O disco “Doo-Bop” – lançado de maneira póstuma em 1992 – é um dividor de águas entre a carreira de Miles Davis e o Hip-Hop.
A carreira do Miles Davis é extensa e possui diversos momentos e ramificações estéticas interessantes. Miles fez trilhas para filmes, marcou época com seus quintetos, tocou com grupos mais compactos e bandas maiores. Foi acústico, plugou o Jazz na tomada – no que ficou conhecido como “período” elétrico – e até pouco antes de falecer (em 1991 aos 65 anos) , explorou (o que conseguiu), na sua curta, porém urgente fase eletrônica.
Entre a metade da década de 1940 até meados de 1975, Miles tocou e criou de maneira avassaladora. Entre 1975 e 1980 o músico ficou aposentado. Ele volta em 1981 com o play – “The Man With The Horn“, gravado em 1980, mas lançado apenas em 1981. No ano seguinte, sai o disco ao vivo “We Want Miles“, com uma bandaça, formada por Mike Stern (que é responsável pela marcante guitarra que abre o “The Man With The Horn”, em “Fat Time”), Bill Evans – o saxofonista – Al Foster na bateria, Mino Cinelu (percussão) e Marcus Miller no baixo, figura importantíssima durante a etapa final da carreira do trompetista.
Apesar da inatividade, vale ressaltar que os discos de Miles continuaram saindo. Como exemplo, podemos citar a gravação ao vivo intitulada “Dark Magus”, gravado em 1974 e lançada apenas em 1977. Outro projeto que saiu nesse período foi o “Water Babies“, gravado entre 67-68 e lançado apenas em 1976.
Miles Davis soube experimentar e ser relevante – estéticamente e comercialmente – como poucos artístas conseguiram na década de 1980.
Em 1983 ele lança “Star People” – com uma arte de sua autoria na capa – e a primeira gravação com o guitarrista John Scofield, que foi peça chave também no projeto seguinte, intitulado “Decoy“, lançado em 1984 – junto com o arranjador Gil Evans, que também trabalhou com Miles no “Star People” – e no “You’re Under Arrest“, projeto que conta com versões para clássicos de Michael Jackson e Cydi Lauper, liberado em 1985.
Depois de 5 anos mergulhado em litros de Heineken e conhaque, além de seu vício frenético por cocaína, Miles ressurgiu com apoio de Cecile Tyson, atriz e modelo com quem o trompetista teve um relacionamento nos anos 60. Coube a ela a difícil tarefa de fazer com que o genioso compositor começasse a comer bem, além de praticar exercícios físicos. Segundo relatos da época, se não fosse por Cecile, Miles muito provavelmente não teria saída da década de 70 vivo.
Essas gravações dos anos 80 são muito interessantes, pois Miles consegue não só se provar relevante, mas também mostra como ele estava atento ao que estava acontencendo no período. No entanto, esses lançamentos não foram o suficiente para uma purista crítica especializada que tradicionalmente não entendia seus esforços criativos, detalhe que piorou principalmente entre 1986 e 1991, período que Miles registrou seus últimos e mais interessantes discos, promovendo uma ruptura que parecia antecipar o futuro da música dos anos 90 e 2000.
Em 1986 ele lança “Tutu“, um disco que a Erykah Badu e a rapazeada do Soulquarians – coletivo de músicos norte americanos, formado por figuras chaves da música preta contemporânea, como D’angelo, Roy Hargrove e Questlove, por exemplo – ouviu até quebrar. A faixa título do disco se transformou numa espécie de standard para a galera do Hip-Hop.
O disco dividiu opiniões, mas inegavelmente trouxe nova oxigenação criativa para as gravações que se seguiram. No projeto de estúdio seguinte, intitulado “Amandla“, por exemplo (lançado em 1989), Miles – novamente junto do Marcus Miller – mistura música eletrônica com Jazz, grooves, além da instrumentação.
Toda essa sequência de eventos possui influência direta no “Doo-Bop“, disco que encerra a carreira de Miles de maneira surpreendente, talvez um bom adjetivo para sintetizar a vida de um instrumentista que começou a tocar com o Charlie Parker, nos anos 1940, e terminou com o Easy Mo Bee, já na década de 1990. Se isso não é saber tocar conforme a música, eu não sei o que é.
Tracei toda essa linha do tempo, pois esse período foi muito volátil e encapsulou gravações muito importantes, apesar da falta de cobertura jornalística. Apesar de grande parte da crítica não concordar, “Doo-Bop” é um dos discos mais interessantes e disruptivos da carreira de Miles Davis.
Essa roupagem influenciou diretamente na criação de projetos que definiram a linguagem do Jazz moderno, que encontra na AKAI do Hip-Hop um terreno fértil para a gravação de clássicos modernos, como “To Pimp a Butterfly“, lançado em 2015 pelo Kendrick Lamar, por exemplo.
Outro pilar para essa sonoridade do Rap-Jazz foi cunhado pelo Guru, Rapper e produtor americano, famoso por integrar a dupla Gang Starr, em 1987, junto do DJ Premier. Com o lançamento da série “Guru’s Jazzmatazz“, trilogia lançada entre 1993 e 2000, Guru foi outra peça chave pela definir a linguagem desse encontro entre o Jazz e o Rap.
E o “Doo-Bop” é um disco que com certeza influenciou esse movimento e que evidencia como a importância do Miles Davis no Rap é bastante acentuada. Mas como o trompetista deixou de trabalhar com o Marcus Miller e foi parar nas mãos do Easy Mo Bee? Foi graças ao Russell Simmons (fundador da Def Jam), que isso aconteceu.
Miles queria gravar um disco novo e que tivesse a sonoridade moderna que ele tanta escutava, mas ainda não sabia como atingir. Coube ao Russell indicar o produtor Easy Mo Bee, que estava dispontando como uma figura central na produção do Hip-Hop.
Miles Davis se interessou pela abordagem de produção de Easy, logo depois de escutar um disco que ele tinha produzido durante a mesma época. Foi graças ao trampo do rapper GZA (“Words From The Genius“, lançado em 1991) – naquela fase pré Wu-Tang Clan – que fez a dupla se aproximar.
Vale lembrar que Easy Mo Be trabalhou em outras produções marcantes na década de 1990, como o “Project: Funk Da World“, do Craig Mack, lançado em 1994 e o “Ready To Die“, clássico do Notorious Big, lançado no mesmo ano.
O projeto foi gravado parcialmente no Unique Recording Studios, em Nova York. Digo parcialmente, pois apenas 6 faixas do disco foram fechadas pela dupla principal. Isso aconteceu, pois a saúde de Miles estava em declínio e ele não conseguiu finalizar o projeto antes de se ausentar para fazer seu tratamento médico.
Coube ao Easy Mo Bee finalizar 3 faixas extras, utilizando sua fina curadoria de samples para concluir o projeto, após 6 meses de gravação. O disco saiu de maneira póstuma, em 1992 e ainda faturou um grammy no mesmo ano.
Easy Mo Bee deve ter ficado particulamente chateado, pois existia um projeto para levar essa sonoridade aos palcos e nada impediria a dupla até de gravar uma sequência, mas infelizmente o músico faleceu em setembro de 1991 e reza a lenda que o Easy Mo Bee vai homenagear o mestre com um disco repleto de remixes deste marcante registro.
Para os amantes dos samples, vale destacar os créditos presentes nesse gravação. Na faixa “The Doo-Bop Song”, por exemplo, o ouvinte já consegue escutar clássicos como “Jungle Boogie” (Kool & The Gang) e “Deep Concentration“, do Gang Starr. Já na faixa “Fantasy”, é possível citar a curadoria de grooves raros que originou o sample do grupo The Mohawks, formado por músicos de sessão norte americanos que se especializaram em música negra, mas não conseguiram emplacar hits no rádio. Easy Mo Bee fez o groove ressurgir das cinzas com a citação da composição original do grupo, intitulada “The Champ“, lançada em 1968.
A gravação do “Doo-Bop” ainda abriu portas para que Easy trabalhasse no projeto “The New Groove: The Blue Note Remix Project“, lançado em 1996. Projeto de remixes de grandes nomes do Jazz, lançado pelo tradicionalíssimo selo Blue Note, este é outro trabalho que foi consequência clara, não só do “Doo-Bop”, mas também da fusão do Guru, com a série Jazzmatazz.
Falando sobre as características presentes na música de “Doo-Bop”, é muito interessante observar o trabalho do Easy Mo Bee, pois a maneira como ele trouxe referências advindas de seus trabalhos anteriores ao lado do Rapper GZA, por exemplo, mostra como ele teve feeling para subverter essas ideias nessa roupagem, criada especialmente para o Miles Davis.
Essa questão por si só já revela o ouvido apurado do cidadão. A seleção de samples presentes nas faixas que ele finalizou sozinho também dá outra amostra de sua habilidade no estúdio.
Mas o grande destaque é como ele conseguiu, à partir de poduções mais agressivas, captar a essência da ideia de Miles. Ele trouxe a modernidade que o trompetista queria, o fez com uma produção mais polida e que trouxesse nitidez e espaço para o trompete cobre de Miles Davis.
O resultado é um tear coeso de colagens, samples e beats que se entralaça com o metal trompético de maneira sempre surpreendente e intensa, como se tentasse sintetizar o fluxo dos carros nas ruas de Nova York, por meio de uma base envenenada.
Esse disco é especial, mostra a importância de ouvir não só o líder da gravação, mas também o produtor. O Easy Mo Bee é foda.