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Uma entrevista com a dama da canção: os calos de Alaíde Costa

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O Oganpazan teve a honra de entrevistar uma das maiores cantoras da história do Brasil, a dama da canção, Alaíde Costa. Confira a matéria completa. 

O Brasil, como um país colonizado, possui memória claramente curta e seletiva, principalmente quando o assunto é a preservação das artes em geral (pensando interdisciplinarmente). Porém neste artigo, o foco será clínico no pilar musical. 

Não são poucos os músicos brasileiros brilhantes que foram totalmente esquecidos por aqui, apesar de – em muitos casos – possuírem vasto reconhecimento internacional. Mas por que isso acontece? No ano de 2023, por exemplo, 3 das maiores vozes da música popular nacional nos deixaram. Falo sobre as cantoras cariocas Sueli Costa, Leny Andrade e Dóris Monteiro.

E sabe o que é mais intrigante? Nenhuma das grandes “mídias especializadas” mencionou o ocorrido. É esse tratamento que leva grandes expoentes da cultura ao absoluto ostracismo e para exemplificar, é possível mencionar nomes de elevado quilate, como o do pianista, cantor e compositor Johnny Alf, por exemplo, mestre que poucas vezes é rememorado nos tempos atuais.

A impressão é que principalmente dentro da bolha de redes sociais, o que vale para tudo é o hype. Caso a informação não apareça nos ditos “maiores canais de música do Brasil”, quer dizer pura e simplesmente que o assunto não engaja. Mas será que não engaja mesmo? Qual é o critério para falar sobre a passagem do João Donato e esquecer da Sueli Costa, Leny Andrade e Dóris Monteiro? 

Todos os veículos de renome parecem fazer parte de um pacto secreto para que as notícias estejam vinculadas apenas aos modismos passageiros, revelando um modus operandi totalmente sem critério.

Essa mesma crítica se prova cada vez mais amadora, léguas submarinas do que se espera de um canal compromissado com a informação e que não leve em conta apenas a capacidade de viralização de determinados conteúdos, mas sim sua riqueza e profundidade.

A colonização acabou há séculos, mas o pensamento de colonizado está impregnado no Brasil. E para exemplificar isso, basta ressaltar a dificuldade patológica que o país possui para celebrar seus ícones em vida. Mas ainda bem que existem excessões.

Uma delas é a cantora carioca Alaíde Costa, carinhosamente conhecida como a “Dama da canção”. Nunca vou me esquecer da primeira vez que escutei sua voz num disco. Foi numa de suas colaborações com um dos gigantes do piano brasileiro, o João Carlos Assis Brasil, irmão do não menos genial Victor Assis Brasil, às do saxofone, que faleceu prematuramente em 1981.

João Carlos nos deixou em 2021 mas ao longo de mais de 50 anos de carreira, trilhou uma longeva e prolifica trajetoria musical, principalmente na música erudita – diferente de seu irmão, que estava imerso no Jazz e foi muito importante para o desenvolvimento do estilo no Brasil – apesar da carreira meteórica. João Carlos gravou 2 discos junto da Alaíde Costa, o primeiro (homônimo) saiu em 1995 e o segundo (“Voz e Piano”), foi liberado em 2006. 

Lembro de ouvir ambas as gravações e ficar maravilhado com os arranjados. O trabalho do João Carlos ao piano valoriza a arte do acompanhamento e a Alaíde Costa sempre encontra caminhos surpreendentes para levar sua voz. 

É  notável observar como ela canta em arranjos intrincados – de mestres como João Donato, Maestro Lindolfo Gaya e Egberto Gismonti, por exemplo – com uma facilidade, estilo, sentimento e graça totalmente próprios. Bastam pouco segundos pra cravar que é a Alaíde Costa cantando, mesmo que a composição não seja dela.  

As palavras surgem como um conselho. Devagarinho, pausadamente e com um lirismo que emociona. Sempre. Alaíde desconcerta os ouvintes sem precisar cantar em alturas elevadas. Como se não bastassem os desafios dos arranjos, as letras também são de grande profundidade e exigem muito de sua potente e tocante interpretação.

No entanto, acima de de tudo isso, sua apurada percepção musical faz com que tudo pareça fácil demais. Inclusive – vale mencionar – que a cantora estudou piano com o Maestro Moacir Santos. É da Alaíde Costa a voz feminina que escutamos na faixa “Coisa N°1”, do disco “Coisas”, lançado em 1965. O tempo parece até que passa mais devagar quando ela começa a cantar. Deve ser o efeito da poesia em movimento.

Em atividade há mais de 65 anos, quem vê seu nome nas maiores publicações do Brasil atualmente – seja recebendo prêmios ou tendo seus discos mais recentes elogiados – não sabe como sua carreira foi inviabilizada desde a época da Bossa Nova. Uma mulher negra no Brasil na década de 1960. O mesmo racismo velado que fechou as portas para Johnny Alf, negligenciou o trabalho da Alaíde Costa, que teve que batalhar para continuar gravando seus discos e construir uma carreira sólida para si, mesmo sendo uma das precursoras da Bossa Nova. Houve uma clara tentativa de apagar a história, mas seu legado musical superou o maior teste de todos: o tempo.

Para entender melhor a colocação acima (“batalhar para continuar gravando seus discos”), basta reparar nos grandes períodos de pausa, entre um trabalho de inéditas e outro, algo que definitivamente mudou, principalmente à partir dos anos 2000. Os últimos 20 anos representaram suas décadas mais produtivas, tanto no quesito de volume de lançamentos – com trabalhos gravados solo ou em parceria com artistas como Toninho Horta, Fátima Guedes e José Miguel Wisnik – quanto em quantidade de shows, turnês e diferentes participações, seja nos palcos ou até mesmo no cinema.

Para exemplificar: o Troféu Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante de 2020 foi vencido por Alaíde Costa (no Festival de Gramado), por seu papel como “Josefina”, no filme “Todos os Mortos“, Drama que teve direção de Marco Dutra e Caetano Gotardo

A grande virada de chave da carreira recente da Alaíde Costa aconteceu justamente à partir de 2020. Foi neste ano que o rapper Emicida e o produtor musical Marcus Preto decidaram produzir um novo disco da cantora. “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim“, (composição da cantora Joyce Moreno), saiu em 2022 e reuniu um time de notáveis, não só na parte instrumental, mas também composicional.

O disco conta com arranjos de nomes em alta no cenário contemporâneo, como é o caso do também multi-instrumentista Antônio Neves, por exemplo. Entre os compositores que toparam compor para a gravação, podemos citar o Marcos Valle, a já mencionada Joyce Moreno, Guinga e Ivan Lins. Foram tantas faixas que segundo a própria Alaíde, dá até pra fazer outro disco solo, o que deve acontecer em breve.   

Com o fim da pandemia, a cantora conseguiu levar diversos projetos que estavam represados – em função da necidade de isolamento – para os palcos, se dividindo entre diferentes repertórios, configurações de shows e participações especiais, com shows no Brasil e fora daqui.

Pela primeira vez em sua carreira, ela pôde enfim se preocupar apenas com o cantar, já que sua equipe a suporta de maneira brilhante, com destaque para seu agente e produtor artístico Thiago Marques Luiz, figura responsável pelo renovação da carreira de diversas cantoras do nosso país. O disco “Antes e Depois” (lançado em 2021 via Discobertas), saiu justamente por que o Thiago encontrou a fita – com gravações feitas em 1972 e 1974 – e fez a ponte pra viabilizar o projeto com o selo carioca especializado em reedições históricas.

Todos esses acontecimentos reverberaram muito bem na revitalização de seu repertório. Digo isso, por que não foram só os discos mais recentes que receberam atenção. A equipe de produção tem conseguido iluminar outras fases de sua discografia, resgatando momentos marcantes que aconteceram na década de 1950, 1960 e 1970, reapresentando materiais e lançando material inédito.

É aos 87 anos de idade que a cantora, compositora, intérprete e atriz vive a melhor fase de sua carreira. Com a palavra, a Dama da canção. 

Entrevista com Alaíde Costa:

1) Alaíde, primeiramente muito obrigado pela oportunidade, realmente significa muito. Pra começar, gostaria de perguntar sobre o disco que você gravou com o João Carlos Assis Brasil. Foi meu primeiro contato com seu trabalho. A forma como – tanto o piano do João Carlos, quanto sua voz – seguem caminhos totalmente imprevisíveis sempre me impressionou muito. Gostaria que você falasse um pouco sobre a gravação do primeio disco e a experiência de tocar e gravar junto com o João Carlos.

Essa gravação surgiu de um show que nós fizemos juntos. Um produtor sugeriu na época: por que você não grava com o João Carlos? Embora ele seguisse uma linha mais erudita, achei uma ideia fantástica e ele também gostou. 

Primeiro, nós começamos a fazer shows e aí o Jorge Gambier (da Movie-Play), assistiu o show, gostou e nos convidou pra fazer a gravação.

O repertório parece ter sido desafiador.

Eu gosto muito desse repertório, mas não achei difícil. Eu gosto de desafios.

2) Ao longo da sua carreira você interpretou faixas marcantes do cancioneiro da Sueli Costa. Ela é a compositora que você mais gravou, incluindo músicas dela nos seus discos e shows desde 1973. Gostaria que você falasse um pouco sobre a relação de vocês e sobre a importância do trabalho da Sueli.

Então, eu conheci a Sueli ainda nos anos setenta, bem no comecinho da década de 1970. Na época eu fui convidada pra participar de um Júri para um festival que foi realizado no Rio de Janeiro, no bairro de Pilares. 

A Sueli cantou “O Samba Que eu Lhe Fiz” – que aliás na época tinha outro título – mas nós mudamos. Eu gostei muito da música, tentei dar uma colocação boa pra ela, mas não foi possível. Como eu tinha muita facilidade para aprender, comecei a cantar nos meus shows.

Logo que vi uma oportunidade de gravar, eu gravei, mas antes do “O Samba Que Eu Lhe Fiz“, gravei o samba “Noturno N° 0“, que o Selo Discobertas resgatou recentemente. 

E teve uma outra que eles lançaram com arranjos do Egberto Gismonti também.

Sim, essa é a “Cavalos do Meio Dia“. Essa faixa que eu mencionei da Sueli Costa saiu no disco “Antes e Depois”, também pela Discobertas. Encontraram uma fita com gravações que eu fiz na década de 1970, na Rádio Eldorado. Foi parecido com o que aconteceu com a música que o Egberto arranjou, eles encontraram a fita e fizeram o lançamento.

E como tem sido esse momento de revisitar sua discografia, Alaíde? Eu pergunto por que já vi shows seus recentes com diversas formações diferentes, participações e propostas, além das gravações de estúdio que tem saído frequentemente, entre resgates históricos e gravações atuais.

Eu acho muito bom, só não gosto muito mais daquelas que foram sucesso, sabe? Na minha cabeça eu acho apelativo começar um show cantando “Me deixa em Paz”, “Onde Está Você” e etc. Muitas pessoas pedem para que eu cante essas músicas e quando isso acontece acabo incluindo no show, mas do contrário prefiro trazer outras músicas.  

3) Em 2023 o seu disco “Afinal” faz 60 anos. O LP tem arranjos do maestro Gaya, Cesar Camargo Mariano no piano, paulinho nogueira e Theo de Barros. O que você pode falar desse disco?

Eu adoro essa gravação. Os arranjos, o repertório… Naquela época era muito difícil gravar aquele tipo de música que eu sempre procurei cantar, sabe? Agora, finalmente o mercado está mais aberto, mas foi muito difícil manter um repertório diferenciado ao longo de todos esses anos.

4) Gostaria que você falasse sobre a importância do trabalho dos arranjadores que você já trabalhou junto sobre como eram as trocas que vocês tinham na hora de fazer esses arranjos funcionarem com o adorno da sua voz. Ao longo da sua carreira você já trabalhou com nomes célebros nesse campo, como o Wagner Tiso, Maestro Gaya e o Egberto Gismonti, por exemplo.

Na época do Gaya não existiam as alternativas que estão disponíveis hoje. Por exemplo, hoje o maestro faz o arranjo, o cantor vai e coloca a voz por cima do arranjo. Não tinha nada disso naquela época. Era tudo junto e se alguém errasse tinha que parar tudo e recomeçar.

Hoje é diferente, mas eu não gosto. Até hoje gravo junto com os músicos.

Ao vivo?

Sim, não quero saber de colocar a voz depois. Gosto de gravar junto, por que acredito que assim o som fica mais presente.

5) Alaíde, você é amiga da Áurea Matins e juntas vocês fizeram o espetáculo “Elizethíssima” – cantando Elizeh Cardoso – em 2014. Tem uma apresentação muito bonita de vocês também que está disponível no Youtube que é um show no Teatro Municipal de Sorocaba que aconteceu em 2021. Gostaria que você comentasse um pouco dessa parceria com a Áurea que já tem tantas décadas de história.

Pois é, nós somos amigas há mais de 50 anos. Nós fizemos muitas coisas juntas mesmo. Gosto muito Áurea, ela me chama de maninha e eu acho ela de maninha. É muito legal trabalhar com ela. Ela e a Claudete Soares – que é minha amiga há mais de 70 anos – e nós também fazemos muitas coisas juntas e que sempre me dão muito prazer.

6) Gostaria de perguntar pra você sobre o disco “Alaíde Canta Johnny Alf”. Queria que você comentasse um pouco sobre os desafios de cantar as composições de um grande amigo e um músico com capacidades extraordinários.

Eu sou fã do Johnny desde a época dos programas de calouros. Eu tinha 16 anos quando fui no programa do Ary Barroso. Depois fui noutro programa, essa era chamado “Pescando Estrelas” e foi lá que eu conheci o Johnny, já como cantora profissional. Ele estava cantando aquelas músicas maravilhosas dele e a louca aqui começou a aprender música do Johnny Alf pra ir cantar em programa de calouros.

Ninguém entendia nada, era muito engraçado, naquela época não se entendia absolutamente nada, mas uma cantora chamada Mary Gonçalves gravou 5 das canções dele, inclusive, “O que é Amar”, que ela gravou em 1953. É uma pena que ele não teve o devido reconhecimento.

7) Alaíde, em 1976 você grava o disco “Coração”, com produção do Milton Nascimento e arranjos do João Donato e contou com músicos como Novelli, Nelson Angelo, Robertinho Silva e Toninho Horta. O que você pode falar sobre essa gravação?

Bom, eu havia gravado “Me Deixa Em Paz” no Clube da Esquina e foi mais ou menos nessa época que eu conheci toda a garotada. O som deles possui uma modernidade que é diferente dos compositores cariocas e isso me deixou encantada.

É que no LP eles davam as informações, mas todos os arranjos são do João Donato e o Wagner Tiso também participa. 

8) Pra fechar, gostaria de perguntar sobre o”O que os meus calos dizem sobre mim”. Tem música da Fátima Guedes, Joyce, Marcos Valle, Guilherme Arantes e o Erasmo Carlos também contruibuiu. Gostaria que você falasse sobre ele, principalmente no sentido de manter a integridade artística que você possui e que com certeza é um dos traços mais fortes na sua carreira.

Quando o Marcus Preto me procurou pra falar que o Emicida queria fazer um trabalho comigo e tal e eu fiquei pensando assim: nossa, o Emicida tem uma linha musical diferente da minha, mas é um artista muito inteligente. Achei que poderia ser um trabalho legal e assim foi. 

Nós ainda temos muitas músicas pra gravar. Foram diversas composições. Eu nunca havia gravado Erasmo Carlos. O disco saiu 15 dias antes dele partir. Ele insistiu que entrasse no primeiro, pois ele queria muito me ver cantando uma música dele.

Agora nós ainda temos composições da Marisa Monte, Francis Hime… Nós vamos gravar o segundo e provavelmente um terceiro, por que tem música que não acaba mais!

 

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