nILL e a potência da criação de mundos em Goodsmell Vol.2 (2020). MC e produtor da banca Soundfood Gang, segue melhorando a cada temporada!
O trabalho criativo do nILL é algo que sempre se apresenta completamente fora da curva do que se poderia esperar se tomassemos o cenário que possui mais visibilidade hoje no rap nacional. Demorei para entrar no seu multiverso, mas acredito que hoje habito confortavelmente pelos diversos universos que ele tem nos apresentado. Goodsmell Vol. 2 (2020) é o seu último lançamento e é impressionante perceber sua capacidade de continuar a se expandir artisticamente.
A recém nomeada Lillith ganhou uma nova temporada e é através de nove nomes distintos de figuras fundamentais da história negra em diáspora, que podemos apreender suas aventuras. Nova Temporada? Lillith? Não era um texto sobre nILL? 9 figuras da história negra? Que doideira é essa? Pois é querides, o artista aqui em questão – nILL – trabalha nesse nível de complexidade. Um jovem homem negro, MC e produtor, fazendo um disco com três excelentes vozes femininas, alguns beatmakers, abordando o universo feminino de uma personagem que já existia, com 9 músicas/capítulos nomeados com nomes de importantes mulheres negras da história. Esse é apenas um breve resumo, mas me explico melhor.
Cheiro Bom Volumes 1 & 2
No Goodsmell Vol. 1 (2018) foi dado o start dessa personagem que passou a desfilar com muito swing e desenvoltura na história do rap nacional, e ao mesmo tempo no multiverso do nILL. Agora ela possui uma história revelada e um nome: Lillith. E é essa personagem – um devir mulher do nILL? – que atravessa o Vol. 2 (segunda temporada) em diversas aventuras, sentimentos e sensações. Conceitualmente o MC e beatmaker de Jundiaí está há anos-luz dos cosplayers de bandido e dos pretensos gênios de 3 ou 4 singles, e ainda assim não recebe a devida atenção de um público que segue sendo idiotizado.
Acredito que não seja o seu caso, se você está lendo o Oganpazan, ou se veio aqui por já conhecer o trabalho do nILL. De qualquer forma, sempre é tempo de descobrir novos criadores. E aqui neste exemplo, estamos diante de um criador de mundos. É fácil pensar – depois que você conhece – que o multiverso do nILL já está pronto para ser adaptado aos quadrinhos, ao cinema ou a se transformarem em séries, animadas ou não. Essa é a potência de criação que esse artista nos apresenta nos seus últimos lançamentos.
Os seus universos, a cada nova temporada apresenta-nos mundos através de ritmo e poesia, naquilo que entendemos por Rap, contribuindo enormemente para a diversidade e a força da cultura hip hop nacional. E nesse quesito, mas uma vez ele nos surpreende, pois ao invés de seguir quaisquer tendências atuais de pasteurização como muitos tem feito, ele inova também na sonoridade. Em um cenário que vem diluindo as imensas possibilidades criativas do trap, do grime e ou do drill, ele ataca de house, funk carioca e boombap.
Os beats de sua própria lavra ou do Ryam Beatz e do Tan & Soundflex são a rítmica sob as quais as rimas do nILL e de três das melhores vozes do RAP/R&B nacional desfilam. Alt Niss, Ashira e Bivolt são as convidadas a participar nesta nova temporada da Lillith, e é realmente um deleite ouvi-las. Seja na capacidade de rimar dessas mulheres, seja em segurar o groove com muita beleza na voz, ou como todas as três fazem com maestria: equilibrando essa distribuição entre canto e rima, elas dão um show. Tudo cheira muito bem em goodsmell.
Sob o signo do sol
Em Lógos (2019), nILL abordou ao seu modo a idéia de que a arché da physis é o fogo, agora nesse universo em particular essa idéia se mantém, porém recorrendo a simbologia do Sol. Ora, explicando rapidamente para você que não é familiarizado com a filosofia grega, o Heráclito de Éfeso dizia há mais de 2000 anos atrás, que o princípio da natureza – seu elemento primordial- é o fogo. E essa seria a fundamentação da realidade que vivemos, onde tudo está o tempo todo em transformação.
Ao longo das nove faixas que compõem Goodsmell Vol. 2, a idéia que mais nos impressiona é exatamente essa noção de que nada é, tudo se transforma. Porém, é sob o signo do Sol, aquele astro que provê a possibilidade de vida em nosso planeta e ao qual estamos o tempo todo exposto para representar uma das facetas da criação. Ao mesmo tempo, tendo vida é necessário criar possibilidades de existência e de reprodução da mesma e nesse sentido são as mulheres que se tornam símbolos do criativo e da luta.
Há ao longo do disco uma idéia de relacionamentos fortes, solares, alegres, e na mesma toada, há toda uma afirmação da luta de pessoas negras como condição da existência. Ao recorrer ao house em algumas produções, encarna-se um signo de resistência, pois essa forma de música é uma invenção negra e que se desenvolve em boates gays dos E.U.A. Hoje apropriada pela branquitude, o house ter sido incorporado dentro de um disco de rap da forma como foi aqui, é algo que mostra muita consciência da luta negra, em diversas esferas.
O brilho vem pra iluminar, mas ele apaga se não tiver a gente
A personagem é uma mulher com uma história rica, porém a Lilith é aqui um daimon no ombro do nILL. É sua abertura feminina, sua perspectiva de criação e o seu reconhecimento da importância fundamental das mulheres negras para a nossa história. Por isso, é importante não confundir a personagem com o criador, Lilith é a transgressão, que infelizmente ainda representa um produtor e MC colocar mulheres em evidência em seu trabalho.
Por outro lado, nos ensina como são as mulheres que possuem essa capacidade solar de proporcionar vida, mas também e talvez por isso mesmo, de que é necessário um devir mulher em todo ato de criação humana. Não se trata de imitar uma mulher, muito menos de lhe render loas e homenagens, mas de incorporar em si mesmo em um nível molecular, algo de feminino. E nesse sentido, nILL passa por esse processo e não apenas nesse universo em particular.
Não é apenas representatividade, é em um nível maior e mais profundo no qual nILL desce para entender que guerreiras, engenheiras, inventoras artísticas, símbolos da invenção cultural de um povo, são afirmações da diferença. Devir e diferença, são características intrínsecas em sua obra, e no universo de Goodsmell e consequentemente da Lilith, estão mais uma vez afirmadas nestes aspectos em particular.
Seja adentrando a obra de uma criadora como a Maria Medalha usada para samples, seja utilizando a House Music criada por caras como maravilhoso Frankie Knuckles, ou nas parcerias com Bivolt, Alt Niss e Ashira, devir e diferença se afirmam. O Feminino é algo muito forte em sua música, em sua forma de ser e de criar, contrariando uma masculinidade tóxica que muitas vezes é a base da atitude de muitos no rap/hip-hop.
O brilho da obra do nILL segue ofuscando a mediocridade, segue solar possibilitando a criação de mundos, abre-se a diferença como todo grande criador o faz. nILL nos ensina a fazer hip-hop como uma mulher negra, e Lillith neste caso é uma substância de Deus, mas é sempre bom lembrar que Deus é uma mulher negra!
-nILL e a potência da criação de mundos em Goodsmell Vol.2
Por Danilo Cruz