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Entrevista Ana Lima, Débora Molina e Jamile Marques sobre o Faça Você Mesma

Nessa entrevista nossas convidadas falam sobre o Festival Faça Você Mesma, sobre o machismo no underground e as formas de esclarecer para empoderar e fazer da cena um ambiente de usufruto de todxs.

Carlim: Agradecemos por aceitar o convite para a entrevista Ana. A importância de eventos dessa natureza é grande e sua realização necessária, ainda mais levando-se em conta o cenário político no qual vivemos, em que o discurso anti-feminismo ganha força e se materializa no aumento de ações violentas contra mulheres em todo país. O que levou vocês a criarem o FAÇA VOCÊ MESMA? É um projeto que vem sendo pensado e amadurecido há tempos ou surgiu da possibilidade de realiza-lo dentro do Bigbands?

Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): Nós que agradecemos a acolhida. O Oganpazan tem todo meu respeito e admiração por ser um veículo de comunicação extremamente competente no que se propõe (crítica musical, divulgação de música autoral e etc.. ) além de não se abster das pautas urgentes para a minoria. Ficar “em cima do muro” não é a de vocês. Obrigada mais uma vez pela oportunidade.

Vamos lá. Pra quem vive o ativismo em essência não há folga. Estamos sempre tentando inserir o debate feminista em todos os nossos projetos individuais e tentando agregar mais e mais mulheres nesta luta diária. A ideia de realizar um Festival cuja concepção, curadoria e produção fosse TOTALMENTE feito por mulheres já havia antes do generoso convite do Rogério para participar do Festival Big Bands. Eu e a Débora Molina já estávamos maturando um projeto que pudesse fomentar a produção voltada às mulheres. Temos mulheres fortes na ativa e que tanto fizeram (e ainda fazem) a cena underground acontecer. Seja através do Coletivo Mosh Like a Girl (como colaboradora) ou nos projetos individuais, a inclusão da pauta feminista é uma constante.  É lamentável que tenhamos que relembrar, a todo momento, que a pauta feminista, mais do que urgente se faz latente. Este anti-feminismo crescente aliado à solidificação do fascismo está nos matando. A morte real; do feminicídio ao abuso físico e psicológico, a mulher tem sido reduzida, coisificada há tempo demais. Não há mais o que esperar. A omissão custará caro. E a luta é uma escolha de vida. Às vezes, não resta outra.

Debie (Crust or Die): Na realidade, há um tempo já, venho procurando mulheres para promovermos algo voltado às práticas feministas dentro do underground Soteropolitano. Um dos principais motivos é justamente não ver muitas meninas participando de eventos, tocando em bandas, não que não existam, mas é visível que a proporção masculina no underground de Salvador e região metropolitana ainda é muito maior. Olhando esse quadro e comparando com as demais realidades do underground brasileiro (em que a participação feminina vêm crescendo e muito, e isso me deixa extremamente feliz), me veio a ideia de entrar em contato com algumas meninas daqui- do underground baiano, para pensarmos juntas em algo que pudesse aproximar mais essas meninas. Dentre elas (falei com meninas fodas) acabei encontrando a Ana Lima que se dispôs bastante e consequentemente nos aproximamos muito, desde então começamos a pensar sobre muitos projetos. Coincidentemente, nesse mesmo período, Rogério Big entrou em contato comigo falando que queria dedicar um dia do festival para divulgar a produção feminina no underground (essa ideia foi bastante inspirada pelo projeto União das Mulheres do Underground – que se apresentará no festival por meio de um vídeo), como eu e Ana já estávamos falando de projetos, eu a chamei para que pudêssemos fazer juntas a programação do evento, ela que faz parte do Mosh Like a girl levou a ideia para as meninas e aí o coletivo entrou como participante também. O convite do Big foi então foi uma forma de acelerarmos algo que estava sendo amadurecido. Pois é Carlim, mas as vezes penso que anti-feminismo só parece mais evidente porque hoje as pessoas disseminam ódio e desinformações nas redes, mas eu entendo que em toda história houve uma intenção de abafamento de movimentos feministas, antirracistas e LGBT, basta um corpo se levantar em busca de igualdade de direitos surgirão tantos outros para exercer poder e silencia-lo (da maneira que achar mais própria) mas (digo enquanto mulher) resistimos!

Jamille Marques (Coletivo Mosh Like a Girl): Creio que sempre houve uma inquietação dentro de cada uma de nós. Tempos atrás certos comportamentos machistas me fizeram ter uma ojeriza e revolta muito grande. E pude perceber que não era só comigo, mas, com quase todas as mulheres que estavam no meio underground. Eram muitos relatos de assédio, agressão física e psicológica… Mulheres que tocavam em bandas eram testadas e ofendidas o tempo todo, não havia uma atitude e quando havia eram apenas de pouquíssimas pessoas. Como a Ana falou parece que temos que provar e relembrar todo o tempo que fazemos parte da cena, que podemos fazer muito, que podemos contribuir, que podemos produzir eventos, tocar, escrever e etc. A visão de que mulheres no underground são apenas “coisas a serem exibidas”, “acompanhantes”, “objeto de fetiche” é NOJENTA, cruel e nos mata. Temos maravilhosos exemplos de mulheres ativas por muitos locais do Brasil e precisamos que mais e mais mulheres aqui (estado da Bahia) sintam-se tocadas, acolhidas e com muita vontade de fazer dentro da cena sem ter que pedir licença. E sabemos que temos muitas mulheres com muita coisa para colocar para fora como um desabafo, como uma libertação e como empoderamento.

Carlim: Conversando com a Ana antes de fecharmos a entrevista, ela informou a intenção de que o evento contasse com shows de bandas femininas baianas, mas que não foi possível devido ao fato das bandas contatadas por vocês não estarem ensaiando, de haver uma dispersão das componentes por diversas razões, etc. A partir dos relatos feitos nas respostas de vocês, sou levado a concluir que o motivo dessas bandas estarem nessa condição está ligado ao ambiente de opressão às mulheres no underground. Gostaria de saber o que a impossibilidade de ter um line up de bandas para se apresentarem no FAÇA VOCÊ MESMA – VOL. 1 representa pra vocês. Como isso afeta vocês particularmente e o evento em geral?

Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): Exato, Carlim. O conceito do Festival Faça Você Mesma Vol I previa alguns shows com bandas com formação exclusivamente feminina ou com pelo menos uma mulher na formação. Fizemos um traballho vasto de pesquisa sobre as bandas femininas que estariam na ativa e entramos em contato para formalizar o convite para o Festival. Lembrando que sendo o Festival independente não haveria cachê nem qualquer ajuda de custo, seria na força e na coragem mesmo. Tivemos um retorno decisivo apenas da banda Agnosia e depois de muito repensar a logística do evento, chegamos à conclusão de suspender os shows – já que apenas uma banda havia formalizado presença no evento. E eu aproveito para agradecer a todas as bandas que foram contactadas por nós, todas foram extremamente solícitas conosco. Particularmente, o sentimento que fica pra mim é de pura tristeza, sabe? Coloco-me no lugar de cada mulher que mesmo com todo pesar teve que recusar o convite para tocar no Festival. Entendo que para nós, mulheres, cumprir uma jornada formal de trabalho (às vezes, jornadas duplas, triplas), algumas já com demandas familiares (cumprindo a função de mãe/pai, jornada solitária), demandas acadêmicas e todas as outras milhares de cobranças sociais; manter a rotina de ensaios e shows de uma banda acaba se tornando mais tortuoso do que prazeroso de fato. Então, sim! Há uma opressão estrutural pesando nas costas destas mulheres: dar conta de uma rotina e de um constructo social que se é esperado e cobrado o tempo todo e ainda ter que mostrar competência extrema para manter uma banda. Já que é notório que “apenas” as bandas masculinas tem excelência no front. Muitas bandas femininas se dispersaram não apenas por toda opressão de uma cena underground que não legitima o que as mulheres produzem e mais do que isso, as reduzem a um lugar de pouca ou nenhuma relevância. Além disto, como já mencionei, há todo um espectro social que oprime a mulher enlaçando a ela milhares de demandas sociais, econômicas e estruturais que as limitam, as reduzem. Vejo muito desânimo e apatia e compactuo de toda dor na jornada destas mulheres que tentam sobreviver no/ao Underground. Nunca tive a experiência de ter uma banda e gostaria muito que o relato da Debbie pudesse ser amplificado através desta entrevista. Ela tem autoridade suprema para tal e estamos lutando para não sermos caladas. Isso não acontecerá.

Debie (Crust or Die) – A Ana explicou bem o desdobramento de nossa saga atrás de bandas para o faça 1, então prefiro utilizar o espaço para contar um pouquinho da minha experiência e leitura desse quadro – Encontrar bandas com participação feminina vêm sendo uma dificuldade constante – ao menos para mim e para o coletivo que faço parte, pois já organizamos gigs há anos e sempre foi muito difícil fazer evento com bandas que tivessem mulheres. Há 8/9 anos havia a Egrégora – com vocal feminino e dentro desse tempo apareceram algumas bandas que também já acabaram, além das bandas que vinham de fora como o warcry (EUA), Tuna (SP), Sakhet (RJ) e Mantilla (Dinamarca). Eu toco em duas bandas – a mácula e a agnósia – e apesar de estar fazendo isso há um tempo, não gosto de me usar como régua, mas claro isso não me impede de olhar ao redor e sei lá, pensar um pouco sobre. Nesse período em que toco muitas coisas aconteceram, desde quando tinha minha outra banda – quando eu morava em sp, já ouvi de tudo, já me trataram com indiferença, já me mandaram calar a boca, já me cobraram coisas que não cobram aos meninos (não importa o que você faça, você tem que ser muito boa, tem que ser excelente), se eu fosse dizer pela minha régua eu diria: é um saco. As vezes tem que ser agressiva para que as pessoas possam minimamente te ver como um indivíduo que está ali porque gosta, porque é político, etc etc se eu fosse enumerar as vezes que me colocaram atrás do meu companheiro – que tbm toca comigo – essa entrevista duraria um tempo. 

Mas, para além das minhas experiências, muita coisa que observo me deixa pensando: porque as meninas não estão aqui?  Por que a maioria do feminino do rock em Salvador é branco? Por que as mulheres que têm filhos acabam se afastando? Eu, por exemplo, não sou mãe, não passei pela maternidade, e fico pensando se seria possível manter minhas atividades depois de ter um filho. Mas, para além da hipótese, eu observo que o underground parece não querer acolher essas mulheres e essas mães. O underground, e trago aqui tanto o meio punk e hard core quanto o metal (dentro do que eu conheço) é por muitas vezes hostil às mulheres, no nível mais simplista é: seja uma mulher e vá num evento sem um cara, o assédio rola absurdamente, as más intenções tbm, raras vezes você se sente em um ambiente seguro. Fora casos que um cara foi agressor e abusivo e o underground todo diz: “poxa, o cara vacilou, mas é fmz”, aí vem a pergunta a quem está lendo, vocês acham que a mulher agredida conseguirá ir em algum lugar e dividir o mesmo espaço que esse cara? Ainda tem aqueles que não acreditam em hipótese alguma no relato de agressão: não há provas, é o que dizem, e underground segue: para eles. 

Fico pensando, como disse, nas mulheres mães, e nos caras que são pais, só queria jogar uma inquietação aqui para que vocês mesmo pensem sobre o que estou falando: As mulheres tem filhos e acabam sumindo (uma ou outra aparece por que tem um companheiro que divide as coisas e fica com a cria em casa para que a mana possa sair e se divertir) e os homens? Eu vejo muito cara virando pai que sempre tá no rolê, e aí me pergunto: cadê as companheiras? Claro que entendo que há mulheres que não querem participar do underground e por esse motivo não aparecem, e que além disso, um bebê necessita de um cuidado materno entorno do ambiente doméstico, mas me pergunto – será que essas mulheres estão conseguindo ter a vida social igual a de seus companheiros?  Claro, ainda há os inúmeros casos de mães solos, sabemos bem qual a real situação da maternidade no Brasil, e muitas vezes as meninas que engravidam não podem contar com o pai da criança nem para suprir necessidades básicas, né, quem dirá a oportunidade do pai assumir o filho uma noite para que ela possa sair e se divertir. Nesse contexto, a ideia de uma mãe conseguir manter projetos é quase impossível. 

Esses pontos são apenas uns dos muitos que se devem levantar para pensar do porque há tão pouca participação feminina no underground e consequentemente bandas com mulheres. Mas, por sorte, e por a gente reclamar muito (sempre, rs) esse quadro está mudando, e continuamos TODAS caminhando.

Jamille Marques (Coletivo Mosh Like a Girl): O sentimento de que no cenário atualmente temos poucas bandas com representatividade feminina é de tristeza, é de nos questionar o porquê e é também de revolta. Fora os fatores citados pela Ana, acrescento também a receptividade masculina em relação essas minas que tem banda, se posiciona e vem pro confronto e quebrança de paradigmas em suas canções. Cito a banda Krise (Ilhéus- BA) que infelizmente está com as atividades encerradas, em alguns episódios de hostilidade: como abrir a boca para dizer que banda só com mulher na formação era palhaçada, ter que ouvir palavras obscenas no momento em que elas estavam no palco tentando minimizar e objetificando as meninas. E por mais que elas tivessem apoio de uma galera gigantesca creio que isso afeta o psicológico de qualquer mulher. É um sentimento bizarro de: Por que eu não mereço ter a liberdade de tocar/cantar que os homens? Por que tanta agressividade? E o que me parece é que mesmo que a banda com mulher ou formação exclusiva feminina seja foda muitas vezes são boicotadas. Já aconteceu isso com a banda Nervosa… de gente falar que elas só tocavam nos eventos por que “comeram” alguém. Saca? É uma crueldade sem tamanho. Eu sou baixista e flerto um pouco com a guitarra. Mas, nunca tive a oportunidade de fazer parte de banda e não posso mentir que eu ainda desejo isso de certa forma. Porém, já fiz participações na banda Kalmia (Salvador-Bahia) tocando guitarra na faixa Nazi Não e quase nunca (fora os amigos) ninguém me deu aquele velho tapinha no ombro e disse: pow! legal hein? Uma certa vez, um cara veio falar com o meu companheiro, o Pingo que é vocalista e guitarrista da banda que o show tinha sido foda e tal e falou da última faixa (na qual eu tinha tocado). Prontamente, o Pingo disse mas você tem que falar pra ela, pois, quem tocou a faixa foi ela. E o cara ficou BEM sem graça e veio falar comigo. Sacou a onda? Para um monte de gente mulher no palco é invisível, é objeto, tá ali por causa do companheiro e etc. A Debbie sabe bem falar dessas situações por que já passou por cada coisa bizarra. É triste ver poucas participações musicais com mulheres na cena hardcore/punk/crust/metal aqui em Salvador e eu aposto todas as minhas fichas que não é por falta de vontade de fazer som…

Carlim: De fato, vocês acabam combatendo em duas frentes distintas né, a primeira delas pelo empoderamento das mulheres da cena, pra saberem quando estão sofrendo assédio ou sendo colocadas em condição de inferioridade, para daí saberem lidar devidamente com a situação. Depois, com o comportamento machista dos caras, o qual acredito, exija de vocês um trabalho extremamente difícil e desgastante. Isso porque, o fato de nós homens sermos educados desde a infância para termos nossas vontades satisfeitas, termos liberdade total para impor nossa vontade e nunca encontrarmos barreira nesse sentido, dificulta que compreendamos atitudes machistas de nossa parte. O que de modo algum justifica o machismo, mas ajuda a entender sua origem e seu modus operandi. Falo isso por experiência própria. Tem um tempo que me coloquei no processo de desconstrução do machismo que carrego e sempre acabo incorrendo em atitudes machistas, agora mais sutis, o que considero ser um avanço, mas que ainda sim recorrente. Isso porque muitas vezes a sutiliza de certas atitudes machistas acabam sendo identificadas apenas por quem sofre o machismo, no caso vocês mulheres. Isso acaba exigindo que nós homens tenhamos a abertura para ouvir vocês e aceitar a crítica que nos é dirigida, pois só assim vamos conseguir nos colocar no lugar de vocês e avançar no sentido de, senão extinguir, ao menos minimizar consideravelmente esse ambiente machista que torna a cena underground opressora par ao público feminino.  Dito isso, quero saber se existe alguma correspondência com a realidade nessa minha avaliação. (risos) Depois, saber se existe essa disposição, de ouvir e aceitar as críticas levantadas pelas mulheres, por parte dos caras do underground baiano em alguma proporção. Caso haja gostaria que vocês falassem qual avaliação que vocês fazem disso para o fortalecimento da presença feminina na cena e de que forma o Faça Você Mesma contribui para dar esse choque de realidade em nós homens para que também possamos fortalecer a luta contra o machismo dentro do underground baiano. 

Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): Nós, mulheres, somos treinadas a não enxergar o que acontece sob nossos olhos, pois assim ingerimos “goela abaixo” um construto social  que nos deixa,  por vezes, resignadas perante esta estrutura fálica que precisa a todo momento ser reafirmada. Mas aos poucos e por diferentes caminhos, enxergamos a malícia, a mentira fabricada por trás de um aparente “suporte” às mulheres no underground. O Faça Você Mesma nos alerta da importância em criar um espaço  de diálogo aberto para entender mais acerca das dificuldades e das conquistas em resistir e produzir aquilo que verdadeiramente se acredita. Denunciar o machismo velado na “cena” underground é mais do que uma pauta, é sobrevivência: o machismo que explora, marginaliza e machuca. O processo de autogestão, o “fazer você mesmo” (Do It Yourself), especialmente  quando compartilhado ou produzido coletivamente, fortalece a autopercepçao das mulheres e nos indica o quanto somos e sempre seremos mais fortes quando estamos juntas.  Esta tal cena underground somente cumprirá sua função de resistência e denúncia se estiver aberto e atento às resistências específicas das mulheres. E como eventos promovidos por homens sobre pautas feministas mas com presença ínfima de mulheres podem ajudar nesse processo? O underground baiano tem sobrevivido com seus grandes líderes masculinos pela seguinte e recorrente prática: oprimindo a presença feminina das mais diversas formas, dando quando muito, um papel secundário de ajuda e colaboração; a mulher vai se tornando imóvel e muda, fortalecendo a ideia do papel da mulher como elemento não ativo no underground. Quantas foram silenciadas? Quantas ainda são categorizadas? 

Acredito em um processo de reeducação diária na qual os homens consigam se libertar dessa masculinidade tóxica, desse domínio fálico que precisa a todo instante ser escancarado. É possível que mulheres e homens possam recriar  a convivência dentro do underground mas  a realidade, infelizmente, se mostra cada vez mais distante disto. 

Debie (Crust or Die) – Carlim, entendo muito o que você quer dizer, e acho que sim: o machismo tá aí e todos sofrem com ele, inclusive os homens. Há aí muita coisa para dizer, conversar, além daqueles pontos que estão tão entranhados nas pessoas e que muitas vezes há uma dificuldade de apontar o problema, já que enxergam como natural, coisa de homem, etc etc. Nenhuma desconstrução é fácil, vide nós mulheres que também temos todos diversos vícios oriundos desse sistema patriarcal. A Ana disse tudo o que penso e um pouco mais. Como disse, eu venho participando do underground Baiano há cerca de 9 anos e posso dizer que sim, algumas coisas mudaram, mas ainda está longe do ideal. É verdade, o trabalho é árduo, desgastante e ferra muito com nosso psicológico, acredite!, mas é necessário, e observo que todas as alas do feminismo acabam tendo que gritar para minimamente serem ouvidas. Acredito que o que mais precisamos, e digo isso não só em relação ao underground Baiano, é que as críticas sejam vistas e analisadas de modo em que esses homens possam pensar sua relação de poder dentro de um sistema que sempre os favorecerá, e a partir disso deixar de se esquivar das críticas como se por um acaso a intenção fosse acabar com a população masculina, mas entender que a condição de privilégio tá aí e que o construto social os colocou em um lugar, e porque não pensar sobre ele?

Jamille Marques (Coletivo Mosh Like a Girl): Suas avaliações estão corretas. Por vezes o comportamento machista é tão camuflado e tão sutil que muitas mulheres acabam não percebendo e que abre margem para muita relação abusiva inclusive. Desconstruir o que está sendo imposto a tanto tempo exaustivamente a homens e mulheres é realmente difícil, mas, não é impossível. É uma tarefa árdua, cansativa e desgastante. Mas não podemos desistir… Em relação as críticas que fazemos a maioria das vezes elas não bem aceitas ou são aceitas até o momento que não interfira no “baba” dos caras. Sabe? Já houve discussões calorosas via Facebook por causa de um evento que iria ter strippers, no qual, poucas mulheres se manisfestaram e as que se manifestaram foram tratadas com desdém e os caras ficaram super doídos e ficaram fazendo piadinhas e comentários bem escrotos com relação ao posicionamento das minas e também de caras que não concordavam com aquilo. Uma quantidade esmagadora de caras ficaram falando que o metal era isso mesmo, era luxúria, era primitivo, que estavam querendo colocar goela abaixo conservadorismo e feminismo dentro do metal e que isso não cabia dentro do underground e etc. Nota o quão desgastante é isso? Tanto que duas bandas se retiraram do cast por não concordar com o que estava sendo proposto. As outras minas do Coletivo Mosh Like a Girl já passaram por situações onde tiveram que se posicionar e ir pro embate de ideias. Alguns caras se retrataram, outros continuaram com os comportamentos machistas abertamente, ignorando tudo que foi conversado e debatido e outros tentam camuflar esse comportamento. O choque de realidade com eventos na proposta do Faça Você Mesma é para mostrar que o espaço também é nosso! Que podemos fazer coisas maravilhosas, que estamos ali para enfrentar esse machismo nocivo e nojento, que as mulheres podem ocupar diversos espaços dentro do underground, seja como público, integrante de banda, produtora, fotógrafa, escritora de zine, seja produzindo camisas e materiais diversos. Tem espaço para todo mundo!!! Eventos como esse propõe a reflexão de alguma forma… De alguma forma vão perceber que não tem espaço pra assédio e preconceito. Mesmo que depois hajam com indiferença a mensagem foi passada e o recado foi dado cara a cara.

Carlim: Após a realização do Faça Você Mesma Vol 1 houve o interesse em ampliar a presença de outras vertentes culturais do underground no evento? 

Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): O Faça Você Mesma é um espaço  de articulação, de formação, para promover a troca de experiências entre mulheres  Nunca houve uma predominância proposital em nenhum vertente específica do underground. Possibilitar esse encontro, depende completamente da disponibilidade das colaboradoras e como proposta de evento  independente, sem qualquer apoio financeiro, a autogestão e logística da programação conta com a  generosidade e apoio das mulheres se disponibilizam em colaborar com o evento.  A programação é organizada de modo natural, levamos  em consideração a disponibilidade e vontade genuínas na partilha dos conhecimentos e vivências das colaboradoras. O Faça Você Mesma prioriza o processo de fortalecimento umas das outras, criando assim uma rede de cooperação e empatia. 

Debie (Crust or Die) – O faça quer promover as produções feitas por mulheres no underground, né, então a ideia não é a inclusão apenas de mulheres que fazem parte do punk, hardcore ou metal, apesar de estarmos muito mais envolvidas nisso. Queremos formar redes que nos fortaleçam, então a ideia é que mais mulheres participem e divulguem seu projeto, essa é a prioridade.

Carlim: O Faça Você Mesma é um evento de combate ao machismo no meio underground ou inclui outras pautas?

Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): O combate ao machismo sempre será uma pauta urgente enquanto a sociedade continuar profundamente misógina. A grande pauta do Faça Você Mesma é poder contribuir no desenvolvimento, fortalecimento e empoderamento feminino resultado das  vivências, saberes, e das consequentes reflexões desta troca em um espaço onde as mulheres se sintam completamente acolhidas nos seus relatos, dificuldades e avanços no decorrer de suas histórias. As atividades promovidas pelo festival criam uma dinâmica onde várias opiniões se encontram e abrem novas possibilidades de encarar determinados assuntos, criando um processo de desconstrução e desmistificação para alguns. A abertura de novos horizontes de sentidos e reflexões em torno de nossas vidas sempre pela via do diálogo, da livre produção, do apoio mútuo e da autonomia contra tudo que nos oprime, domina e massifica nossas vidas, escolhas, ações e corpos. 

Debie (Crust or Die) – Na verdade, eu acredito que o faça tem mais objetivo de criar uma rede, de unir as mulheres e fortalece-las (e nos fortalecer) pelas trocas de experiência do que a pauta do combate ao machismo – apesar que só o fato de fazermos um evento com essa pauta, o combate ao machismo é automático. Uma coisa liga a outra. Mas queremos concentrar nossa energia no fortalecimento.

Carlim: Qual a expectativa de vocês com relação à II edição do Faça Você Mesma? 

 Ana Lima (Coletivo Mosh Like a Girl): A expectativa é que a cada edição todas as mulheres envolvidas, direta ou indiretamente, no processo de organização e colaboração possam sair mais fortalecidas. O Faça Você Mesma Fest, enquanto coletivo humano, busca a emancipação, a libertação direta da mulher no domínio de si e das suas produções no underground. Acredito que esta será sempre a grande expectativa do Festival: lutar contra a invisibilidade com ferida às nossas dores, às nossas batalhas, lutar contra esse papel secundário que nos é imposto na efetiva produção no underground. Não dá mais para aceitar demandas que não são sensíveis às problemáticas da existência feminina. Que esta rede de mulheres cresça, absorva e fortaleça mais e mais mulheres. Recriar a convivência pela ideia da colaboração, estabelecendo na luta por espaço, dignidade e respeito a grande expectativa e único caminho possível para construção de uma cena underground mais saudável. 

Debie (Crust or Die) – Carlim, gostaríamos de agradecer  pelo espaço cedido aqui no Oganpazan, poucas mídias dão espaço para mulheres falarem e vocês sempre mostram que são um outro tipo de mídia. Queremos aproveitar o espaço e agradecer também ao Messias do Mercadão e ao Big por sempre nos ceder espaço e colaborarem com a realização do Faça. Agradecer aos nossos amigxs que estão sempre nos ajudando a erguer as coisas, a cada pessoa que compartilha e divulga nosso evento . E claro, a todas as meninas que dividiram seu tempo conosco, dispondo de suas experiências e saberes, um muito obrigada a todas! 

 

Avante!

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