Nego Gallo – Veterano (2019) Carlin voltou tia, com muita influência jamaicana, numa mixtape que dá aulas do verdadeiro e essencial hip hop!
Um dos grandes nomes do rap nacional acaba de soltar sua mixtape, Nego Gallo chega no ínicio de 2019 abrindo os trabalhos da cena hip hop com um lançamento digno de comoção: Veterano (2019). Parte fundamental da dinastia Costa a Costa, Nego Gallo é um dos artistas mais interessantes e reais da cultura hip hop nordestina e nacional. Se é bem verdade que o nordeste não está no topo do rap nacional, é certo que dentro do nosso ecosistema esse leão é veterano.
Leão aqui não é um mera metafóra, se não uma constatação à distância, do domínio conquistado a base de muito talento e de uma caminhada que transcende os palcos e as redes. Nego Gallo chegou muito antes disso, e se mostra imune ao jogo de espelhos e aparências que é a constante nas redes. Foi na sua conexão com a família Ugangue de Salvador, que tomei conhecimento dos seus trampos solos, pelas mãos do mano Galf AC.
Existe uma balança tatuada em suas costas, no mesmo lugar onde o artista carrega todas as dificuldades que a vida tem para nos oferecer e no entanto, com a astúcia e a prudência que esse nego véio conquistou, ele sempre nos entrega, a justa medida.
A capa da mixtape Veterano, já nos coloca numa semiótica riquíssima ao romper com a tentação do close dos rostos, ou mesmo, no representar sua figura de modo standart. A foto de Antonello Veneri, nos oferece o registro de uma força de resistência intensiva do Nego Gallo, as costas onde o peso dos problemas é caregado, de costa a costa de sua cidade. A balança como instrumento, menos moral que ético, local de avaliação de conduta, mais que de julgamento.
O rapper cearense não tá pista apenas, ele vive e sua vivência é profissional, seja na ajuda de outros que estão na pista, com sua arte ou com a outra metade de seu trabalho como arte educador, nada aqui é fake, tudo aqui é hip hop. E além da força do seu trabalho musical, sua arte utilizada diretamente na educação nos causa uma empatia muito grande.
Desse forma, compreendemos que Veterano, carrega no formato de mixtape todo esse know how em suas linhas, em suas batidas e melodias, de alguém que tá imerso e não se separa do ambiente em que vive. Ao longo das 11 faixas que compoe a mixtape, podemos depreender essa vivência transmutada nas linhas e na inspiração sonora tirada de sonoridades jamaicanas. No ano passado, o mano já tinha dado uma pista desse caminho estético quando lançou o clipe de Verso Livre (2018)
Caminho já traçado na abertura do disco, num clássico reggae em cima do qual Gallo declama: Venha, um verso livre em cima do qual a poesia se desenrola em cima dessa sonoridade jamaicana. Versos que evocam imagens onde entre outras coisas, o mc ataca a acomodação, a alienação e convoca o ouvinte para a batalha, que é dele e também nossa, que é de todos buscam estar despertos.
O arsenal segue sendo mostrado, a cada vez uma arma nova, a mixtape que teve a produção do Coro Mc e co-produção de Léo Grijó, encontra na segunda faixa No Meu Nome a participação do Don L.
Nego Gallo junto a Don L, nos dá um repeteco da força que outrora eclodiu com o Costa a Costa, e que desdobrou-se desde de 10 anos atrás, encontrando nesse novo reecontro musical, um tempo necessário de atuação. As duas peças mais relevantes da história do rap cearense, num tempo onde o Ceará se encontra em plena guerra civil. Sentimento e técnica em nível máximo, dialogando com o tema da violência urbana, da necessidade de fugir das armadilhas que nossas quebradas oferecem. Um dos pontos altos do disco.
Música escolhida pra ser o primeiro single trabalhado antes do lançamento da mixtape, O Bagui Virou é um sério candidato a hit desse disco, daquelas faixas que ouviremos ao andarmos pelas nossas quebradas. A música ganhou um clipe bem interessante, focalizando o rapper na quebrada e em palcos pequenos e na rua, em apresentações “menores”, saca só:
Música do nosso verão, Onde Há Fogo Há Fumaça, é o primeiro exemplo legítimo da produções plenamente barrunfadas do seio jamaicano, inclusive no tema. De arrepiar e seguindo a mesma linha de produção – salve Coro e Grijó – Down Town é feita pra dançar coladinho com a(o) cremosa(o). Segunda música lançada como single, em formato de lyric video, além das linhas certeiras e prenhes de sentimento, Nego Gallo ainda esculacha com um refrão daqueles que não saem da mente e nos pega de primeira:
Subi a favela/ Flor, minha donzela tem trança Nagô/ Dançando é sensacional/ Desci a favela/ Vou/ É Deus quem zela/ É fé à vera/ Eu vim das vielas de Down Town
As armadilhas do desejo, a leveza e porque não, a fluidez com a qual podemos não dramatizar excessivamente os amores, as paixões, é o tema de Dois Cofres Uma Porta. Prenunciado por um interlúdio, DVD é a oitava faixa do disco, aponta essa pistola musical em outra direção, bebendo do funk carioca com excelência.
Em outra produção fantástica do Coro Mc, Carlim transcreve o sentimento que atravessa o disco e ao mesmo tempo, numa “rima de encomendada”, um pedido de um fã. Luta, perseverança, alegria, amor, serenidade, são alguns exemplos desses sentimentos que perpassam a mixtape.
Na sequência Passado Presente, com participação de Coro Mc, que continua na produça mas assume também agora o refrão e as rimas. A música que retorna aos ares temperados pela inspiração jamaicana traz uma reflexão sobre a passagem do tempo e como nossas ações marcam neste. O segundo interlúdio do disco deixa isso claro, no próprio título: Só Existe Agora.
A pesadíssima Acima de Nós Só Justo encerra o disco em grande estilo, com Mc Mah no refrão e DaGanja e Galf AC nas rimas junto a Nego Gallo, violenta, sagaz, a faixa é um final afirmativo. As linhas de Carlim ao longo do disco, são de uma sensibilidade absurda, evocando os afetos e as ideias mais fortes possiveis e aqui não é diferente. Antigo como o anfitrião do disco na cena, o baiano DaGanja chega num flow muito técnico e pesado nas ideias. Galf AC faz uma curta participação na faixa, mas nem por isso menos marcante.
É certo que Veterano (2019) é o primeiro trabalho de vulto que o rap nacional recebe, e a mixtape abre num excelente nível, os trabalhos do ano na cena. O disco exala verdade, maturidade e excelência artística, é um espécime raro de rap que dialoga realmente com gêneros musicais da favela, reggae do passinho, funk carioca. Movimento que garante o afastamento da turma moderninha cult, que curte umas misturas, uns mix na mesma medida em que tornam o rap inofensivo.
Nego Gallo, não abre mão de seguir apresentando um rap raiz de verdade, ou seja, aquele que segue combativo mas sobretudo relevante esteticamente. Falávamos acima que Nego Gallo dava aulas, mas pensando bem a aula é ele, sua caminhada, sua arte, que aqui vem em outras repetições sobre o mesmo tema: Sua vida. Fazer a diferença é ser a diferença. Veterano não é ser velho, ou antes, o mais velho muitas vezes é o mais novo. Viva Nego Gallo!
Para um audição em que você vai perceber as passagens importantes dos interlúdios às faixas, escute no spotify, deixamos abaixo o link pro youtube,