Biscoito Sem Glúten, músicas pra tocar onde você quiser

A Biscoito Sem Glúten lança o Ep Canções de Coletivo, reúne músicas que tratam do cotidiano opressor no qual vivemos. 

BiscoitoBiscoito Sem Glúten usa o buzão como metáfora pra expôr a dinâmica cruel na qual somos lançados constantemente. Quem depende de transporte público vai entender sobre o que estou falando.

Das capitais brasileiras que tive o prazer de conhecer, Salvador é sem dúvida a que tem o pior transporte público rodoviário. Os ônibus são sucateados. Você tem que se locomover pelo seu interior com atenção redobrada. Pois corre o risco de ter o braço cortado ou a camisa rasgada por um prego solto. Talvez, quem sabe, o ferimento pode ainda ter como sua causa, um pedaço pontiagudo de plástico do banco quebrado, Desta vez transformado em arma cortante. 

Certamente o metrô amenizou a situação. Porém, quem vive nos bairros periféricos ainda vive o drama de pegar o buzão lotado. Quem já esteve na Estação Pirajá em horários de pico conheceu os efeitos desse sistema sobre as pessoas. Estas são transformadas em seres irracionais. Isso porque é disponibilizada uma quantidade de ônibus que não dá conta da demanda do número de passageiros. Resultado: quando chega um ônibus as pessoas deixam de lado sua racionalidade e disputam agressivamente a preferência na entrada no ônibus.

Porque, cá entre nós, passar o dia todo trampando pesado e ainda ter que ir pra casa em pé, sendo esmagado por outros corpos dentro do ônibus, como se fosse uma sardinha dentro da lata é a visão do inferno. O peão quer ao menos ir sentado.  Não podemos culpar aquelas pessoas, mas sim aqueles que as colocam naquela condição. Ou seja, os empresários do transporte aliados ao poder público, no caso a prefeitura municipal. Talvez você esteja confuso de ler uma crítica ao transporte público soteropolitano em uma resenha de álbum. A partir da agora vocês entenderão.

A Biscoito Sem Gluten, desse modo, usa essa imagem do buzão para expressar nosso cotidiano. Isso porque todos os dias somos esmagados por uma condição existencial que nos é imposta por empresários, governantes, patrões, dentre outros representantes da categoria que vive de nos explorar. Se você é um trabalhador assalariado sua vida se resume a um coletivo lotado.

Nesse sentido, há pressão sobre você o tempo todo. Ainda mais quando junta-se a esse time de opressores um vírus que se espalha de maneira exponencial. Cujo contágio se agrava por conta da atuação criminosa de um presidente claramente despreparado e alinhado com ideias fascistas. Podemos dizer que a Biscoito Sem Glúten faz um hardcore festivo, flertando com o pop, que casa bem com momentos de celebração. Contudo, isso não significa deixar de lado a crítica social. Na primeira faixa João 10 10 o buzão é o cenário. O título é uma passagem bíblica do evangelho de João.

Cara, isso remete a uma das coisa mais desagradáveis quando se pega um buzão. Quando entra alguém com o único propósito de pregar. A pessoa entra munida da certeza de que está prestando um favor a todos os pecadores ali presentes. Temos nessa atitude a maior demonstração de que estamos muito longe de ter uma formação política da população brasileira.

Não compreendemos minimamente, enquanto povo, a noção de cidadania, portanto, não conseguimos nos colocar na condição de cidadão. Prova disso é uma pessoa não entender o que implica fazer pregações de sua crença religiosa em um espaço público. Em outras palavras, ela não entende que está obrigando pessoas de outras religiões, pessoas que não tem religião alguma, a ouvir um discurso que só faz sentido pra quem professa a mesma fé que ele ou ela.

Existem os espaços reservados pras práticas religiosas. Ainda mais pros neo pentecostais, grupo religioso para o qual esses espaços não faltam. Provavelmente as igrejas neo pentecostais são os únicos estabelecimentos que rivalizam com os botecos em quantidade.

Claro, o trabalhador que entra pra vender seu produto no buzão é outra história. Este foi jogado a esta condição de sub trabalho graças aos governos Temer e Bolsonaro, que implementaram políticas de rapinagem dos diretos trabalhistas no país. Uma vez que a crise econômica gerada pela pandemia só agrava a a situação dessas pessoas. Portanto, merecem todo nosso apoio! Antes de qualquer coisa, os trabalhadores informais que usam os ônibus como espaço de trabalho pra levar seu ganha pão pra casa estão buscando formas de ter o seu sustento.

Eu sou do tipo que curte a inserção de elementos de gêneros regionais brasileiros naqueles oriundos da gringa. Por isso mesmo, a faixa Receita de Bozo me ganhou logo de cara. A música inicia numa toada punk e cai num baião. Retoma a pegada punk que mais a frente dá lugar ao baião uma vez mais. Essa alternância dá à música um atrativo a mais. A letra, como o título deixa claro, aborda o contexto político que vivemos. O faz citando sequencialmente acontecimentos desde a campanha política de 2018 até o primeiro ano do governo Bozo. 

Ao passo que na sequencia do álbum vem Playboy Alado. Música de pegada mais agitada que aborda essa figura desprezível da fauna social, o playboy. Em outras palavras, a letra aborda esse indivíduo mimado que acredita ter o mundo girando ao seu redor. Apesar de ter nascido num contexto social que lhe permite ter uma vida sem muitos esforços, esse indivíduo é educado dentro da concepção meritocrática do mundo. Portanto, acredita plenamente que suas “conquistas” se devem aos méritos de seus esforços individuais. Nada tem a ver com a condição econômica da sua família transmitida de geração para geração. 

Alice é uma faixa mais suave dentro da totalidade do álbum. O vocal fica por conta de Mariana Cedraz, baterista da banda. Uma vez que sua voz possui um timbre forte e característico, a música ganha em intensidade. Trata-se de uma pegada mais pop. A Biscoito Sem Glúten lança mão de recursos como repostas melódicas à linha vocal principal e backing vocais que dão um efeito harmônico interessante.

A maior parte de nós sente o peso de uma existência assalariada. Somos joguetes nas mãos de entidades abstratas que atuam nos bastidores. Atuam provocando estímulos, os quais nos levam a ter comportamentos em acordo com seus interesses. Dentre esses estímulos está a necessidade efêmera de comprar. Isso nos mantém presos a uma dinâmica existencial sustentada pelo endividamento compulsório. Esse tema é abordado pela Biscoito Sem Glútem na faixa A Mão Invisível. 

Esta faixa começa numa levada de xaxado. Aliás, em trechos da música o ritmo cangaceiro é usado em momentos de transição. Portanto, há uma alternância deste ritmo com uma levada hardcore livre e rápida. Pra finalizar a banda vem com uma pegada mais rápida e agressiva. O faz na faixa Vida Moderna. A letra trata de uma questão que nos aflige, o uso e emoções como o medo e o pânico como dispositivos de controle social.

Depois de ouvir Canções de Coletivo, estou certo que você concorda que a metáfora do buzão lotado se encaixa perfeitamente na concepção de sociedade da Biscoito Sem Glúten. Uma vez que a banda a revela ao longo de suas músicas. Fica difícil não concordar que nossas vidas se resumem a uma viagem sem fim num buzão lotado. Se você vive no Brasil atual e ainda por cima é mão de obra assalariada de alguma empresa que vive de rapinar sua força de trabalho, esta metáfora representou bem sua condição de vida. 

Canções de Coletivo foi gravado e mixado no estúdio Caverna do Som e teve produção de Irmão Carlos. Foi lançado oficialmente no dia 24 de julho. 

 

A Biscoito sem Glúten é :

Henrique Eça – Guitarra e Voz

Mariana Cedraz – Bateria e Voz

Vinicius Pereira – Baixo e Voz

 

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