Oganpazan
Colunistas, Destaque, Discos, Lançamentos, Música, Resenha

Nekomata: a nova trincheira criativa do Muñoz

Nekomata: explorando uma nova trincheira criativa o Muñoz,  duo goiano, subverte seu eixo criativo e expande o seu já conhecido Blues Rock em seu mais novo álbum.

Tomando como ponto central o referencial do ouvinte, quando uma banda muda seu som, o groove chega a ganhar tons de descaracterização. Para os seres criativos responsáveis por essa nova visão artística, mudar é uma consequência natural do estudo e de sua convivência diária com a música, a musa que injeta glicose nos objetivos disruptivos de todos os grupos que almejam criar algo genuíno.

É claro que não existe uma receita de bolo. É claro também que nenhum músico acorda de manhã cedo e pensa: “nossa, hoje eu vou fazer um lance que nunca foi feito antes”. Não, isso é coisa de novela da Globo, na realidade o negócio é muito diferente.

Uma nova perspectiva por vezes pode significar um novo começo. Bandas que se posicionaram dentro de determinado nicho, podem expandir seu som de uma tal maneira, que ocupar o mesmo espaço por 3, 4 ou até mesmo 5 discos pode ser um fator limitante.

Ao pesquisar e estudar novas referências, os instrumentistas por vezes acabam influenciados e existe uma necessidade de externalizar esse novo eu lírico, como se o anterior fosse um tênis que já não serve mais. É uma oportunidade que oxigena o ser criativo e que por vezes exorciza uma linha sonora que parece estagnada.

Se fosse possível resumir tudo que foi dito nos parágrafos anteriores, “Nekomata”, o terceiro disco de estúdio do Muñoz, seria a palavra chave por trás desse raciocínio. Pra quem acompanha o cenário da música independente (acordado), o Muñoz está longe de ser um nome estranho na cena. 

A alcunha que por muitos anos definiu o Blues-Rock psicodélico de um dos duos mais cavernosos do país, chegou ao terceiro disco de estúdio – lançado via Locomotiva Records/Abraxas – com uma proposta totalmente diferente de tudo que os irmãos Mauro e Samuel Fontoura já fizeram até então.

Na ativa desde 2012, a essência do som dos goianos, que fundaram o projeto em Uberlândia – mas que agora estão radicados em Florianópolis – foi aquele Rock ‘N’ Roll de garagem que faz o seu vizinho chamar a polícia. Essa foi a fórmula que inspirou, não só o primeiro registro do grupo – o EP homônimo lançado em 2013 – como também deu o tom para a combustão quase etílica que está eternizada no primeiro e no segundo full lengh, os competentes “Nebula” e “Smokestack”, lançados em 2014 e 2016, respectivamente.

Foi com essa veia criativa que a dupla cruzou e descruzou o território nacional, tocando ao lado de bandas de renome internacional, como o Radio Moscow (EUA), Kadavar (Alemanhã) e Mars Red Sky (França), por exemplo, nos principais festivais independentes do pais, como o Locomotiva Festival, realizado em Piracicaba.

Mas nesses quase 8 anos de história, a dupla parece ter atingido um ponto de saturação, algo que justifica o intervalo de 3 anos entre “Nekomata” e “Smokestack”, o último disco lançado pelos meliantes.

Numa conversa datada de 2018 durante mais uma edição da SIM São Paulo, Mauro e Samuel comentaram sobre o terceiro disco – ainda na fase de pré produção – e mostraram certa inquietação com o caminho que estavam tomando nos últimos anos. 

Na época, Mauro (guitarra) estava enfurnado em pilhas e mais pilhas de Afrobeat. Samuel (bateria), por sua vez, estava pesquisando linhas de percussão, enquanto pegava referências da música eletrônica, dissecando sons como o Tigre Dente de Sabre, por exemplo, uma das bandas mais originais do underground paulista.

De alguma forma esses referenciais se cruzaram e o resultado foi não só o disco mais desafiador do grupo, mas uma prova cabal que além de mostrar coragem, evidencia como um rótulo é capaz de limitar o alcance do som. 

Na época Blues-Rock, o Muñoz entregava um dos shows mais pesados e explosivos da cena. Em dupla, os irmãos Fontoura pareciam se multiplicar no palco, tamanha a parede sonora que criavam e rebocavam, noite após noite, mas a limitação do Stoner, do próprio Blues e seu primo bandido e noia, o Rock Psicodélico, acabaram colocando o duo numa caixinha que precisava ser implodida, e foi isso que “Nekomata” representa na carreira dos goianos.

Gravado em Piracicaba, no estúdio Lab Sound e com uma chapante arte feita por Giulio Sertori, “Nekomata” representa um grito de libertação frente um novo oásis criativo. Alimentado por aulas magnas, como o show do Tony Allen realizado em março de 2019 no SESC Pompéia, durante a programação do Nublu Jazz Festival, o grupo conseguiu cumprir uma tarefa desafiadora.

Não foi fácil, mas eles encontraram um lugar comum entre o Afrobeat, elementos da música eletrônica e o próprio Rock Psicodélico, para conseguir subverter todas as influências que representam a essência do duo. O som ainda impressiona pelo peso, mas dessa vez é contrabalanceado pelo swing da música africana e a versatilidade dos timbres eletrônicos. É como se fosse um chá das quatro com o Tony Allen fazendo uma jam com o The Dead Pirates.

Tão maluco quanto parece, o disco impressiona desde a capa e por cerca de 40 minutos entrega desafiadores texturas para os ouvintes mais desavisados. Logo na abertura, com “Planet End”, com menos de 10 segundos já dá pra notar como a fórmula foi alterada. A bateria tribal do Samuel promove um contraponto para os riffs gordurosos de Mauro. Cantando e tocando guitarra ao mesmo tempo, é notável como a abordagem vocal do guitarrista mudou.

Com claras influências da música negra, Mauro utiliza sua voz como um instrumento, uma característica que pode ser notada em temas como “Vodum”, por exemplo. O vocal promove um novo senso dinâmico no som, enquanto Samuel explora a sonoridade de seu kit e atinge um novo patamar de entrosamento com seu irmão, tornando o som dos 2 ainda mais sinérgico.

O trabalho de pesquisa também é outro elemento que dá o tom nesse disco de diversas formas. Desde a produção de Julio Miotto até a master de Max Matta, a construção do álbum foi plenamente calculada para trabalhar desde os timbres, até os mantras, principalmente em momentos que as faixas ganham maior ênfase instrumental.

Esse link com a percussão e o Afrobeat foi capaz de ajudar a dupla na hora de criar climas. Em faixas como “Oru” ou na própria faixa título, eles se beneficiam dessas novas possibilidades, mostrando que o peso ainda é uma constante, mesmo que imerso em outro conceito estético. 

Dessa vez, a proposta privilegia tempos mais quebrados em detrimento de uma abordagem mais densa e cansativa que caracterizou boa parte dos discos de Rock lançados no underground brasileiro nos últimos anos.

Com letras que exploram desde mitos africanos até referências da música latina, o som não ignora o Blues-Rock de outrora, apenas subverte suas escalas para o groove maldito que emoldura temas como “Deep Sleep” e as baterias swingadas de “Collapse”. É interessante como a bateria do Samuel também foi afetada por esse novo ecossistema sonoro. 

Em alguns momentos, é perceptível como o som, além de se manter pesado, possui uma estrutura mais dançante, justamente para que os elementos eletrônicos e o Afrobeat possam ocupar espaço sem que o contexto do Rock ‘N’ Roll fique vendido. Muito pelo contrário, nesse disco ele aparece renovado e mostra como os tons quentes e o sabor marcante da música latina conseguem revitalizar um som cru, como “Estamira”, por exemplo, sem deixar de fazer o ouvinte bater o pezinho.  

Mas o que mais espanta no fim das contas é como a proposta consegue ressignificar o som do grupo sem distanciá-los da origem onde tudo começou. 

Em temas como “Sentinela”, parece que a banda sempre fez esse som, tamanha a naturalidade com que essa nova proposta funcionou. 

Samuel gravou suas linhas mais groovadas, enquanto Mauro revisitou seu repertório de riffs com um objetivo totalmente diferente em termos de condução e interação com os outros elementos presentes na gravação, como os sintetizadores que dão o tom no tema já citado.

Rola até espaço para um baixão turbinado em algumas takes do disco e, tema após tema, o som ganha novos detalhes enquanto rompe a barreira do óbvio com a mesma imprevisibilidade de um baseado queimando no canto do cinzeiro. 

“Blue Cat & The Eternal Bat” é um sopro de ar fresco e sintetiza todo o árduo trabalho que o grupo realiza desde 2012, preservando a mesma paixão e respeito pelo som que, apesar de não estar embebido no Blues, tem tudo pra envelhecer com muita sabedoria. 

O sentimento arrepia. Nota-se a mesma energia inflamável e a entrega de sempre, mas dessa vez com uma proposta que liberta Samuel e Mauro de um loop criativo que eles nem sequer entraram, mas que já foi aniquilado antes mesmo de começar a fazer frente ao som de uma das duplas mais interessantes, inquietas e criativas do país.

Ouçam os berros de Oru. É chegada a hora. Nekomata

-Nekomata: a nova trincheira criativa do Muñoz

Por Guilherme Espir

Ficha Tecnica:

Guitarra/synth/baixo/vocal: Mauro Fontoura

Bateria/Percussões – Samuel Fontoura

Percussão na música “Oru” – Maikão 

Produção: Julio Miotto

Mix/Master: Max Matta (LAB Sound)

Lançamento: Locomotiva Recs/ Abraxas

Matérias Relacionadas

Vulcaniótica um álbum para todos e para ninguém

Carlim
3 anos ago

Fuzzuês, uma imersão ancestral

Carlim
4 anos ago

Os Virgulóides – Virgulóides? (1997) Mais de 20 anos depois

admin
6 anos ago
Sair da versão mobile