A transformação digital e a cultura Hip-Hop são 2 pilares primordias para o trabalho de resgate musical, principalmente quando o assunto é a pesquisa de música negra, como o Reggae e o Afrobeat, por exemplo.
Ancorado nessas bases firmes, artistas, selos, colecionadores, DJ’s, beatmakers e toda cadeia criativa do âmbito musical, consegue acessar gravações raras e que apesar de soarem atemporais, passaram batido na época de seus respectivos lançamentos, principalmente se tratando da década de 50 até o final da década de 70, período extremamente fértil para a música interplanetária.
Um detalhe que contribuiu para esse acontecimento é que toda a lógica do ensino da música é europeia, logo, é compreensível como sons da diáspora africana foram deixados de lado. Porém, devido a força das mídias e o trabalho astuto de selos que vasculham a essência do groove de diversas estéticas, atualmente é possível encontrar gravações que viram a luz do dia apenas nos anos 2000 e que nos ajudam a contar uma história extremamente rica e que entre a década de 70 e o fim de 80 ficou restrita à países como Jamaica e Nigéria, por exemplo.
Dois países que são grandes celeiros da música, Jamaica e Nigéria são provas contundentes para se compreender como muitos artistas do movimentado cenário local foram explorados pelas gravadoras da época, pois as gravações aconteciam aos montes, mas os artistas nunca viram a cor do dinheiro.
Um exemplo disso é a dupla de Reggae Althea & Donna, que chegou ao topo das paradas britânicas nos ano 70 e só descobriu por que ligaram para elas, convidando a dupla para participar de um programa de TV. O single “Uptown Top Ranking” (do LP de mesmo nome, lançado em 1977), chegou ao número 1 das paradas inglesas no ano seguinte.
Na época, a cultura vigente dos singles fazia com que gravadoras como a Trojan Recods, por exemplo gravassem dezenas de compilações com singles de variados estilos e exportasse para países como Inglaterra, por exemplo. Com o sucesso dessas compilações, as gravadoras lucravam, mas os royalties raramente chegavam no bolso de quem tocava.
Poucos foram os artistas que conseguiram furar essa bolha no Reggae e Afrobeat. No Reggae podemos citar o Lee Scratch Perry e o Bob Marley – que só furou a bolha, pois o Lee Perry vendeu os direitos do Wailers para a Island Records. No Afrobeat, é possível mencionar o baterista Tony Allen, o multi instrumentista Fela Kuti e o saxofonista Orlando Julius, por exemplo.
Mas hoje em dia é possível preencher algumas dessas lacunas e encontrar muitas respostas, graças ao trabalho do selo inglês Strut Records, que desde 1993 conduz um projeto de curadoria e pesquisa importantíssimo, com o lançamento de 4 compilações (entre 2001 e 2020), tangibilizando um resgate que constrói um plano de fundo musical magnífico para dar luz a centenas de experimentações musicais que ocorreram no continente africano.
A série ”Nigeria 70″ conta a história da fértil cena de Lagos (capital), pincelando seus traços de Funk, Soul e um interessante contraponto para o Dancehall jamaicano. Com a primeira edição liberada em 2001 – em CD duplo e vinil triplo – a compilação dá o microfone para nomes como William Onyeabour, por exemplo, compositor prolífico que lançou diversos LP’s pioneiros na década de 70.
Nigéria 70 – The Definitive Story of 1970’s Funky Lagos
Track List:
Monomono – Tire Loma Da Nigbehin
Blo – Chant To Mother Earth
Fela Ransome Kuti & The Africa 70 – Jeun Ko Ku (Chop ‘N’ Quench)
Tunji Oyelana & The Benders – Ifa
Bala Miller & The Great Music Pirameeds Of Afrika – Ikon Allah
Segun Bucknor & His Revolution – La La La
Peter King – Shango
Tony Allen & His Afro Messengers – No Discrimination
Sir Victor Uwaifo & His Melody Maestroes – Akuyan Ekassa
William Onyeabor – Better Change Your Mind
Bongos Ikwue – Woman Made The Devil
Orlando Julius & The Afro Sounders – Alo Mi Alo (Parts 1 & 2)
Ofo The Black Company – Allah Wakbarr
Sahara All Stars Band Jos – Enjoy Yourself
The Funkees – Dancing Time
Afro Cult Foundation – The Quest
Joni Haastrup – Greetings
Gasper Lawal – Kita Kita
Lijadu Sisters – Orere Elejigbo
Fela Anikulapo Kuti & The Africa 70 with Sandra Akanke Isidore – Upside Down
Shina Williams & His African Percussionists – Agboju Logun
Sunny Ade & His African Beats – Ja Fun Mi
Nigéria 70 – Sweet Time: Afro-Funk, Highlife & Juju from 1970’s Lagos
A primeira compilação foi mais generalista, com o segundo registro a Strut Records, ressalta os subgêneros locais, trazendo uma reunião de grooves que passeiam pelo Juju, Highlife e o chamado Afro-Funk, ramificações do que hoje é conhecido como Afrobeat.
Track List:
Moneyman* And The Super 5 International* – Life
Ali Chukwumah & His Peace Makers International* – Henrietta
Bola Johnson & His Easy Life Top Beats – E Ma S’eka
Dr Victor Olaiya’s International All-Stars* – Kinringjingbin
Zeal Onyia & His Music – Idegbani
Sina Bakare – Inu Mimo
Eji Oyewole – Unity In Africa
Tunde Mabadu – Viva Disco (Instrumental)
The Don Isaac Ezekiel Combination – Ire
Etubom Rex Williams & His Nigerian Artistes – Ama Mbre Ewa
Soki Ohale’s Uzzi* – Bisi’s Beat
Chief Commander Ebenezer Obey & His International Brothers* – Ajoyio
Nigeria 70 – Lagos Jump: Original Heavyweight Afrobeat, Highlife & Afro-Funk
Essa compilação ainda bebe da água da anterior, porém com mais intensidade. Nesse recorte foram selecionados faixas com foco em mostrar como o Jazz e o Funk influenciaram a música dançante na África.
Track List:
Sir Shina Peters And His International Stars – Yabis
Ify Jerry Krusade – Everybody Likes Something Good
Bola Johnson & His Easy Life Top Beats – Ezuku Buzo
Ashanti Afrika Jah – Onyame
Olufemi Ajasa And His New Nigerian Bros – Aiye Le
Peacocks Guitar Band – Eddie Quansa
Peter King – African Dialects
Dynamic Africana – Igbehin Lalayo Nta
Chief Checker – Ire Africa
Tony Tete Harbor And The Star Heaters Of Nigeria – Tete Muo Bu Muo
The Faces – Tug Of War
Eric (Showboy) Akaeze And His Royal Ericos – Wetin De Watch Goat, Goat Dey Watcham
The Immortals – Hot Tears
Rex Williams – You Are My Heart
Sir Victor Uwaifo & His Melody Maestroes – Dododo (Ekassa No. 1)
Ifeanyi Eddie Okwedy & His Maymores Dance Band – Happy Survival
Nigeria 70 – No Wahala: Highlife, Afro-Funk & Juju 1973-1987
Última edição lançada pela Strut Records, Nigeria 70 – No Wahala: Highlife, Afro-Funk & Juju 1973-1987, mostra o que aconteceu também na década de 80, um período bastante frutífero, principalmente em função da popularização dos instrumentos eletrônicos.
É bem interessante acompanhar essa série, pois surgem atualizações frequentes, em função das edições que são relançadas em diversos formatos, desde a primeira prensagem dos títulos. Durante os anos que se passaram, esses lançamentos estão cada vez mais procurados e o selo se preocupa não só em renovar os estoques, mas também os estudos, sempre com algum projeto de novos grooves no horizonte.
Track List CD:
Odeyemi – Oni Suru
Prince Nico Mbarga & Rocafil Jazz – Sickness
Felixson Ngasia & The Survivals – Black Precious Colour
Sina Bakare – Africa
Saxon Lee And The Shadows International – Special Secret of Baby
Osayomore Joseph & The Creative 7 – Obonogbozu
International Brothers Band – Onuma Dimnobi
Don Bruce And The Angels – Kinuye
Rogana Ottah & His Black Heroes Int. – Let Them Say
Etubom Rex Williams & His Nigerian Artistes – Psychedelic Shoes
Sir Victor Uwaifo & His Titibitis – Iziegbe (Ekassa No. 70)
M.A. Jaiyesimi & His Crescent Bros Band – Mundiya Loju
É um quadra de plays que abre os ouvidos do ouvinte e mostra como a música africana é muito maior do que o substrato que foi exportado mundo afora. Um trabalho audacioso e de grande consistência, a sonoridade que marca presença nessa sequência deixa claro como a África não “fica devendo” – frente a outras estéticas.
Não só isso, revela também como o continente construiu sua própria linguagem, justamente para servir de contraponto frente ao que estava acontecendo no resto do mundo e, mesmo sem os mesmos recursos, os experimentos no continente são avançados e bastante pioneiros.