Mescalines lançou novo álbum de estúdio, levando-nos ao segundo mergulho no transe ritualístico de seu rock xamanico.
Há pouco mais de um mês Brazillian Voodoo Exportation, segundo álbum do power duo Mescalines, chegava às principais plataformas de streaming. Desde então sigo ouvindo o disco, tentando racionalizar a experiência sonora na qual Mariô Onofre e Jack Rubens me envolveram.
Pode soar exagerado alegar a necessidade de tanto tempo para conseguir dar início à resenha de um álbum. Caso tenha chegado a essa conclusão é fato, você ainda não ouviu a Mescalines.
O duo consegue criar uma miríade sonora impressionante levando seu ouvinte a viajar por uma variedade de timbres, ritmos, sons, que torna cada audição do álbum uma nova descoberta. Essa característica marcante da sonoridade da banda impede o enfado próprio da repetição. Temos, portanto, uma fonte quase inesgotável de possibilidades perceptivas das músicas executadas pela banda. O que torna qualquer tentativa interpretativa difícil, por estar fadada a restringir a experiência de ouvir a banda.
Seguindo os rastros sonoros deixados por nossos antepassados africanos, indígenas, a Mescalines desperta nossos afetos e vivências ancestrais, cravados em nosso dna. Somos projetados até as estepes norte americanas, às florestas tropicais, às savanas africanas, para celebrar ritualisticamente a nossa existência. Imergimos em transe profundo, somos conduzidos a vales oníricos, diante da própria fonte da vida, sem forma, composta apenas por sensações, que nos arrebatam sob a égide do entorpecimento da consciência.
Governados pelas paixões, que tornam cativa a racionalidade, dançamos sob o crepitar das fogueiras, iluminados pela sensualidade de uma sonoridade luxuriosa, quase libertina. Sem qualquer referencial concreto, dissolvemo-nos numa abstração totalizante. A lisergia mescaline bate forte, sua potência é avassaladora.
Esse efeito se deve aos recursos estilísticos utilizados por Mariô e Rubens, este em sua guitarra, aquele em sua batera e instrumentos percussivos. A slide guitar gera matizes sonoras psicodélicas, enquanto os licks de country blues nos colocam de frente com paisagens rurais e o uso das escalas menores imprime uma atmosfera oriental à sonoridade do álbum. Tudo isso muito bem amparado pelos ritmos cadenciados propagados através da diversidade percussiva sob as mãos e pés de Mariô.
Em 2016, além de lançarem o excelente Mescalines, a banda lançou também um compacto de duas faixas homenageando duas figuras icônicas do século XIX, o jovem poeta francês Arthur Rimbaud, uma das influências diretas do movimento surrealista e o líder sioux Touro Sentado, que liderou cerca de três mil e quinhentos sioux e cheyennes na vitória contra o Sétimo Regimento de Cavalaria Americana sob a liderança do famoso general Custer.
Tratando-se de uma banda combativa, compor duas músicas que reflitam duas figuras revolucionárias, cada qual ao seu modo, fez com que esperássemos o lançamento de um álbum ligado a uma atmosfera entre a psicodelia rimbaudiana e a verve guerreira do líder sioux. Fizemos a leitura correta dos sinais presentes em Rimbaud e Touro Sentado.
https://www.youtube.com/watch?v=p8YRnaDa0Wc
Brazilian Voodoo Exportation tem essa combinação em seu dna, facilmente perceptível nos títulos das música e ainda mais latente em sua sonoridade. Isso porque há toda uma geografia sonora explorada, que busca em distintas fontes étnicas a inspiração para criar uma complexa e bem urdida colcha de retalhos sonoros.
Abre o álbum, a faixa ⵣ (zed, letra do alfabeto berbere), levando-nos ao encontro dos povos do Norte da África, culturalmente ligados pela língua berbere. Esses povos referem-se a si mesmos como Imazighen, que pode ser traduzido para o português como “homens livres”. Liberdade num sentido amplo, na medida que estes povos não possuem uma nação, carregando sua identidade cultural onde quer que estejam.
ⵣ segue uma tônica expansiva, remetendo-nos a paisagens abertas, dando-nos a sensação de amplitude como se estivéssemos caminhando sob as areias do deserto, contemplando o firmamento infinito, característica comum às paisagens desérticas. Essa sensação é atiçada pelo andamento lento da primeira parte da música, produzido pela marcação de um instrumento percussivo de timbre grave, coberto por camadas sonoras reverberantes emitidas pelos slides da guitarra. A música segue essa dinâmica hipnótica até ser interrompida pela batida sincopada da batera, o que leva a música a tomar rumos mais swingados.
Seguindo pelas trilhas dos beduínos, permanecendo nas planícies desérticas dos berberes, chegamos à cidade marroquina de Essaouira (a bem desenhada) para encontrar um samba de forte influência da música árabe, remetendo-nos à toda cultura musical nordestina, forjada sob forte influência árabe. A faixa 06, Samba de Essaouira, também poderia ser chamar Xaxado de Essouira, Xote de Essouira ou mesmo Baião de Essouira. As células rítmicas usadas imprimem um delicioso swing, muito intimista e sensual.
Em Touro Sentado, faixa 11, ouvimos melodias mais pungentes, cadência rítmica mais agitada, dando-nos a sensação de mudança de planos perceptivos, como se diferentes passagens transcorressem em nossas mentes seguindo um fluxo de consciência minemônico. Aos poucos a música ganha mais vivacidade, adquirindo uma cadência de marcha, a preparação para a guerra, sob a condução do líder sioux, levando seus guerreiros pelas planícies ainda selvagens, para defender a liberdade de seu povo, das garras genocidas da civilização.
Há em Brazillian Voodo Exportation, uma crítica imanente, direcionada à civilização por meio de um elogio do “selvagem”. Rimbaud, faixa 02, única música que remete ao mundo civilizado, ao trazer em seu título o nome do jovem poeta francês, na verdade é a crítica mais atroz à civilização. Isso porque o inquieto e revolucionário poeta, abandona o mundo civilizado para viver entre os beberes ao norte da Africa.
Trata-se de música que reflete a personalidade rimbaudiana. Inquietude, frenesi, resultados de estímulos causados pela cadência frenética dos instrumentos percussivos, aliada à pegada mais forte da guitarra, que mescla os slides com licks de blues e de rock psicodélico.
Em Diáspora, faixa 04, deparamo-nos com os grilhões, com os “tumbeiros”, onde milhões tiveram seus destinos selados por sangue e suor. Os africanos não fugiram de suas terras, foram sequestrados, submetidos aos piores tratamentos, desprovidos da sua humanidade pelo homem branco, dito civilizado. Um deslocamento populacional marcado pela violência, feito em proporções nunca antes ocorridas na história da humanidade.
Por isso a criação de uma atmosfera sombria em segundo plano, por trás da melodia e do ritmo. Há efeitos, ao que parece criados por um sintetizador, reverberantes, ondulantes, similares ao sopro de ventos em noites frias, jogando pra baixo os ânimos, aumentando o suspense, carregando os semblantes. Lembrando-nos do genocídio causado pelo mundo civilizado.
Chegamos À Deriva, faixa 10. Realizamos até aqui o esforço em urdir toda essa trama, que busca mostrar a crítica imanente ao álbum, tornar visível o confronto entre civilização e vida tribal, selvagem, primitiva, mostrando serem os civilizados os causadores da barbárie. A humanidade encontra-se à deriva, perdida, afastada de si mesma e de todo contexto que a cerca. Desumanizados, desnaturalizamos o mundo, sem ter, ao que parece, como nos reencontrarmos.
Existem sendas livres da influência predatória da civilização em que a sonoridade expressa certa inocência, própria da condição natural. Certamente é a música que transmite mais intensamente essa atmosfera ingênua. Quando começa a tocar imergimos num outro platô, adentramos um portal que leva ao encontro de sensações mais simples, causadas pela cadência rítmica do xote conjugada com intervalos reproduzidos pela guitarra que geram uma linha melódica terna, afetiva. Estamos diante do momento primordial da manifestação da vida.
Ave Sonora, faixa 03, e e Homem Chuva, faixa 05, encarnam uma persona tribal, encadeando sons ritualísticos, remetendo ao engatinhar da humanidade, quando víamos na natureza o encantamento do mundo devido nossa precária racionalidade, ainda impossibilitada de dissecar o mundo e desmistificá-lo. Experimentamos através dessas faixas a riqueza de representações do mundo de nossos antepassados de eras primordiais.
Travesseiro de Nuvens, expõe o tempo do descanso, a recuperação do corpo através do relaxamento físico e mental. Momento de viajar em sonhos originados pelo sono ou pelas substancias ofertadas pela natureza para tal intento. Melodias levez, suaves, amparadas pelas carícias percussivas de pratos e tambores. A preparação para a agitação necessária à antecipação do raiar de mais um dia.
Quando se inicia a faixa 09, Zarabatan, percebemos o vínculo direto entre ela e sua antecessora. Chegou o início de outro dia, dessa vez consagrado à caçada. Duas coisas levam a fazer a associação com a caçada. Primeiramente o nome, lembra-nos a zarabatana, arma muito usada por tribos das florestas tropicais para caçar animais de pequeno porte. Outra coisa foi o andamento mais frenético da música, que poderia muito bem retratar alguma cena de caça. Tentem fechar os olhos e imaginar uma perseguição enquanto ouvem essa música, entenderam o que estou dizendo.
Pássaro Vermelho III encerra Brazillian Voodoo Exportation. Faixa curta, direta de rítmo marcado sugerindo a realização de uma cerimônia, talvez um rito de iniciação, quem sabe a preparação para a guerra contra o mundo civilizado ou talvez simplesmente o chamado para a diversão através do rompimento de qualquer limite perceptivo que desemboca na sensação plena de liberdade.
Quero agradecer a Mariô e a Rubens por terem me proporcionados essas semanas de viagens e sonhos através dos sons que criaram, desse conjunto de músicas que atiçam, provocam e afloram inúmeras sensações. A dificuldade profunda em oferecer uma linha de raciocínio interpretativa sobre esse álbum é a prova de sua imensa potencialidade criadora e originalidade expressiva. Esse texto perde todo seu valor, por menor que seja, diante da experiência d ouvir Brazilian Voodoo Exportation. Portanto, oganautas, ouçam o álbum e esqueçam esse texto.
Ficha Técnica:
Mariô Onofre – Bateria, Percussão.
Rubens – Guitarra, Slide, Bandolim.
Gravado e Mixado no estúdio Submarino por Clayton Martin.
Produzido por Mescalines e Clayton Martin.
Masterizado por Gustavo Halfeld.
Foto Capa por Ulysses Nogueira e Alice Martins.
Design Capa por Beatriz Ottaiano.
Selo Quadrado Mágico.