O Rap Plus Size propõe uma Imersão, você é capaz de ser hip hop? O novo mundo pretendido pelo grupo é também a luta por uma vida não fascista
Talvez um dia não existam listas de melhores do ano, talvez um dia essas listas coloquem uma mulher e uma pessoa trans não binário no topo, O fato é que isso não preocupa o Rap Plus Size, e muito menos a nós mesmos. O outro fato simples e claro é que dentro dessa lógica mercadológica e capitalista, o disco A Grandiosa Imersão em Busca do Novo Mundo (2019), segundo disco da dupla, é um das melhores coisas que ouvimos esse ano no rap nacional.
“Ver um mundo em um grão de areia
e um céu numa flor silvestre,
segurar o infinito na palma da mão
e a eternidade em uma hora” William Blake
O Hip Hop é foda e o Rap Plus Size nos dá essa certeza com uma força que coaduna demais com a visão de mundo mais adequada para esse ínicio de século, onde todas as formas de fascismo represadas em uma história colonizada e escravista, ressurgem com uma força aterradora em nosso país.
O segundo album de carreira do Rap Plus Size é um salto quântico em sua caminhada. Está lá, tudo muito bem pensado e executado, das lindas fotos da Georgia Nyara, a capa maravilhosa da Raquel Tomé, passando pela produção do Vibox, pelas participações pesadissimas, e obviamente chegando na dupla mais pesada do rap nacional, sobre todos os termos possiveis de entendimento do que seja peso. Isso não é uma piada gordofóbica, é a mera e simples constatação de que essa dupla realizou um trabalho sem paralelos na história recente do rap nacional.
O tão buscado e almejado conceito como unificador de uma obra de arte atravessa todo o disco, porém não fechando-o sobre si mesmo, antes, levando-nos a uma imersão real sobre os problemas que nos assediam a nós todos que nos preocupamos com essa sociedade doente. Ao longo dos quase 45 minutos que formam esse mergulho, somos conduzidos a percepção de que o nosso oceano inconsciente precisa ser trabalhado para que o nosso corpo possa enfim ser livre. A citação do poeta inglês presente acima, é uma analogia com o que essa dupla fez ao tomar a questão de gênero, como esse grão de areia capaz de nos levar a todos os outros problemas enfrentados pelo que se convenciou chamar minorias.
Vamos confessar que é uma alegria ver a Sara Donato estar nesse nível, pois a acompanhamos desde o lançamento de Made In Roça (2013), Jupitter por sua vez fecha essa dupla como um delicioso “Romeu e Julieta”, o doce e o salgado em plena harmonia. O Vibox chega no momento certo para junto com a dupla de Mc’s, fechar um disco com uma musicalidade ampla, diversa, e sobretudo redondinha. Caminha-se no trap no boombap e até num reggaezinho com muita elegância estética e com a força das rimas e dos beats que não deixa ninguém no raso.
Ao mesmo tempo, em termos de participações o disco é gordo hiphopicamente falando, e o início do álbum fica por conta da slammer Luz Ribeiro. De saída nos apresenta uma linda poesia sobre o quanto precisamos mergulhar em nós mesmos de modo a combartermos primeiro em nós, os fascismos que queremos combater no fora. O “Aquário” quebrado que busca a desindividualização como metódo capaz de fazer a diferença devir, é o tema principal dessa primeira faixa.
Em seguida “Pipeline” vem como um combate às ondas violentas que massacram o povo preto, que em seu outside só recebe essas séries na cabeça. Vibox utiliza samples de algum instrumental de surfmusic, o que faz a dupla e Djonga surfarem com uma agressiva linha até o inside. A necessidade de resistir aos caldos que as ondas de opressão social nos imputam, é o tema da faixa “Quebra Mental“, mais didática, mais pedagógica e por isso mesmo, mas suave apesar de guardar um certo tom sombrio. Ao mesmo tempo que descortina problemas como a medicalização em massa, para a “cura” de problemas mentais que possuem uma origem social, propõe uma visão ética e politica para o enfrentamento dessas questões.
Ingrid Martins é outra excelente slammer que nos conta em sua poesia o quanto o movimento das marés precisa estar em nossa auto-consciência. “Fôlego” é um reggaezinho que trata do autocuidado necessário para enfrentar o caos mental pré programado, e receita alguns metódos de cuidado com o espaço em que habitamos, para propiciar o exercício de auto exegese que esse sim, pode nos levar a nos desconstruírmos. Mergulhar em si, sem equipamentos acessórios é talvez o exercício mais difícil da existência, e é o plano infalível que o Rap Plus Size nos coloca.
“Corpos marginais se amando é revolução”, é um ponto importante do disco que parece-nos é aqui o grão de areia capaz de nos levar ao universo, nesse oceano musical proposto pelo disco. O Cistema a que “Espelho” nos apresenta é aquele construído em cima da negação da diferença, preto, mulher, LGBTQI+ são algumas dessas diferenças exiladas pelo cistema. E mais do que nunca, é hora de destruí-lo.
Dentro desse imenso e interminável oceano, “Baleia“s nos conduzem numa migração onde ninguém fica para trás, onde apenas a desigualdade, a ausência de oportunidades, a tortura que busca normalizar pessoas e comportamentos, enfim os micro fascismos do cotidiano, precisam ser abandonados. A faixa nos coloca a necessidade de aliados, mas sobretudo de arte combativa que inspiram pessoas, e isso fica claro numa fala dos audios anexados na música: “O Rap Plus Size é luta pela vida”.
Todo esse transbordamento de pautas, toda essa diversidade musical, leva-nos a um devir irresistivel, devir animal, devir ostra, devir “Cardume“, no final das contas, trata-se sempre de um agencimento coletivo de enunciação dos marginais, da diferença, A abertura com o Grupo de Maracatu Omo Omí no maracatú pesado nos leva da força dos tambores ao refinamento do groove da Mulamba, diálogo que leva a dupla ao tema principal, aliar-se para romper correntezas, fugir das iscas e sobretudo subir as corredeiras que tentam barrar nossa liberdade, devir salmão.
Mas também um devir máquina de guerra, não é apenas uma máquina musical teórica, o “Submarino” é aquele bate cabeça sinistro, e só é pancada o tempo todo, no beat e nas linhas, e traz a Monna Brutal como um torpedo atômico explodindo tudo. Viajando na velocidade da luz, o melhor speed flow do Brasil hoje, me perdoem. Suscitando como essa música a tática anarquista de ação direta, o Rap Plus Size caminha com uma força descomunal para o final do disco, e o que ouvimos é o som de um barco indo a pique.
Porque o disco é isso, é uma especíe de disco de ética/política, tal como Foucault denominou o Anti-Édipo dos filósofos Deleuze & Guatari, que nos seus nados coletivos, na ligação do desejo com a realidade, na negação da uniformização e da normalidade consagrada, afunda qualquer que seja o navio fudido do fascismo. As dimensões que esse disco possui são tão desconhecidas ainda como aquilo que chamam de “Zona Abissal“. É bonito porque ao seu próprio modo, o Rap Plus Size consegue iluminar as escuridões de nosso ser, ou pelo menos indicar que é ali, onde devemos buscar a nossa luz.
Gente, saca só a Sara rimando em “Nascente“, e veja ela junto a Cris SNJ essa rainha de Wakanda do rap nacional, de cabeça raspada e tudo. veja Jupiter rimando junto a Kamau, e perceba o quanto essas figuras novas no rap estão num nível de excelência. Aqui não estamos buscando aquela comparação escrota de melhor ou pior, porque ninguém pode ser melhor que Kamau e Cris, mas é bom demais ver como dois Mc’s consagrados estão por diversos níveis com a dupla. Daí que estamos vendo o encontro das nascentes com rios caudalosos.
E isso é a renovação que o Rap Plus Size traz a tona com seu segundo disco, renovando sua própria caminhada e o hip hop de modo geral. A última faixa é um beat aberto – sem rimas – na pegada do “Novo Mundo”, ou seja, está lá liso como o oceano em bom tempo, esperando que você que é do hip hop risque ele, com dança, pintura, ou música, mas que sobretudo, faça o risco na vida.
A Grande Imersão em Busca do Novo Mundo (2019) é isso, um show de rimas e um show de beats, uma seleção criteriosa de participações, uma musicalidade ampla, uma identidade visual linda, enfim, uma obra de arte por uma vida não fascista, a questão é: você que se diz hip hop é capaz?!
-O Rap Plus Size propõe uma Imersão, você é capaz de ser hip hop?
Por Danilo Cruz