ao cosmos, barco e ancora navegando com suavidade pelo mar turbulento do coro comendo na casa de Noca. Aqui como em muitos momentos a guitarra de Dalua segue cheia de apuro técnico e sensibilidade floreando o beat junto aos synth de Mangaio e a percussão de Jahgga, “vocês acabam falando demais” diz o Ricô Bass.
“Canto bonito do bem-te-vi Pipa cortando igual bisturi Corta pra cena do matagal Um corpo boiando, um menino ri /Criança brincando nas ruas Enquanto o feijão tá no fogo As mães tão na porta da creche Polícia passando de novo /Arrocha na casa do lado O cheiro é de arroz com ovo O ronco das motos subindo Diz quais ligações do asfalto com o morro”
Uma doce melancolia por um futuro pelo qual lutamos todos os dias, embebe a faixa “Asas” que traz um título muito bem escolhido. Mais do que nunca necessitamos de asas – que não sejam de cera – para sermos capazes de sobrevoar o caos em que nos encontramos. A voz de Jorge du Peixe é de uma rouquidão que coaduna com a beleza melancólica e esperançosa da faixa, sobrevoando os mangues recifenses – onde hoje o Nêgo Freeza também reside – até o nosso Rio Vermelho.
Às citações dos filmes, o argentino Relatos Selvagens e o Deus da Carnificina do mestre Roman Polanski, nas linhas do Jorge du Peixe (Nação Zumbi), o MC de Ipiaú acrescenta as observações sobre prudência necessária para se reconectar ao cósmico e a nossa herança ancestral! Ao mesmo tempo em que desvenda o mecanismo de apaziguamento democrático burguês por parte da branquitude de esquerda ou de direita. Enquanto o sangue da negritude segue banhando as calçadas a bilhões de litros ao longo desse país! Orixá Africano é o responsável pela bateria dub que encerra a faixa e estende a denúncia e a esperança!
O beijo da morte não cala meu norte!
Alguns sujeitos só produzem certas imagens poéticas porque vivenciaram na pele, em sua sensibilidade mais profunda, coisas que fogem aos demais, que lhes são intangíveis. Não tem ficção que pague isso! Sem Rans como um dos MC’s do OQuadro faltava um pedaço e isso começa a ser entendido nessa faixa, um dos petardos mais bem elaborados do Preto sem Açúcar.
A lírica de Rans Spectro é única em sua construção, enfileirando elementos em um processo capaz de realmente dar um nó na orelha do sommelier de rima mais desavizado. Uma “Caça” à vida buscando a luta, aceitando humildemente a condição de que o dedo em riste necessita também de prudência. A sexta faixa do disco traz a serpenteante voz de Xênia França que canta a fé no punhal e na pureza das àguas que nos revigoram!
O jovem mestrão Rafa Dias é o responsável pelo arranjo de base, com Mangaio e Pedro Itan mandando os synth bass dos diferentes andamentos que entregam o charme e a força da faixa. A Vanessa Melo cola com seu clarinete e com a voz enquanto Mangaio e Orixa Africano apresentam os samples, com a percussão sempre diretriz de Jahgga, preenchendo também. “Caça” é uma aula…
A influência reggae está aqui em “Não Vai Passar Batido” e é talvez a faixa mais convencional/conhecida pelos que acompanham o trabalho da banda. Com as programções de Gabriel Marinho, Dalua no facão e na guitarra solo, bateria do Orixá Africano e Jahgga nas congas, o arranjo ficou a cargo de Ricô.
Com Freeza abrindo os trabalhos mais uma vez temos uma variação de flow e uma lírica afrocentrada que mete o dedo nas feridas recentes e constantes ao povo preto. MCDO (Afrocidade) é polivalente demais, canta e rima com muita qualidade na faixa, queimando políticos, polícia e pastores fascistas, denunciando os fakes brancos que o neocolonialismo enceta nas redes sociais e coadunando ao excelente refrão do Orixá Africano.
O baixo de Ricô elabora uma linha groovada irresistível onde Rans Spectro já pula nervoso com uma sequência de rimas ardentes como creolina em ferida. “Meu Game” mostra ao ouvinte que é impossível copiar o game desse time. Russo Passapusso (Baiana System) chega na missão com a qualidade já amplamente conhecida, inclusive pelo Grammy, sapocando em mil e um grau. O approach instrumental da faixa é matador, seja no sax de Paulo Cedraz, ou na guitarra com timbre jazzístico de Rodrigo Dalua.
A faixa nove conta com uma poesia do grande humorista Seu Pimenta que se por um lado não compromete o disco e marca uma postura político racial, traz uma poesia medíocre e muito abaixo do que o disco apresenta musical e esteticamente.
A forma como Ricô cresceu musicalmente, artisticamente é de uma beleza somente comparável a “Santo”, aqui com a participação da Tuyo nas vozes de Liu e Lia, com as rimas de Jef Rodriguez e com a produção em parceria com Pedro Itan. Uma música linda que conjuga ancestralidade, candomblé e amor preto, de modo tocante, suave e longe de qualquer clichê! Já em “Fala Pra Mim” sobe-se novamente o ritmo, com Rans e Freeza dividindo as rimas, em andamentos diferentes do refrão que traz o Rodrigo Piccolo (Mato Seco). Rap e reggae em comunhão de jogo solto!
Entre outras proezas, OQuadro consegue nesse disco colocar interior e capital em diálogo, apresentando Cronista do Morro (Liberdade-Salvador) e Billyfat (Ilhéus) com o meio de campo de Jef Rodriguez que tem salvo conduto.
“Campo Minado” aborda com muita força um ambiente comum nas cidades da Bahia, os Paredões de Pagode, atualização baiana dos sound systems jamaicanos e das aparelhagens do funk carioca. Mas uma vez Jef consegue criar um território através da poesia, com o beat pesadão do Orixá Africano servindo de matéria “orgânica”. Cronista do Morro, realmente braba apresenta a perspectiva feminina preta do corre e da situação contextual de Salcity, enquanto Billyfat cita BK e o Deus do furdunço alertando para necessidade de que os playboys saibam como chegar, nas quebradas e nas minas!
“Acende o pavio e apavora, se não curtiu a gente resolve lá fora, tipo faroeste pegada cangaço ficou no cagaço e agora?”
A inserção de vinhetas aqui foi certeira, a fala retirada do seriado American Gods vem para mostrar que todo o andamento até aqui tem a sólida base da história compreendida criticamente sob a perspectiva afrocêntrica.
Sem necessidade de isqueiro os caras mantém o fogo acesso com a determinação de verdadeiros guerreiros bantos, aqui em “Ascende” com Freeza e Rans dividindo as rimas mais uma vez e cada qual ao seu modo mantém a luta firme nas suas linhas. Com o beat do RDD e colaboração do Orixá Africano é uma das faixas mais pra cima do disco parecendo que temos uma flauta doce conduz a melodia do beat sinistro.
A chegada ao DJ Sankofa é a comemoração e a música de preparação para a guerra, uma das figuras mais relevantes nos últimos anos na cena baiana na difusão da música africana. DJ Sankofa é o elo que liga “materialmente” o disco a África e a faixa “LULULULULU” é só música eletrônica africana. Nos levando a meter dança já em êxtase por termos a alegria de ver tanta luta alcançar um disco como esse, se plasmar dessa forma, com tanta elegância virtuosa!
Chegamos ao fim do disco e a fala de Beatriz Ferreira nos informa sobre a necessidade de buscarmos outra nutrição para o corpo de modo a sermos capazes de meter dança com DJ Sankofa e com todas as nossas manifestações pretas, na rua e na guerra. A fala é necessária e nos mostra como o conceito do disco pretende abordar diversas camadas da vida em diáspora, amor, luta, diagnóstico histórico e espiritual, mas também a nutrição, pois o colonialismo e o neo-colonialismo possui como projeto a aniquilação total do povo negro, utilizando formas diretas e indiretas.
Ao fim e ao cabo desse disco, podemos perceber de que forma Preto sem Açúcar é uma confabulação estético política de primeira ordem, um horizonte a ser conquistado coletivamente como foi o Quilombo dos Palmares.
Por isso talvez seja tão difícil escrever sobre OQuadro, pois estamos diante de uma banda que não consegue ter um marca muito bem definida, apesar da força. Afinal, são oito artistas, oito vidas cheias de contradições, pouca pose, muita história e talento mas sobretudo que funcionam de um modo ímpar juntos, sem igual no rap nacional! Preto sem Açúcar é esse megazord com diversas outras peças, plasmando em fonogramas um devir irresistível.
-OQuadro e as polifonias rítmico-líricas em Preto Sem Açúcar (2021)
Por Danilo Cruz