O underground e a liberdade de ser quem somos. Será?

Nossa colunista Nani Coimbra, munida de sua caneta e seu bloco de notas, compareceu ao ‘Faça Você Mesma’ e registrou a discussão entre as palestrantes da mesa sobre a ‘Produção Feminina no Underground’.

Debie, Rogério Bigross e Ana Lima
Debie, Rogério Bigross e Ana Lima

A décima edição do Festival Bigbands acolheu em sua programação o evento FAÇA VOCÊ MESMA: PRODUÇÃO FEMININA NO UNDERGROUND VOL.1 , cuja organização, conceito e curadoria teve em Ana Lima e Jamile Marques do Coletivo Mosh Like a Girl e Debie do Crust Or Die Colletive, Distro & Label suas agentes realizadoras. 

Quem frequenta o meio underground seja lá em qual parte do Brasil for, constatará na maioria dos casos, menor número de mulheres no público e no palco em relação ao número de homens. Havendo mulheres, estas sempre são minoria e relegadas a papel coadjuvante quando estão entre as atrações musicais. A fim de discutir a presença feminina no undergound e sua atuação direta na produção e fortalecimento da cena baiana e brasileira que o Faça Você Mesma tem sua razão de ser.

Buscando unir diferentes esferas do underground, o Faça Você Mesma convidou representantes do universo hip hop soteropolitano, entre as quais marcou presença a Dj Sica. Munida de seu mcbook, pickups, fones, setlist da pesada e didática afiada, Sica conduziu uma oficina onde expôs técnicas e práticas necessárias ao ofício de Dj.

O público conheceu mais acerca do papel dx Dj, podendo ver que trata-se de músicx no sentido mais abrangente do termo. Levando-nos a inferir se tratar de um instrumentista, desconstruindo assim o senso comum que reduz o Dj à mera funcionalidade de um “trocador” de músicas. Ela conseguiu envolver o público, que participou ativamente da oficina, tanto respondendo aos estímulos da Dj quando esta discotecou, quanto assumiu a mesa para seguir as orientações de Sica sobre realizar a discotecagem.

Como dito anteriormente, o evento buscou dar uma abrangência à temática trazendo integrantes de diversas bandas e coletivos de vários locais do Brasil. Através de depoimentos registrados em vídeo e exibidos durante o Faça Você Mesma, puderam compartilhar suas críticas, experiências com o público presente no Mercadão C.C. na tarde do dia 17 de novembro. Abaixo as bandas e coletivos que tiveram suas integrantes fazendo sua participação: 

União de Mulheres do Underground brasileiro
Eskröta (SP)
– Calcinhas do Metal (Belém – PA)
Metaleiras Negras (SP)
Girls to The Front (Fortaleza – CE)
Underground Blasfemme (Brumado- BA)
– Imprensa Marginal (SP – Itália)

A atração principal contou com uma mesa que discutiu a produção feminina no underground baiano. Mesa essa composta por Luciana Rangel Dos Reis (Rango Vegan, Colaboradora da cena punk baiana), Nancy De Sousa Viégas (das bandas Crack e Nancyta e os Grazers), Sista Katia (Gorda, Vegan, Graffiteira e Feminista) Tatiana Trad (Mãe, Produtora musical, musicista e pesquisadora) e Jardelice* Santa Isabel (Loja Punks Not Dead, “Pioneira nos anos 80”, Professora/Letras, Mãe, Avó e frequentadora da Cena Punk).

Da esquerda para a direita: Sista Kátia, Luciana Rangel, Debie, Tatiana Trad, Ana Lima e Nancy Viegas.
Da esquerda para a direita: Sista Kátia, Luciana Rangel, Debie, Tatiana Trad, Ana Lima e Nancy Viegas.

*Infelizmente Jardelice Santa Isabel não pôde comparecer ao evento, contudo marcou presença no emocionante depoimento lido pela Debie antes de se iniciarem as falas da mesa. Falas nas quais Jardelice também se fez presente, importantes para mostrar o papel que ela teve no fortalecimento do underground baiano, contribuindo diretamente na formação de muitas pessoas interessadas na cultura punk/hardcore ao longo de décadas. Entre essas pessoas, algumas das convidadas.

Nesse sentido consideramos importante compartilhar o depoimento de Jardelice na íntegra no corpo desta matéria. Ei-lo:

“Não dá pra falar do Nenhuma, da Not Dead e da Hai-kai sem comparar com os dias atuais. Naquela época, em pleno período de “democratização” do nosso país, as coisas aconteciam sem tanto risco de agressões, de violência, de morte como hoje. Pelo simples fato de ser diferente.

Quando eu abri o Nenhuma, em 1985, a intenção era trabalhar com o alternativo. O nome foi em homenagem aos meus alunos que, na época, costumavam dizer “é nenhuma, Jardel”. Por questões de contrato imobiliário (na verdade, sacanagem imobiliária) depois de um ano e meio, tive que fechar. Troca e venda de vinis, venda de livros, revistas e apresentação de vídeos formatavam o bar, lanchonete e loja.

O movimento punk foi a salvação pra mim, foi a certeza de algo novo surgindo em termos de transformação, de rebeldia, de contestação. Eu estava decepcionada com o movimento estudantil e com o movimento sindical e vi, no som e postura punk, a forma de continuar dizendo algo à sociedade. A Not Dead foi, então, a materialização desse sentimento.

Acontece que, sendo mulher, mais velha do que todo mundo e professora (Hey, teachers, leave the children alone!) a desconfiança inicial foi grande por parte da galera. Eu e algumas amigas tivemos que ralar muito para sermos respeitadas e ganharmos credibilidade, num ambiente completamente masculino.

A Not Dead tinha a mesma estrutura do Nenhuma, mas agora seria, digamos assim, a radicalização que acontecia através de produção de gigs, distribuição e troca de fanzines, passeatas, manifestações, reuniões e pichações a favor do “vote nulo, não sustente parasitas”.
Financeiramente, a Not não me deu nenhum retorno financeiro. Mantinha o espaço com o salário que eu ganhava como professora do Estado. Não ganhei grana, mas fiz excelentes amigos, me deu bastante informação cultural e humana.

Hoje eu avalio o movimento como tendo sido essencial para a formação de muitos jovens da época, mas precisamos assumir que o mesmo foi, inicialmente, machista, homofóbico e preconceituoso. As produções femininas atuais demonstram a resistência, coragem e habilidades das mulheres que sabem como se manter, apesar das adversidades. Longa vida para todas vocês!”

                                                                                                                     Jardelice Santa Isabel

A roda de conversa foi acompanhada pelos olhares atentos da nossa colunista Nani Coimbra e foi registrada pela sua caneta certeira e seu bloco de notas inesgotável. O resultado é o afiadíssimo texto abaixo, que coloca em relevo as tensões, críticas, relatos e questões apresentadas pelas debatedoras convidadas, responsáveis por brindar a todos os presentes com discussão envolvente e bastante informativa. 

 

O underground e a liberdade de ser quem somos. Será?

Por Nani Coimbra

 

Que vivemos numa civilização que historicamente marginaliza os que não se ajustam é um fato já bem conhecido. O modo, entretanto, como esses “desajustados” se encontram e se organizam ao mesmo tempo em que também segregam é que nos parece interessante.

No último dia 17 de novembro teve lugar na décima edição do Festival Bigbands o evento Faça Você Mesma Vol. 01, que teve como atração principal uma mesa redonda composta por quatro mulheres para falar sobre a condição da mulher na cena underground soteropolitana. Em meio a relatos pessoais, Tatiana Trad, Sista Kátia, Nancy Viegas e Luciana Rangel resgataram momentos em que nem mesmo o underground pôde acolhê-las devidamente. Por quê? Porque esta cena musical é composta, em sua maioria, por homens e ser mulher no underground é estar duplamente desajustada. Se essa mulher for negra é como se não existisse, como afirmou em vídeo realizado para o evento, Juliana, organizadora da página “Metaleiras Negras” no facebook, onde realiza pesquisa sobre a presença, ou ausência, de negras e negros no Metal, ao mesmo tempo em que denuncia o progressivo embranquecimento do Rock. Fenômeno muito similar ao que ocorreu com o axé aqui, na terra da “alegria”.

Ser mulher no underground é lutar duplamente, triplamente ou ser atravessada por diversas linhas de opressão para afirmar sua identidade. Dureza é ter que enfrentar isso logo na adolescência. Ou talvez não. Talvez seja essa a temporalidade mais conveniente para afirmar e construir aquilo que se pretende ser. E, para isso, mais importante que aceitar uma condição na qual se encontra é necessário entender quem você é e os instrumentos que possui para se modificar ou se afirmar. É disso que Sista Kátia fala quando afirma que não é uma questão de aceitação ser quem ela é, mas que é preciso “entender meu corpo gordo e continuar existindo”.

Ao desembarcar, ainda na infância em Salvador, vinda de São Paulo, foi morar no bairro de Cajazeiras. A aproximação com o hip hop e seus elementos, sobretudo o grafite, proporcionaram-lhe um bom campo de batalha para guerrear a boa luta. Ao questionar padrões, lugares de fala e comportamento no ato de ocupar as ruas com o grafite consegue “desmobilizar” e tirar do “conforto” aqueles que estão tão habituados à ausência feminina. Para Kátia “continuar existindo” é entender seu corpo e dar voz e visibilidade às demandas que o atravessam. Se considerarmos que o entendimento é algo que não acontece fora do mundo e que o mundo, tal como o vivemos agora, é fundado por imagens, podemos afirmar que ser visto é afirmar seu lugar no mundo.

Assim como Kátia, Nancy e Trad também são “estrangeiras” na Baía de Todos os Santos. E, tal como o personagem de Camus em “O Estrangeiro”, também não se sentiam em casa quando aqui aportaram e mesmo quando se encontraram entre os “desajustados” tiveram que “criar” e “fundar” ali, um lugar e uma imagem. Como Trad afirmou “em muitos momentos era preciso se comportar como os homens para ser aceita entre eles”. Para ela a Bahia, que já era avant garde pelo simples fato de que “aqui roqueiro podia sorrir”, ainda faltava ser aceita como mulher, que se comporta como mulher, se veste como mulher, sorri …roqueriA do underground.

A fala de Trad me lembrou muito o texto de Chimamanda Ngozi Adiche “Sejamos todos feministas” onde a autora, questionada sobre sua “imagem” de feminista, afirma: “Em um dado momento cheguei à conclusão de que sou uma feminista feliz africana que não odeia os homens e que gosta de usar batom e saltos altos para si mesma e não para os homens”. Ao que tudo indica, na fala de Trad, e isso retorna nas falas de Nancy e de Luciana, ser do underground entres os anos 80 e 90 em Salvador era ter que lidar com o fato de ser mulher, feliz e, porque não, afetiva. Sim, ao que parece, mais subversivo que estar no movimento punk sendo mulher nesse período, era chegar nos shows, encontrar todo mundo “no visual” e abraçar e beijar carinhosamente todos os homes com “cara de mau”, como nos contou Luciana. Sua postura amorosa e receptiva destoava da “agressividade” característica da cena punk. Então, ela a usava como instrumento transgressor ali, no ambiente da transgressão.

Para Nancy, a cena rocker nordestina é muito peculiar e com características muito próprias. Ela considera que o Nordeste deve ser protagonista como lugar de formação. Ela que sentiu na pele o que é estar à margem por não atender à um padrão buscou afirmar seu lugar adotando como estratégia de criação a fórmula “seja você mesma”. E acredita que, ainda hoje, diante do cenário político que se antecipa já na crise de moralidade e censura que estamos vivendo, esta estratégia é a mais adequada para o enfrentamento.

Trad que além de música é pesquisadora de cinema marginal acredita que as estratégias em termos de criação devem ser adotadas no âmbito do micro político afim de criar narrativas e não impedir a liberdade de criação.

A capacidade criativa em situação de extrema precariedade instrumental e técnica, tão familiar no cinema de Glauber Rocha, para Sita Kátia “foi o momento em que mais pude ser criativa”, porque foi quando pôde “se unir a outros grupos que se afastaram para legitimar suas vozes em termos de representatividade. É preciso se organizar em redes para não passar opressões sozinha” e, o melhor lugar para essa organização é o “off-line” o “olho no olho”. Essa é a estratégia criativa que pretende adotar no cenário atual.

Diante das ameaças que pairam no ar o certo é que a possibilidade de ter um bom lugar onde se possa combater nos mobiliza para a ação. As frases de Luciana “tudo que consegui veio do punk” e “o underground me possibilita ser quem eu sou” são emblemáticas porque nos dão a dimensão daquilo que podemos construir como potência na nossa existência diária. Isso é possível, acredito eu, não porque este espaço é lugar onde podemos ser livres. E sim, porque este é o lugar onde podemos combater pela liberdade. Não é a lógica do “faça o que tu queres” mas a do “faça você mesma a sua luta”. Nesse sentido, o underground tem muito a nos ensinar ao passo em que tem muito a aprender com suas mulheres.

Sobre a autora:

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Nani Coimbra é doutoranda em Filosofia pela UFG com pesquisa na área da técnica e da filosofia da arte na obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Possui trabalhos publicados em revistas especializadas e vem realizando instalações em que procura refletir artisticamente o conjunto de preocupações que envolve sua pesquisa. Para isso, recorre às fotografias instantâneas como base para sua investigação e expressão. Sob pressão escreve para o Oganpazan.

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