Com o novo disco, os Jardineiros do Planet Hemp descortinam com primazia a barbárie que domina o nosso país, faz tempo!
Eu era então um jovem imberbe, praticante de esportes, bom estudante, até que adentrei o caminho árduo das drogas e a culpa de tudo isso foi do Planet Hemp. Quem me aliciou me apresentando a demo do grupo em uma famigerada fitinha foi o já iniciado Bosquinho, numa noite de calor pós surf, no condomínio Mar do Caribe, na Coroa do Meio, Aracajú – Sergipe. Nunca mais fui o mesmo, depois que aos poucos passei a entender o que significava Legalize Já!
Certamente, o Planet Hemp e a reação nacional ao seu trabalho foram fundamentais para a minha formação como ser humano, foram importantes por entender que existem dois campos da existência. De um lado existem as pessoas que entendem a necessidade de um mundo onde os indivíduos possuem liberdade para serem quem querem ser. Do outro, existem os defensores da barbarie, posuidores de um moralismo estúpido fruto de uma política baseada em pressupostos racistas, que visam apenas a destuição da diferença.
Hoje, 22 anos após o lançamento da “Invasão do Sagaz Homem Fumaça”, os caras retornam como “Jardineiros (2022)” apenas o quarto disco de inéditas de uma das bandas mais importantes da música brasileira. O frescor e a força permanecem intactos, BNegão e Marcelo D2 seguiram carreiras sólidas e isso se mostra à perfeição neste novo trabalho. Remanescente da banda original, Formigão segue lascando o groove com seu esfumado baixo. Completam a banda com bastante competência Nobru na guitarra e Pedro Garcia na bateria.
São 13 músicas, uma introdução e um interlúdio que chegam a 37 minutos e 42 segundos, tocando fogo na hipocrisia da burguesia branca de inclinação supremacista. Pois esse é o ponto, todas palavras e sons transformadas em música ao longo das obras coletivas e individuais do Planet Hemp, são portas de entrada contra essa política fascistas que estava disfarçada nos anos 90 e que hoje tomaram o país. É disso que se trata quando se fala em legalização das drogas, algo que Bosquinho não conseguia me ensinar naqueles anos iniciais.
A criminalização das drogas, a guerra que daí adveio são apenas desculpas mal elaboradas para o extermínio e o encarceramento da população negra. Foi a institucionalização do pensamento supremacista branco ao redor do globo tendo os EUA como o puxador do bonde, mero reflexo da Ku Kux Klan. Pois, na impossibilidade de continuar os linchamentos, o encarceramento em massa e o assasínio de negros, índigenas e latinos, cumpre bem o papel.
Na faixa “Veias Abertas” essa temática é envelopada em um sonoridade rock com sabor grunge, onde Marcelo D2 e BNegão denunciam o Trono Manchado de Sangue (Kurosawa) do Império estadunidense, com participação de Tantão e os Fita! Em tempos onde se pretende – não completamente sem razão – mostrar as bases reacionárias do rock branco, o Planet mostra com quanto ódio se faz o bom e velho rock’n roll negro…
A “Distopia” que vivemos é enfrentada sem medo – inspirado no saudoso Marcelo Yuka – faixa que contém a participação do Criolo e que foi o primeiro single lançado pela banda – sobre o qual escrevemos aqui. A força da canção que abre o disco seguirá até o final do play passeando por diversas sonoridades da diáspora e do continente. O Raprocknrollpsicodeliahardcoreragga recebem o reforço do trap e do afrobeat, com a incendiaria “Taca Fogo”, onde Nave deitou no beat e na “Eles Sentem Também”, onde a banda segura o groove com competência e onde D2 faz um bonito elogio da alteridade.
Focando no detalhe, defenestrando o diabo que mora lá, chique mesmo é envelhecer com essa saúde – a base de ganja – e incensando a todos que possuem ouvidos para escutar, a playboyzada escrota que tomou o país de assalto, vai passar, o Planet Hemp passarinho. Ajudando a limpar o nosso ecossistema subjetivo, nos impulsionando desde 1993 a seguir na luta por um mundo plural e justo.
Seguindo n’O Ritmo e a Raiva, junto ao mestre Black Alien os caras fazem um levantamento de uma boa ficha criminal de serviços prestados ao pensamento musical em nosso país. Sim, a herança de Skunk segue em nós que sequer o conhecemos, afinal isso é Planet Hemp. O dancehall na faixa Jardineiro, onde o mad professor BNegão descortina o puritanismo supremacista que criminaliza um planta. Os caras não esqueceram como fazer um disco digno deste nome, em tempos onde uma meia dúzia de faixas querem se colocar nessa posição, “Amnésia” é o outro momento jamaicano do álbum.
Cheio de malemolência carioca, Bnegão desliza elegantemente em cima da base groovada do trio instrumental na faixa bem humorada “Puxa Fumo”. Junto ao argentino Trueno, os caras soltam a pesada “Meu Barrio” fazendo um importante intercâmbio. É fato que o Brasil por suas heranças coloniais e sob o domínio cultural imperialista dos EUA, não possui o hábito de ouvir a música latina. O sorrisão que a gente abre ouvindo “Fim do Fim”, hardcore da gema com direito a citação do Dead Kennedys na guitarra do Nobru, ah safado!
Um ponto importante, que talvez deva receber um tratamento mais prolongado em próximos trabalhos, sim eu já espero os próximos, está presente na intimista “Remedinho”. É fundamental a luta pela descriminalização de TODAS as drogas, a luta não pode se encerrar na legalização da maconha, por todos os motivos acima expostos. Como nos ensina Antonio Escohotado em seu “Historia Elemental de las drogas”, até 1900 todas as drogas eram compradas em “drogarias” e foi o pensamento puritano supremacista branco que criminalizou o consumo de algumas substâncias ligando-as a nacionalidades e raças. Os chineses e o ópio, os negros e a cocaína, a maconha e os mexicanos, o alcool e os judeus e irlandeses.
Aí tá eu no metrô de cabeça feita pós surf, 41 anos no lombo e metendo dança com “Ainda”, sim porque não dá pra não rir e não meter passo no pique Frog (Colors – As cores da Violência 1988) com esse miami bass cortesia da dupla Tropkillaz que conta com o ex-Planet Zé Gonzalez. Permaneço “maconheiro de alma”, com orgulho, graças ao Planet… O disco se encerra com o melhor sample de 2022 na deliciosa Onda Forte, MC Carol sampleada em um beat de extrema elegância que fará você flutuar.
Após o fim do play, o repeat se torna obrigatório, um filme passa na minha cabeça dos amigos, dos shows do Planet, mas sobretudo fica a certeza de que o trabalho da banda carioca foi e segue sendo fundamental para enfrentarmos o cotidiano de um país que se compraz ao longo de sua história em exterminar e jogar na miséria negros e indígenas. É música para a alma, para todes que não se curvam ao nosso fascismo e domingo é 13 nessa porra, porque queremos uma outra civilização, um outro país.
Agradeço ao Planet Hemp publicamente por ser parte ativa da minha formação política, hoje como professor de filosofia no ensino fundamental, meu coração bate mais forte graças também a vocês!
-O Planet Hemp são Jardineiros (2022) de uma outra civilização possível – Resenha
Por Danilo Cruz