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O canto latino americano das Cigarras

As Cigarras lançam Etnocído, single que nos chama à luta contra o extermínio dos povos originários de toda a América Latina. 

O genocídio dos povos originários, um projeto “civilizatório”

Quando a armada do navegador e conquistador genovês Cristovão Colombo aportou onde atualmente são as Bahamas, em 1492, abria-se um novo capítulo na história da humanidade. A expedição de Colombo fora financiada pela Coroa Espanhola, que disputava com a Coroa Portuguesa, a expansão de seu poder sobre o mundo através das Grandes Navegações. As potências europeias de então, passaram  a investir em expedições marítimas que garantissem novos territórios para serem explorados, saqueados e transformados em colônias.

Deu-se início a um processo de genocídio nas américas que persiste até nossos dias. No imaginário popular isso ficou no passado, contudo, basta pesquisar sobre a história dos povos originários das américas, para nos darmos conta de que segue firme o processo de extermínio desses povos.

O governo Bolsonaro torna essa triste realidade ainda mais concreta. Enfraqueceu a Funai, transferindo a responsabilidade sobre a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, pasta sob o comando da ex deputada ruralista Tereza Cristina da Costa (DEM), veja aqui. O governo Bolsonaro certificou irregularmente, fazendas presentes em terras indígenas na Amazônia. Mais de 100 fazendas foram autorizadas em terras indígenas que ainda esperam por demarcação. Isso graças a uma portaria da Funai que desprotege estes territórios. (veja aqui

Soma-se a todas essas ações contrárias à existência dos povos originários, o descaso com os mesmos em meio à pandemia do Covid 19. Isso porque o processo de desmonte da legislação e das instituições que protegem minimamente os povos originários, permanece em andamento.

O fim das demarcações de terras indígenas, mais o apoio de Bolsonaro a atividades ilegais como garimpo, extração de madeira e desmatamento nessas áreas, realizadas por aqueles que invadem essas terras, mais a falta de programas de prevenção contra a contaminação do Covid19 que atendam as especificidades dos povos originários em nosso país, potencializam ainda mais a taxa de mortalidade entre essas populações.

O extermínio dos povos originários não significa a morte dos corpos indígenas, mas a morte de sua cultura. Esse é um processo também em vigor desde os primeiros anos de domínios dos territórios americanos pelos conquistadores/ saqueadores europeus. A catequese empreendida pela Companhia de Jesus visando “salvar” as almas dos “selvagens” e transforma-los em seres civilizados era o empreendimento que tentava botar um fim ao modo de ser dos povos originários. 

A inspiração Paraguaya

Desculpem esse preâmbulo extenso, mas acho necessário para compreendermos a dimensão do novo single das Cigarras: Etnocídio. Maria Paraguaya, vocalista e uma das compositoras das Cigarras, possui uma ligação umbilical com os povos originários. Graças à influência de seu avô, o médico e epidemiólogo Bernardo Troche, que atuava ativamente entre as aldeias presentes no Chaco Paraguayo.

Bernardo Troche levava sua netinha Maria junto quando ia visitar as aldeias e cuidar da saúde de seus habitantes. Certamente isso despertou em Paraguaya um sentimento de pertencimento àquele contexto sociocultural, o que fez com que assim como o avô, lutasse de algum modo contra as mazelas impostas pela dita civilização àquelas pessoas.

Sabemos que nossas vivências mais impactantes se alojam em nosso subconsciente, formam nossa personalidade e guiam nossas ações. Por isso mesmo Paraguaya sempre esteve envolvida com o mundo dos povos originários.  Em uma de suas idas, acompanhando seu avô a uma aldeia, recebeu o livro El encuentro de los hombres e los insensatos, das mãos de seu autor, o antropólogo jesuíta Bartolomeu Meliá. Felizmente o lado antropólogo do autor prevaleceu, o que lhe rendeu uma obra empenhada na defesa e preservação das características étnicas dos povos originários.

Essa obra, afastada de Paraguaya ao longo de quinze anos, reapareceu após esse hiato, justamente na mesma semana em que seu autor faleceu. Foi nessa semana que Maria Paraguaya compôs a música Etnocídio, usando um acorde desconhecido por ela até então, mas que pela inspiração permanente que a acompanha, se formou no braço de sua guitarra.

Houve um alinhamento planetário naquela semana, responsável por configurar o universo de modo a fazer surgir a nova música das Cigarras. A confirmação disso veio no encontro entre Paraguaya e Taís D´Albuquerque, guitarrista e também compositora da banda. Taís disse a Paraguaya que estava apaixonada por um acorde, o qual não conseguia tirar da cabeça. Pasmem!! Era o mesmo acorde misteriosamente formado pela mão esquerda de Paraguaya no braço de sua guitarra e que também despertou a paixão da vocalista.

Paraguaya e Taís possuem uma parceria na qual se desenvolve o processo composicional da banda. As letras vão surgindo a partir da interação entre ambas, na qual as lacunas vão sendo preenchidas até sua formação completa. A sugestão de introduzir um trecho em Guarani na música veio de Taís e foi prontamente acolhida pela banda. O trecho colocado na música é um verso da música Índia. Contudo, da sua versão original em espanhol (confira aqui). O trecho é o seguinte: A aninte ko’ero, cacique oi’yro, nde aña chendivé. Que em tradução livre para o português, segundo Paraguaya, seria algo como Cacique, não seja mau comigo amanhã, pois estou do seu lado. 

A música

Capa de Etnocídio, novo single das Cigarras

Tenho pra mim que Etnocídio é daquelas músicas que marcam uma banda, mais em seu espírito do que em sua carreira. Falo isso pelas especificidades inerentes à vivência dessa música ao longo do seu processo de composição. Isso pode ser notado na sonoridade que a reveste. As Cigarras estão concentradas em reverberar emoções, em potencializar o caráter dramático para nos fazer sentir de forma intensa a causa abordada pela letra.

A faixa expressa em sua sonoridade uma musicalidade evidentemente inspirada em alguma etnia que compõe os povos originários. Há uma rítmica própria de cerimonias ritualísticas. Tal efeito é produzido através de todos os elementos que compõem a música. Desde o uso de instrumentos percussivos que trazem um certo suingue, passando pela bateria que faz uma marcação acentuada, o baixo em suas linhas cadenciadas e a guitarra em riffs e solos que preenchem essa configuração sonora indianista.  O piano ao fundo dá um toque suave imprimindo sutilezas ao conjunto sonoro. 

Outro elemento importante é o coral que no início da música surge evocando os Índios de Latino América. Nesse primeiro arco da música temos uma atmosfera melodiosa, de concentração e preparação para algo que virá. O piano martelado dá fim a esse arco e introduz a tensão à música, que passa a cumprir uma outra função, não mais de preparação, mas de ação. Ela passa a ser música de guerra.

Esse movimento da música, acompanha a letra. No primeiro arco somos contextualizados acerca da condição dos povos originários latino americanos, desfigurados pelas fronteiras estabelecidas pelos colonizadores europeus, que une e separa etnias, em nome da dita “civilização”.

No segundo arco, quando a música ganha essa dimensão de combate, o eu lírico rejeita a salvação civilizatória destes “redentores de almas” cuja dita salvação oferecida deixa atrás de si um rastro de sangue, fome e miséria. Trata-se de a um só tempo se fazer uma denúncia e um chamado para a luta, que se converte num terceiro arco onde o coro ressurge entoando algo similar a um grito de guerra, pano de fundo para a fala em guarani cantada por Paraguaya.

O desfecho vem com o coral entoando a frase inicial, índios de Latino América. A frase é entoada tendo como pano de fundo apenas a percussão (bongô e chocalho rabo de cascável) e o que parece ser o som de uma cítara. Esse pano de fundo vai se desfazendo até que restam apenas as vozes do coral.

O coral no final tem um efeito simbólico bastante forte. Isso porque pode ser visto como a representação da união dos povos originários latino americanos, juntamente com aquelxs que apoiam a causa indianista da América Latina. Desejos de somarem suas vozes e esforços nessa luta contra esses homens insensatos que tentam concretizar o etnocídio iniciado na virada do século XV para o XVI. 

*A foto de capa desta matéria é de autoria da fotógrafa Lyrian oliveira.

Leia mais sobre as Cigarras no Oganpazan:

Dossiê Oganpazan: Cigarras, brasas que não se apagam 

Power Girls Hinos: o grito de guerra das mulheres punks

Ficha Técnica

Etnocídio, por  Cigarras

Música e letra: Maria Paraguaya

Captação, mixagem e masterização: Renato Ximú

Arranjos: Cigarras

Percussão: Luis Henrique Born Meissner

Arte da capa: Ananda Kuhn, escultura por Maria Paraguaya

 

 

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