O ano LGBT no Rap Nacional em 2018! Para além do hype pretensioso, que engana e deforma a cena musical, os LGBTS vieram muito pesados!!
Em meio a um aumento exponencial de manifestações preconceituosas de toda sorte em nosso país, 2018 se configura como um ano importante na consolidação de atores LGBT na cena do rap nacional. No mesmo ano em que elegemos uma aberração racista, machista e homofóbicoa como novo presidente da República, diversos discos de artistas trans, travestis, gays, lésbicas e bissexuais ganharam as ruas como uma espécie de contra efetuação desse novo/antiquíssimo discurso em ascensão.
Dentro dessa perspectiva, entendemos que mais importante que decidir sobre qual o melhor disco do ano, seria reconhecer que em 2018 tivemos um ano histórico de lançamentos de rappers LGBT’s. Tal acontecimento é o que de mais forte politicamente se levantou no cenário rap brasileiro nesse ano.
Esse “time” histórico, essa espécie de apelo epocal, não foi percebido no cerne de sua força política e excelência estética, por público e crítica em torno desse gênero musical. Afinal, ainda estamos todos, os que militam pelo hip hop nos espantando com linhas homofóbicas, machistas e com batalhas em que esses comportamentos são inclusive incentivados. Mas a visibilização dos artistas que resistem numa cena homofóbica ao extremo, não tem o mesmo alcance.
Somente agora, e aos poucos as mulheres cis e hétero vão sendo reconhecidas pela sua qualidade musical, os LGBTS no rap ainda precisam enfrentar um pouco mais de violência e invisibilização. O que de modo nenhum afeta suas produções, muito pelo contrário, quando falamos em excelência não estamos usando nenhuma hipérbole. São outras liricas muito fortes na diferença dos afetos que exaltam, outros tantos corpos emitindo flows diversos, em beats pesados, cadenciados ou numa velocidade, mega afrontosa aos machohop!
Essas qualidades ainda não tem alcançado o alarde necessário por conta da mídia especializada e muitos excelentes lançamentos foram flopados. Mas aos poucos, esses atores supracitados vão ganhando visibilidade, e tendo sua humanidade defendida. Houve inclusive recentemente um caso de Transfobia no rap em Salvador, caso denunciado pela página Trap Baiano no Instagram, onde um mc local se negava a fazer um clipe com uma modelo trans, chamando-a de Viado. O caso foi amplamente denunciado e publicamente rechaçado por um parte do público e por vários artistas locais.
Diante de tudo isso, devemos agradecer ao grande Arthur Venturi (Bocada Forte) que nos salvou, me apresentando alguns trabalhos que irão compor esta matéria. Foram dezenas de singles lançados por artistas LGBT’s no rap em 2018, da mesma sorte tivemos o lançamento de discos da Pacha Ana, Karol Conká e da BrisaFlow, mulheres que se declaram bissexuais, e que comporão outra matéria a sair em breve.
Abaixo, você vai conhecer trabalhos lindos, agressivos, contundentes, muito bem produzidos, com uma lírica tão diversa e singular quanto as formas existentes de afetividade. Quantidade e qualidade que não deixa dúvidas sobre a força e a necessidade desses trabalhos. Obras que carregam uma densidade que se iguala e ultrapassa tudo que está dado aí nessa cena atual, mas que não aparecem nas listinhas descoladas.
Selecionamos, cinco artistas que lançaram discos e ou ep’s em 2018, e fizemos alguns apontamentos de ordem impressionista sobre cada um, confira:
Hiran – Tem Mana no Rap (2018)
Lançado no inicio do ano, o disco de estreia do Hiran o levou a um reconhecimento e a uma aliança bem interessante com outros rappers baianos e com a turma do Quebrada Queer. Dono de um show eletrizante, sua assertividade anda de mãos dadas com um aspecto quase pedagógico presente em seu primeiro disco.
Tem Mana No Rap (2018), traz o mc de Alagoinhas, expondo todo o seu interior com um didatismo que se faz necessário nos tempos atuais. Massacrando a homofobia presente em nossa sociedade, com uma afirmação potente de sua inteligência. A necessidade de não se deixar contaminar pela “burrice” que quer impedir o desenvolvimento humano.
Bicha preta metendo os passinho bem demodê, Hiran é um acontecimento para a cena baiana de rap e o reconhecimento de nomes como Vandal e Galf AC que participam do disco é um excelente sinal. Don Maths do Roça Sounds também tá colado com o Rei bastardo e sua busca pelo reconhecimento das ruas que são suas. Com todas as produções assinadas por seu amigo, Tiago Simões, o rapper passeia por influências sonoras que vão do grime até o funk carioca.
Um disco de estreia muito digno e firme em suas resistências, uma musicalidade que aponta caminhos novos, um flow que respira insubmissão. Hiran é uma lufada de ar anti-homofóbica na cena baiana rica em expressões, mas que precisava continuar se arejando.
Quebrada Queer – Ser [EP] (2018)
O grupo Quebrada Queer que estourou esse ano com a participação no projeto do Leo Casa 1 (Rap Box), em uma cypher que deixou muitos impressionados com a sua qualidade, e que gerou manifestações de ódio de outros, não perdeu tempo. Ser (2018), ep lançado no dia 30 de novembro, chega para reafirmar que eles não vão parar tão cedo e que qualidade nas rimas e no flow, é algo intrínseco ao trabalho deles.
O EP possui 5 faixas onde os mc’s Guigo, Harlley, Lucas Boombeat, Tchelo Gomez e Murillo Zyess conseguem uma unicidade de flows e liricas que casa perfeitamente com a produtora e Dj Apuke. Existências que precisam resistir a séculos de construções excludentes e genocidas das diferenças. O Quebrada Queer se faz pioneiro como primeiro grupo/coletivo com temática LGBT, o que é um signo, não apenas de vanguardismo, mas também de atraso.
São 5 corpos a expressar as dores e a força da alegria que resistem a opressões as mais diversas, tantas quanto as posturas corporais de cada um e suas formas de afetividade. Ser (2018) é um EPzão delicioso de ouvir e parte da culpa disso é do Leo Grijó que foi o responsável pela redondíssima e pesada mix/master. O EP conta também com duas excelentes participações, do baiano Hiran e da rainha da porra toda, Glória Groove.
Esteticamente o Quebrada Queer dá aulas também no aspecto audio visual, no youtube, cada faixa vem acompanhada de vídeos, e o clipe de Pra Quem Duvidou é um dos mais bonitos do ano. Contando com a direção de Cibele Appes e Lukas Kakuda ,é uma bela síntese visual da exuberância desse trabalho, colocando-os no lugar em que merecem, uma vida mais rica, de beleza, de companheirismo, de afeto, enfim de dignidade.
JuPat – Toda Mulher Nasce Chovendo (2018)
O termo densidade poética encontra no disco da JuPat, um exemplo inconteste, ao mesmo tempo que apresenta uma musicalidade contundente e bela. Um registro de sua passagem, de sua transformação, Toda Mulher Nasce Chovendo (2018) é uma obra de arte que registra as singularidades de seu devir-mulher.
Contando com 13 faixas, o disco foi composto entre o fim e o começo, no intermezzo, cristalizando um puro devir que dispensa informações biográficas, pois já carrega de modo bruto nas imagens poéticas e construções musicais toda a potência desse acontecimento. O feminino e a chuva, duas forças da natureza, são signos trabalhados musicalmente, e atravessando todo o disco e levando-nos a pensar sobre a vida como movimento.
A fragilidade e o perigo das construções sociais e culturais, que aprisionam o biológico a funções predeterminadas, são colocadas em xeque. Assim como o endurecimento das subjetividades propondo um corpo que vai se mortificando, tanto mais responde a exigências de outrem, de outros.
Amizades, territórios e alteridade são outros tantos temas, abordados pela caneta afiada da JuPat, que conta com excelentes participações, que enriquecem progressivamente o álbum. O disco contou com a produção de Rasec e Pipo Pegoraro, e tem participações de Silvia Tape, DJ Ciro, Stella Paterniani, Plaq Max, Buda, Linn da Quebrada, Ge Ladera, Shou e Denise Mokreys.
Uma obra de uma mulher trans que ajuda a nos humanizar na medida em que nos mostra a força de uma leveza conquistada, através do exercício da liberdade e do auto reconhecimento, daquilo que se é. Uma aula contra o “complexo de Gabriela”, que toma conta de muitos corpos e subjetividades, a favor de um tornar-se aquilo que se é.
Raphael Warlock – Versos Onirícos do Ontem (2018)
Destreza e agressividade, dono de um flow potente Raphael Warlock lançou dois trampos muito pesados esse ano, Vilão Orfão De Vilania (2018) o primeiro disco e o album aqui em questão. Sem desperdiçar uma linha, versátil demais, o mano mostrou nesses dois trabalhos, com muita assertividade o quanto é um dos melhores mc’s dessa geração, punchlines aqui são a constante, uma mais porrada que a outra.
O peso de suas linhas contrasta com a justeza das causas que o mano defende atacando sem dó o Saco de Merda eleito. Representante e signo maior de todo o racismo, homofobia e machismo que sempre foram a tônica velada ou não de nossa sociedade e consequentemente do rap nacional.
Por sua visão ampla, pela técnica super apurada, pela sujeira under, pelas pautas apresentadas e a forma de trata-las, Visão Oníricas de Ontem (2018) é uma das melhores coisas que ouvimos esse ano. Segundo disco solo do Warlock, ele mesmo mixou e masterizou o album com a ajuda do Rodrigo Zin, beats de Lukepp, J3 e ST Lopes. Pra compartilhar algumas faixas, Rapha convidou Siamese, Jupat, Faustino Beats e Allure Dayo.
Um artista que precisa ser mais ouvido, assim como todos os que aqui estão, Raphael Warlock que começou a escrever aos 17 anos, agora aos 22 já possui um obra de peso, com eps, e outras produção com o grupo Teoria do Caos.
Ps.: “Vai se foder/Você e os mc zoado/ Que acha que fazer rap/ Não é coisa de viado”
Monna Brutal – 9/11 (2018)
Já faz um tempinho que acompanhamos o trampo da Monna Brutal e a chegada de seu primeiro disco 9/11 (2018) só confirma a força da sua arte. Esse texto é em grande parte culpa dela, que lançou essa pedrada e por conta do amadorismo que limita nosso tempo de escrita, eu não pude dar a atenção devida. E não foi pela falta de qualidade que o trabalho apresenta, através da força de sua poesia musicada.
Uma característica que salta aos ouvidos durante a audição de 9/11 (2018) é a gana que esse disco envolveu, assim como a agressividade assassina de putos, que Monna Brutal deixa escura em suas músicas. Não espere nenhum traço de piedade cristã por parte dela, nem algum tipo de má consciência ou culpa, por parte da mesma. Sua lírica é daquelas que incendeia corpos pela rebelião das palavras e sons e ri descontroladamente dos canalhas em combustão.
Logo após uma introdução com uma composição da Katrina, a música a seguir Arapô é um exemplo que resume muito bem o que esperar desse disco de estreia. Aula de flow, indo do mais cadenciado ao mais speed, sem ramelar nas ideias, atravessando as variações do beat com excelência ao invés de atravessar o beat. Monna Brutal dá também aula de técnica, pois sua lírica já vinha sendo reconhecida pela força e agressão.
O disco 9/11 (2018) tem mix, master e produções do mano Z-Rock, participação pontual da BrisaFlow num trap pesado, parceiros de correria e vida, para além de feats e trampos. Além da forte introdução da Katrina, o disco conta com 8 faixas, e dentre elas nem só o ódio e a luta contra as injustiças está presente, Monna também ama, e isso é bem expresso com muita sensualidade em Dedicação.
Do boom bap ao trap com breve incursão no funk carioca, Monna Brutal chega linda, preta e mega agressiva em seu disco de estreia. Escutem e aprendam.
Texto revisado por: André Clemente de Farias