O LAMA é um evento fundamental para a oxigenação das expressões do Hip-Hop da cidade de Salvador, e o seu retorno provou isso!
Uma breve história de aquilombamento, O LAMA
Aconteceu na última sexta feira dia 09 de dezembro o Retorno do Lama, um dos eventos mais importantes para a cultura de rua de Salvador. No número 40 da rua do Passo, espaço Sitoc, que carrega na sua arquitetura bastante da história do povo negro desta cidade, os mais de 400 presentes puderam ter uma noite épica! Pode parecer exagero, mas não houve nada menos do que isto, com uma line que reuniu na ordem das apresentações: DJ Gug, Makonnen Tafari, Baby Venas, Aurea Semiséria, Vandal, Vírus e fechando a noite DJ Belle.
Às vezes e por motivos dos mais diversos, não percebemos que existem heróis ao nosso lado, mas organizar um evento como o LAMA é papo de heroísmo. A feitura do LAMA é uma guerrilha cultural, política e estética com origem nas ruas e que hoje já possui um ancestral que não deixou de ser reverenciado: Scank. Uma das mais destacadas figuras da cultura Hip-Hop local e nacional, o pixador e grafiteiro Scank foi um dos fundadores do coletivo LAMA, que foi brutalmente assassinado em 2020.
Apresentando uma visão de produção colaborativa, sem fins lucrativos e emanando de uma comunidade de pixadores, o LAMA é um dos eventos mais interessantes e resistentes do cenário baiano. Nesta 12º edição do evento, completando 6 anos, os organizadores tiveram talvez o seu maior desafio. Inicialmente uma vaquinha online com a meta de 10 mil reais foi organizada com direito a recompensas, porém apenas 3 mil foram arrecadados. Num cenário pós pandêmico, onde a própria indústria cultural se queixa, o esforço de fazer um evento deste nível e ter conseguido realizá-lo é certamente e sob qualquer ponto de vista um ato heróico.
Quilombismo urgente e na prática, O LAMA
Desconheço de onde se originou o nome deste coletivo, porém os dois significados dicionarizados dão conta do caráter deste evento, sendo úteis para pensarmos tanto o público e os artistas como a sua missão enquanto espaço. Enquanto cultura das ruas, a pixação é percebida pela sociedade emprenhada pelas ideias racistas do estado e dos seus agentes (mídia, poder público e o seu braço genocida) como uma prática de vandalismo fruto de pessoas que precisam ser combatidas pelos poderes do estado supremacista branco.
Este caráter visto como algo ruim é transvalorado neste evento e se transforma em um espaço seguro, em uma estrutura comunitária negra de apoio aos seus membros e difusão de conhecimento e arte. Ora, neste sentido o outro significado de lama se faz pleno, pois é da argila molhada de onde se molda vasos e outros objetos artísticos e mesmo casas são construídas na utilização deste material orgânico.
Quem esteve presente nesta última edição ou quem acompanhou os seus seis anos, sabe que isto é verdade. O LAMA é um espaço e uma prática fundamental para a manutenção e preservação da identidade underground, inventiva e combativa da cultura Hip-Hop em Salvador. Construído majoritariamente por jovens homens e mulheres negros, o LAMA carrega uma significação prática e teórica que bebe no conceito de Quilombismo tal como definido por Abdias do Nascimento. E essa perspectiva hoje se faz cada vez mais urgente, em um momento onde a gourmetização da cultura Hip-Hop, sob as mãos da “elite” econômica supremacista e a apreciação e comercialização encontram na classe média branca uma aceitação total.
Deste modo, perceber quais são as reais dimensões da atuação de um evento como o LAMA é essencial para pensarmos o próprio Hip-Hop baiano e no limite da própria música negra baiana. Por exemplo, o que eventos como o Afro Punk contribuem para a nossa comunidade artística negra, senão a reificação de nomes consolidados de dentro e fora da nossa música e um breve momento de exposição para alguns poucos e legítimos nomes – dentre outros tantos possíveis ? Será que os reais Afro Punk estavam ali presentes? Ou apenas uma classe média branca e negra, muitas vezes completamente desconectada das produções locais? O império do branding que fez muitas pessoas entenderem que o festival de música era uma festa a fantasia!
O fato é que no LAMA a fantasia com a qual você vai não importa, a música negra – no caso o rap – e outras expressões artísticas do Hip-Hop estiveram se comunicando afetiva e intelectualmente durante uma noite de real comunhão, não apenas de um mero espetáculo. Os encontros, o beck na escadaria do Carmo completamente tomada em suas paredes pelo letrado baiano, foram o ambiente de espera para o evento. Marcado para às nove horas e cumprindo religiosamente o horário local dos perrengues, o evento começou por volta das 23 horas.
No terraço do evento, outra questão fundamental estava colocada para os participantes: a economia comunitária. Na feirinha do LAMA o público podia adquirir as camisas e bags do LAMA, camisas da cooperativa Ujamaa, o livro da editora Èkó Egbé: Nacionalismo Negro Vol.1, camisas da Pixo de Rua e a boa e velha cachaça Massa. Além destes produtos na feirinha, no bar era possível consumir o Cravinho da Maloka made in Santo Antônio de Jesus. Sabemos o quanto a cultura Hip-Hop é rendida à marcas multinacionais, porém é de fundamental importância que aprendamos a consumir mais e mais dos nossos irmãos de corre, de arte e dos que são micro empreendedores.
A velha e nova guarda do Hip-Hop baiano em diálogo!
Depois de alguma demora na grande fila que se formou por quase metade da rua do Passo, eu e minha companheira subimos para o prédio com algum atraso pois chegamos ao palco já no final da apresentação do longevo e resistente DJ GUG que atualmente prepara um disco. Só tivemos condições de presenciar a apresentação do artista fazendo a orquestra sonora na qual o MC Duendy I rimava. Na apresentação do DJ GUG teve ainda a participação de Lázaro Erê e Dum Dum Afolabi, que por conta das necessárias pizzas brotinho da Ludmila, foram a segunda causa do nosso atraso.
Para quem não notou a grade reuniu nomes com uma caminhada no Rap BA desde os anos noventa do século passado à nomes mais novos, com 5 ou 6 anos de carreira. Esse é um outro aspecto essencial presente na concepção do LAMA, contar a história da nossa cultura e oxigenar a nova escola, algo que nesse evento foi perceptível na presença por exemplo do grande Léo de Morais, um dos redatores do clássico blog Olha Onde A Favela Chegou, que curtiu todos os shows com a mesma empolgação turbinado pela cachaça Massa!
Logo, o MC e poeta Bruno Suspeito (A Rua se Conhece) tomava o microfone para apresentar a próxima atração, como um verdadeiro mestre de cerimônias, deu ideias fundamentais para a cultura e levantou a todos anunciando Makonnen Tafari. Mesclando o seu repertório com novos lançamentos e músicas retiradas de seus discos Tafari Loko Part. 1 (2017) e Part. 2 (2018), com o auxílio de seu DJ e irmão Akani, as primeiras rodas de bate cabeça começaram a surgir.
Talvez seja um esforço inútil dizer que Makonnen e Akani são dois dos artistas pioneiros da sonoridade Trap em todo o país, assim como apesar da aparente juventude, possuem mais tempo de carreira do que muitos artistas experimentados do Rap. Resultado é que sempre oferecem ao público uma apresentação impecável fruto de uma simbiose própria dos dois! Destaque especial para a faixa ainda inédita, apresentada em parceria com Ravi Lobo.
Quando Baby Venas entrou no palco, o público já estava quente o suficiente após as duas primeiras apresentações, e o que este artista apresentou ficou definitivamente gravado na memória de todos os presentes. A qualidade do som foi um diferencial importantíssimo, pois na primeira oportunidade que tive de ver um show deste mano, o som estava uma merda. Confesso que particularmente eu estive mais do que no ímpeto de bater cabeça, hipnotizado. Enquanto a casa ia a loucura com faixas como “Peças”, “Ainda Tô Vivo” e mais uma pá de pedradas de singles e do seu disco de estreia o EP Vivências do Bairro lançado em 2020, eu só fechava os olhos e curtia a vibe melancólica e de superação agressiva presente em seus plugs e traps. Aqui também teve faixa inédita para o deguste do público, Baby Venas convidou Fashion Piva e bagaçaram em uma faixa na pegada do drill, importante ressaltar que Suja D’Fato também participou junto com o MC Camel com a música Fácil ao lado do MC.
Depois de ser atropelado por essas apresentações, foi a hora de ir tomar uma água pois os coroas que se metem a besta e ficam próximos ao bate cabeça, fazem muito esforço e suam bastante, sentindo mais rápido a desidratação assim como a progressiva fragilidade de seus músculos e ossos. Banheiro, água tomada, voltei já com a “Carreta da Onze” no palco, bagaçando muito. Acompanho o trabalho de Áurea Maria antes da mesma se tornar Áurea Semiséria e sem sombra de dúvidas esta foi a melhor apresentação que vi dela. Quase me deu vontade de ver a apresentação dela no Afro Punk, mas eu sou punk e não me dou a esses desfrutes, apesar de ficar feliz pela inclusão dela na line, pois o inimigo é o game não o jogadora.
Em sua apresentação, Áurea Semiséria deixou claro que seu passado no boombap lhe deu régua e compasso para transitar por qualquer beat, como qualquer MC que se preze. Ela apresentou grimes com um flow impressionantes, e com as temáticas que têm abordado em faixas como na sua colaboração gringa com o produtor inglês Grandmixxer em “Tipo a Noite”. Estamos ansiosos para ouvir o disco que ela está cozinhando. Outra característica desta apresentação que nos chamou a atenção foi a sua desenvoltura junto ao público, certamente fruto de suas oportunidades em palcos maiores e em projetos como o Brasil Grime Show. Quando a DJ, Stylist, Grafiteira e mais uma pá de coisas, Sista Kátia soltou o beat de “TUDUDUDU”, A MC foi pro meio da galera e não só passou por cima de geral como pongou junto a todos.
Com Vandal na sequência, meu corpo já estava muído e amassado, apesar dos afectos estarem lá em cima, era difícil manter posição na frente do palco. O que só consegui fazer por algumas músicas, porém o suficiente para perceber a força do carinho do público com um dos principais linhas de frente da força do rap baiano. Apesar de ser o “segredo” mais bem guardado na “caixa branca” do rap nacional, Vandal é sem sombra de dúvidas, um dos artistas mais importantes dos últimos 7 anos no rap do nosso país. Um dos pais dos trappers, e pai solo de toda a atual geração de grileiros do drill e do grime carioca e paulista, o artista segue sendo invisibilizado pela xenofobia do eixo Rio-SP.
Porém, temos o privilégio absoluto de termos acesso a essa arte pulsante e inventiva que Vandal não domestica para se tornar totem da branquitude, que adora cantar “Fogo nos Racistas”, mas não tolera o impacto de “Bala e Fogo”, que é como se luta realmente contra um estado genocida. Após as 6 primeiras músicas, diante de uma roda que não aquietava em nenhum instante, fui para o descanso necessário, meio tristonho com o peso da idade, pois a vontade era permanecer ali. Perdi as participações dos parceiros de UGangue: Galf AC, Ravi Lobo e Pivete Nobre no show.
Descansei, tomei um ar na varanda, degustei algumas Itaipavas, porque eu sou raiz, e voltei no final da apresentação. Neste momento, tive a oportunidade de ver o quanto o LAMA é único. Um jovem senhor estrupiadamente como eu estava sentado no corredor que dá acesso a área do palco, o qual imediatamente reconheci como uma das figuras com as quais eu estava batendo cabeça pouco antes. Brinquei com ele através do reconhecimento daquilo que nos ligava, o amor pelo rap e o esgotamento físico fruto da idade:
– Cansou em homi?
– É bicho, trabalhei o dia todo e ainda fui pular um muro ali pra pixar, tô com o tornozelo fudido.
– Caralho mano, foda! Como é o seu vulgo?
– Faísca mano…
– Porra mano, máximo respeito, conheço seu trampo!
Porra, quem anda por Salvador atento aos letrados e grafites já certamente viu o nome de Faísca e pra mim que não sou do rolê, tá naquele convívio ali bateu tudo. Um jovem senhor negro que segue na atividade, pulsando nas ruas, bagaçando os muros, na boa e velha missão de subverter o sistema. É inspirador e só poderia ocorrer no LAMA! Da mesma forma, era possível ver e aconteceu durante algumas apresentações, a presença de Bboy’s no meio da roda de bate cabeça que abria para os caras meterem passos, fazendo moinho de vento e os caralho. Durante a apresentação de Makonnen, inclusive tivemos um Bboy no palco mantendo viva a arte do breaking!
Após shows onde o boombap, o trap, o trapagodão, o pagodrill, o grime e o drill foram exercidos com originalidade lírica e de flows, ouvidos em alto e bom som e curtidos com máxima intensidade, como se não bastasse: Vírus. Irmão de Scank citado no início do texto, o artista conjuga em sua apresentação algo que nunca vimos no cenário do rap baiano e provavelmente nacional e mundial. Eu nunca tinha tido a oportunidade de ver o seu show e confesso que ainda estou digerindo.
O fato é que o trabalho que Vírus vem executando de modo solo não tem muito parâmetro de comparação, ele mescla as rimas à performances corporais, onde as expressões corporais carregam signos diversos, face e corpo se juntam ao canto rimado ou melódico, a recitação, a um figurino completamente fora dos padrões, com mímicas, danças, contorções, “caras e bocas” que formam apenas um bloco de afectos. Musicalmente, transita desde o trapagodão a música experimental eletrônica. Em sua apresentação ele trouxe faixas do EP VxRxS que ele lançou esse ano junto a músicas de outros trabalhos.
A catarse que ele proporciona em sua apresentação é algo no sentido de limpeza espiritual, seja em momentos onde o público é convidado a observar mais contemplativamente ou meter dança. Não é algo difícil ou esquemático, não é “conceitual” no sentido que muitas vezes a arte contemporânea e o próprio rap utilizam para vender um produto aguado e que não se sustenta sem a preparação anterior “do conceito/marketing” que explica a obra de antemão. No momento de sua apresentação, uma parte do público já tinha se retirado, o que funcionou bastante para quem permaneceu, pois Vírus transcendeu o palco e fez da plateia um local onde ele pode transitar e tocar mais proximamente cada um. Queria muito ver um espetáculo desse mano em um teatro tipo o Solar Boa Vista aqui no Engenho Velho de Brotas.
Um dos momentos da noite que não podemos deixar de comentar foi o momento em que Vírus chamou seus ex-parceiros da Lápide Rec: Momo BB e Murilo Chester. A emoção deste reencontro no palco era bastante palpável e o público reagiu a altura, detalhe interessante foi a Suja D’Fato assumindo o mic numa das faixas e cantando a música toda praticamente de memória. São pequenos grandes momentos como esses onde a verdade se faz presente através da música, para além de nomes grandiosos, do sucesso e das poses de internet. Ali naquele momento, era possível ver realmente amigos, que se uniram na Lápide alguns anos atrás para fazer suas músicas.
Tendo começado com um DJ, o LAMA encerrou essa noite épica com a DJ Belle que discotecou 4 músicas para os que estavam esperando ser varridos pela equipe de limpeza. Neste momento, alguns presentes comigo incluso, cantaram em alto e bom som o clássico Sujo – um dos hinos da pixação baiana – em total reverência ao espírito da noite, fechando assim um retorno épico de uma das festas mais interessantes e mais importantes para oxigenar o cenário soteropolitano do Hip-Hop.
Nos parece fundamental para aquilo que nós amamos: a Cultura Hip-Hop soteropolitana, que o LAMA vista sua roupa de sapo e dê seus pulos, precisamos de um evento desse a cada dois meses pelo menos. O Oganpazan apoia e ama e não é de boca não viu!
– O Retorno do LAMA foi épico e oxigenou a excelência das ruas de Salcity! – Resenha
Por Danilo Cruz
Todas as fotos por Ingrid Lima (Lounge Fotográfico)